Não é uma crítica à sua capacidade de envolver o leitor nos dramas dos personagens – capacidade incontestável, diga-se logo – reconhecer que, pelo menos para quem escreve, o domínio técnico é o que mais chama a atenção em “A visita cruel do tempo”, da escritora americana Jennifer Egan (Intrínseca, tradução de Fernanda Abreu, 336 páginas, R$ 29,90). É preciso ser um monstro para manter tensionada de forma tão impecável a corda de um romance – ou coleção de contos interligados, impossível decidir – em que cada segmento é narrado por uma voz mais virtuosística que a outra, avançando e recuando na cronologia para cobrir cinco décadas e tendo como sombrio motivo de fundo uma reflexão sobre os estragos provocados pela truculenta passagem do tempo na vida dos personagens e da própria cultura americana, que adquire aqui os tons crepusculares de um império que se sabe decadente. Seria um erro tentar resumir a intrincada trama de “A visita cruel do tempo” numa resenha, mas convém situar os marcos temporais que estão em suas extremidades. O mais recuado fica nos anos 1970 em que o quarentão Lou, produtor musical de sucesso, cheirador e sedutor de menininhas, aparece ao longo de dois…
httpv://www.youtube.com/watch?v=Adzywe9xeIU&feature=player_embedded#! Eis a versão integral (cerca de 15 minutos) do curta de animação que ganhou o Oscar ontem à noite, The fantastic flying books of Mr. Morris Lessmore (Os fantásticos livros voadores do Sr. Morris Lessmore, nome próprio que contém um trocadilho intraduzível, algo como “Maisé Menosmais”). Essa declaração de amor ao livro de papel começa com um furacão que arranca as casas de seus alicerces e as palavras das páginas impressas, metáfora óbvia da onda digital. Mudo, o filmete é escrito e codirigido pelo ex-animador da Pixar William Joyce e mistura técnicas (stop-motion, animação computadorizada e desenho) para produzir uma bonita homenagem aos livros físicos. Embora ameace derrapar aqui e ali (personagens em preto e branco ganham cor ao ter contato com livros, por exemplo), o curta consegue no fim das contas driblar a maior parte dos lugares-comuns associados ao tema. Destaque para o momento em que, na mesa de operação, o velho tomo carcomido em francês tem uma parada cardíaca e só ressuscita quando o Sr. Lessmore começa a… lê-lo! Um tom profundamente nostálgico perpassa o filme, da música à direção de arte. Isso é condizente com uma cerimônia do Oscar em que o grande premiado foi “O…
J.K. Rowling anunciou que está escrevendo um novo romance – e que desta vez é um livro adulto! Só isso. Nem tema, nem data aproximada de lançamento, nada. J.K. Rowling está escrevendo um livro, é adulto, ponto. Tão desmesurado é o poder da mãe de Harry Potter, há não mais de 15 anos uma pobretona aspirante às letras, que todos se agitam: o “Guardian” aposta num romance policial, livreiros soltam fogos, editores afiam as unhas – ela informou julgar natural que a “nova fase” de sua carreira ocorra noutras casas editoriais, o que evidentemente não deixou felizes suas parceiras de HP Bloomsbury no Reino Unido, Scholastic nos EUA, Rocco no Brasil e dezenas de outras pelo mundo. Como se sabe, a varinha mágica de Rowling foi turbinada pelo bônus de vender mais de 450 milhões de exemplares dos livros do bruxo adolescente de óculos, 11 milhões só nas primeiras 24 horas do lançamento americano de “Deathly hallows” (Relíquias da morte), o último da série, em 2007. Mas conseguirá sua mágica migrar com igual força para outro mundo, outra visão de mundo – ou o que quer que ela queira dizer com esse papo de literatura “adulta”, policial ou não? Não…
Eu nunca disse, ele disse, que o escritor Diogo Tácito inventou o ebook. Eu não sou maluco. O que eu disse foi que o escritor Diogo Tácito se aproveitou da invenção do ebook – invenção feita por outrem, que aqui não vem ao caso – para me vilipendiar de forma torpe em meus direitos de autor. Sim, o que eu disse, ele disse, e configura nada menos que a pura verdade é que cada um dos quatro romances de sucesso que Diogo Tácito publicou nos últimos anos foi roubado de mim, surrupiado de meus arquivos inéditos por um escritor bloqueado que o desespero transformou em hacker diletante ou quem sabe por um hacker profissional a serviço de um escritor em crise. No entanto, estes crimes do farsante Diogo Tácito eu estou lamentavelmente impossibilitado de provar, ele disse, em virtude do já referido ineditismo de meus manuscritos e também do fato de, como todo artista que merece este nome, eu sempre haver trabalhado em radical solidão. Se os quatro primeiros livros de Diogo Tático estavam fora do meu alcance, porém – raciocinei – o quinto não estaria, pois me encontraria prevenido, meu manuscrito registrado nos órgãos competentes, carimbado, firma reconhecida e…
Gosto dessa lista de conselhos literários de Henry Miller (1891-1980), que encontrei pela primeira vez duas décadas atrás e nunca esqueci por completo, embora só tenha voltado a esbarrar nela há poucos dias, por acaso, num corredor do hipermercado internético. “Esqueça os livros que quer escrever. Pense apenas no que está escrevendo” é um bom toque, não é? Coisa de quem já esteve no coração desse torvelinho e conseguiu sair de lá com um livro decente. Gosto de Henry Miller. Tive naquele tempo uma fase de encantamento com a trilogia “Sexus”, “Plexus” e “Nexus”, memória que prezo com devoção suficiente para preferir não revisitar seus escritos. Cada coisa tem seu tempo no mundo da leitura, e acho que há sabedoria em reconhecer e respeitar isso. O fato é que, envelhecendo bem ou não, Miller é um escritor de verdade e sua listinha de conselhos, algo que pode trazer benefícios de verdade a quem vem depois. O que é bem mais do que se pode dizer da maior parte dos exemplares do gênero. Listas de conselhos literários andam na moda. Mais até do que isso: listas de conselhos literários andam hiperinflacionadas. Tanto que este site resolveu fazer uma antilista (em inglês)…
O humorista Reinaldo, mais conhecido por seu trabalho no grupo Casseta & Planeta, já era cartunista muito antes de sua encarnação televisiva. São de seu livro “Noites de autógrafos” (Desiderata, 2010) os cartuns literários – uma ilustre tradição da “New Yorker” – que, em clima mais escrachado que o dominante na revista da Condé Nast, fazem deste Pop de Sexta um abre-alas do carnaval. Evoé! .
Desta vez a lista do Flavorwire (em inglês) é picante: cartas de amor com conteúdo sexual, na maior parte dos casos explícito, assinadas por escritores famosos. Leitura muito divertida. James Joyce (foto), insuperável, faz até Charles Bukowski parecer um coroinha. * O crítico acadêmico João Cezar de Castro Rocha publicou na última edição do Prosa & Verso um artigo alentador e de leitura obrigatória. Ainda bem que a fauna e a flora da universidade são diversificadas a ponto de incluir visões lúcidas, autocríticas e generosas como esta: Dada a pluralidade da produção atual, é impossível decretar a morte da crítica ou o impasse definitivo da literatura, simplesmente porque há muito tempo não mais existe uma única forma de poesia, prosa ou crítica — aspecto que desautoriza juízos totalizadores. A tarefa atual da crítica é realizar uma arqueologia das formas do presente, a fim de descrever os movimentos novos esboçados na prosa, na poesia, no ensaio e na interlocução crescente com os meios audiovisuais e digitais. O único modo de fazê-lo é dedicar-se à leitura atenta da produção contemporânea, em lugar de proferir sentenças magistrais, com base na hermenêutica mediúnica dos profissionais do obituário alheio. Trata-se de evitar a vocação fóssil…
Que caras obtemos quando as descrições físicas de personagens famosos da literatura, feitas pelos próprios autores nas obras originais, são submetidas ao software de produção de retratos falados da polícia? Este tumblr, chamado The Composites (dica do Book Bench), é dedicado à brincadeira. Os resultados são variáveis, o que se compreende. Mesmo escritores realistas não costumam abrir mão de uma margem de imprecisão quando se trata de descrições físicas, para que a imaginação do leitor faça a sua parte. As ilustrações acima são dois exemplos que pincei na galeria. O escracho da esquerda, de Sam Spade, combina bem com a famosa comparação do detetive a um “Satã louro”, feita por Dashiell Hammett logo na abertura de “O falcão maltês”. Curiosamente, Humphrey Bogart o imortalizou com feições inteiramente diferentes no cinema, deixando para Robert Mitchum, que fisionomicamente se assemelhava muito mais a Spade, o consolo de encarnar o Philip Marlowe de Raymond Chandler. Já Emma Bovary, à direita, mesmo não tendo sido descrita por Gustave Flaubert como uma beldade de parar o trânsito, surge embarangada demais para o meu gosto, como se já tivesse ingerido veneno. Quem entraria naquela carruagem com essa mulher? E quem iria imaginar que ela fosse praticamente…
Esta semana esbarrei em duas notícias pouco comentadas que, embora inteiramente desvinculadas uma da outra, são bons exemplos das linhas que a cultura digital traça em sua atarefada remarcação do território da inteligência coletiva, cada uma numa extremidade – a da ampliação da inteligência e a da ampliação da burrice. Tendo como único ponto em comum o fato de terem sido garimpados na banda anglófona da rede (onde, como se sabe, desenrola-se a vanguarda da revolução eletrônica), estou falando dos seguintes nacos de informação: 1. Empreendimento conjunto de duas universidades americanas, a Brown University e a University of Tulsa, The Modernist Journals Project disponibiliza gratuitamente na internet, em pdf, versões escaneadas de revistas e jornais de língua inglesa (de diversos países) que tiveram relevância para o modernismo artístico, sobretudo literário, entre os anos de 1890 e 1922. Trata-se de um trabalho em andamento que disponibiliza – e pretende disponibilizar cada vez mais – material raríssimo, até então encontrável somente em grandes bibliotecas e mesmo assim quase nunca em conjunto, a qualquer pessoa que tenha acesso a uma lan house em qualquer ponto do planeta. 2. Em um artigo intitulado 25 razões para o Google odiar o seu blog (em inglês),…
O bate-boca entre Paul Auster (à esq.) e o fogoso primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, tem um certo tom farsesco, mas é uma bem-vinda prova de que os escritores, se já não gozam do cartaz de antigamente, ainda podem atuar como consciência crítica dos poderosos – talvez sobretudo em temas como direitos humanos em geral e liberdade de expressão em particular. Aqui (em inglês), uma boa nota da “Time” digital sobre o caso. Para resumir: numa entrevista à imprensa turca, Auster disse ter cancelado uma visita ao país porque seu governo mantém dezenas de jornalistas presos por crime de opinião. Erdogan se queimou e recorreu à ironia num discurso aos membros de seu partido, de inclinação muçulmana: “Oh, nós realmente dependemos do senhor!”, disse, como se se dirigisse ao escritor do Brooklyn. “Quem liga se o senhor vem ou não? A Turquia vai perder prestígio?” Em seguida, botou Israel no meio e a conversa degenerou, mas de uma coisa a reação de Erdogan deu bandeira: a mordida do intelectual novaiorquino que escreve ficção – uma criatura sem dentes, como nos acostumamos a pensar – doeu. * ERRO DE EDIÇÃO: Não é a primeira vez que acontece. Sete, a crônica…
httpv://www.youtube.com/watch?v=EqlPKnPTz7s De vez em quando um leitor me pergunta se tenho alguma coisa contra poesia, um tema que nunca abordo aqui no blog. Sempre explico – e explico agora de novo – que não, claro que não tenho nada contra poesia. Ocorre que é preciso fazer escolhas e a do Todoprosa é falar só de prosa, como o nome indica. Questão de foco. O que nunca acrescentei, mas acrescento agora, é que existe um aspecto da poesia que realmente não costuma me cair bem: a recitação. Talvez porque eu suspeite da musicalidade fácil das palavras, como João Cabral. Ou quem sabe o pessoal anda abusando mesmo da afetação nos saraus da vida. Refletindo sobre essas questões, decidi abrir uma exceção e… falar de poesia! Mais especificamente, de recitação de poesia: o Pop Literário de Sexta traz um hilariante vídeo tutorial (em inglês) que ensina tudo o que não se deve jamais fazer ao ler poesia em voz alta, a menos que se almeje o ridículo. Algumas dicas: Insira pausas… nas frases… quer elas estejam lá… ou não. Leia versos que não são perguntas… como perguntas? Chegando perto do fim do poema? TALVEZ O PRÓXIMO VERSO DEVA SER GRITADO PARA DAR…
Selexyz é o nome da livraria das fotos acima, diante da qual um lugar-comum como “templo dos livros” ganha uma inesperada força expressiva. Foi montada no interior de uma antiga igreja dominicana em Maastricht, na Holanda, e vem em primeiro lugar entre as 20 livrarias mais belas do mundo, segundo uma das mais inspiradoras listas que o Flavorwire já compilou. O Brasil também comparece (com a Livraria da Vila do Shopping Cidade Jardim, em São Paulo). * Se essa lista fosse um documentário, poderia ter a narração em off de Jonathan Franzen, que acaba de recitar (aqui, em inglês) no festival Hay de Cartagena, na Colômbia, a maior defesa dos livros impressos ouvida nos últimos tempos. De forma um tanto surpreendente, o autor de “Liberdade” não se referiu ao aroma inebriante da tinta no papel ou algum outro clichê do gênero. Atacou justamente aquilo que os entusiastas do meio digital mais exaltam: a aura de impermanência – ou seja, a plasticidade, a permeabilidade, a interatividade, o compartilhamento, a coautoria – do texto lido na tela. “Talvez ninguém ligue para livros impressos daqui a cinquenta anos, mas eu ligo”, disse Franzen, um dos autores confirmados na próxima Festa Literária Internacional de…