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Era uma vez
Sobrescritos / 30/04/2012

Eram os dois maiores poetas de seu tempo, um tempo remoto em que os homens morriam cedo, mas em compensação os rios eram cristalinos. O poeta do reino do norte era rico e famoso. Casado com a mulher mais bela e cobiçada do mundo, que o acompanhava aonde fosse, era autor de odes e epicédios que o rei encomendava para comemorar as datas cívicas e que o povo ouvia em meio a arrepios festivos ou contrito silêncio, conforme o caso, na praça em frente ao palácio. O poeta do reino do sul, ao contrário, vivia sozinho numa choupana no meio do mato, ignorado por seus conterrâneos e encarado com desprezo ou hostilidade pela corte. O poeta do norte usava como argamassa de sua obra velhas crônicas de atos heroicos ou traiçoeiros, amores cortesãos mal disfarçados sob pseudônimos burlescos, intrigas filosóficas fermentadas nos grandes centros de saber do reino. Para que a mistura não resultasse pesada, temperava tudo isso com um humor descrente que denunciava o olhar de um verdadeiro cidadão do mundo. O poeta do sul era um caipira que não se cansava de escrever sobre os mesmos temas bucólicos: o por do sol, o nascer do sol, os cabritos…

Pop de sexta: a morte de Diadorim
NoMínimo / 27/04/2012

httpv://www.youtube.com/watch?v=CWmoYRqVNLk A narração de Mário Lago e a direção de Walter Avancini fazem desse pequeno clipe – concebido como uma daquelas recapitulações sumárias dos folhetins televisivos, destinadas a situar o espectador na trama antes que comece um novo episódio – uma espécie bastante inspirada de resumo e, claro, também um spoiler de “Grande sertão: veredas”. Vi na época, em 1985, a minissérie da TV Globo baseada no clássico de Guimarães Rosa. Lembro-me de ficar incomodado com a beleza delicada demais, feminina demais de Bruna Lombardi no papel de Diadorim, que me parecia exigir bem mais ambiguidade, embora aprovasse Toni Ramos como Riobaldo e Tarcísio Meira como um canastroso Hermógenes. Revendo hoje este trechinho, com sua magia que dura até o surgimento daqueles hediondos créditos globais, até Bruna me pareceu uma escolha iluminada, como iluminada ela surge, nua, no clímax da revelação. Bom fim de semana a todos.

‘A trama do casamento’: Eugenides em queda livre
Resenha / 25/04/2012

O escritor americano Jeffrey Eugenides estreou em 1993 com uma obra-prima tão madura e original, o romance-novela “Virgens suicidas”, que a consagração de público e crítica atingida dez anos depois por seu segundo romance, “Middlesex”, ganhador do Pulitzer, pareceu apenas natural. Da geração de David Foster Wallace e Jonathan Franzen, Eugenides parecia destinado a figurar em posição de destaque no primeiro time da “nova geração” americana. Parecia. Mais uma década se passou e seu terceiro romance, “A trama do casamento” (que a Companhia das Letras lança mês que vem, com tradução de Caetano Galindo), é tão fraco que obriga seus admiradores, entre os quais me incluo, a repensar algumas das certezas expostas acima. Mais (ou menos) que uma resenha, este texto vai procurar elementos para começar a lidar com essa questão triste: a queda livre qualitativa de um escritor que lançou um dos melhores livros de estreia que já cruzaram meu caminho. Primeiro convém falar um pouco de The marriage plot – que li no original, razão pela qual nada direi sobre a tradução. Desde o título, trata-se de uma tentativa explícita de atualizar (para os anos 1980) os romances românticos que terminavam com o casamento da heroína, à moda…

Cachê de Gabriel o Pensador não incentiva a leitura
Vida literária / 23/04/2012

O poeta e frasista gaúcho Fabrício Carpinejar criou um fato cultural mais relevante e atual do que a polêmica entre Caetano Veloso e Roberto Schwarz ao cancelar ontem, por meio de uma carta aberta, sua participação na Feira do Livro de Bento Gonçalves (RS). Motivo: a organização do evento acertou um cachê de R$ 170 mil com o rapper e autor de literatura infantil Gabriel o Pensador, depois de, alegando limitações orçamentárias, fechar com Carpinejar e outros escritores um pagamento de apenas R$ 1 mil. A questão é relevante porque acende um raro holofote numa zona de fronteira típica do ambiente literário dos últimos anos: aquela em que os velhos valores cabeçudos, introspectivos e desprovidos de vintém da leitura se cruzam com os da sociedade do espetáculo, essa senhora rica, espalhafatosa e desmiolada. Uma espécie de metáfora coletiva do casamento de Arthur Miller e Marylin Monroe. A tentativa de transformar escritores em atores e livros em objetos cênicos da grande peça que hoje se encena mundo afora, chamada “Celebridades”, tem promovido a proliferação de feiras e “festas literárias” pelo país, na esteira do sucesso da Flip. Isso faz de escritores viajantes contumazes e lhes proporciona uma bem-vinda fonte alternativa de…

O não-Pulitzer, a não-política – e outros sim-links
Pelo mundo , Vida literária / 20/04/2012

Baixada a poeira, já dá para dizer: Laura Miller, ex-jurada do prêmio Pulitzer, publicou na Salon.com a melhor reflexão (em inglês) que vi por aí sobre a polêmica ausência de um representante da literatura de ficção entre os laureados deste ano, algo que não ocorria desde 1977. Miller explica o frequente atrito entre as deliberações do júri, formado por gente da área de literatura, e o aval do conselho do Pulitzer, que tem interesses variados e costuma levar as decisões para um terreno próximo do gosto médio – daí, aliás, a costumeira eficácia do prêmio como propulsor de vendas. Os conselheiros se comprometem a ler os finalistas, claro, mas é só. Qualquer manobra fora desse terreno é limitada. Miller sustenta basicamente que, como hoje em dia ninguém fora do gueto literário tem tempo nem vontade de se manter em dia com os lançamentos, por melhores ou mais comentados que eles sejam, o consenso em situações desse tipo tende a ser cada vez mais difícil: Segundo todos os relatos, o grupo (de conselheiros) não conseguiu construir uma maioria em torno de nenhum dos três títulos recomendados pelo júri. É certamente improvável que um número suficiente deles tenha lido ficção de forma…

Eagleton: Literatura existe e tem cinco ingredientes
Pelo mundo / 16/04/2012

Meu próprio entendimento é que, quando as pessoas chamam hoje em dia algum texto de literário, elas geralmente têm em mente uma de cinco coisas, ou alguma combinação entre elas. O que elas querem dizer com “literário” pode ser um trabalho que seja ficcional; que comporte uma medida significativa de intuição sobre a experiência humana, em oposição ao relato de verdades empíricas; que use a linguagem num registro peculiarmente elevado, figurativo ou autoconsciente; que não seja pragmático no sentido em que listas de compras o são; ou que seja altamente valorizado como exemplar de escrita. O novo livro do crítico literário inglês Terry Eagleton – que brilhou como o grande provocador da Flip há dois anos, conforme relatado na época aqui – chama-se The event of literature (“O evento da literatura”) e traz uma surpresa não só para quem tem alguma familiaridade com sua obra como para qualquer pessoa que costume acompanhar, mesmo de longe, as conversas no ambiente cada vez mais rarefeito da crítica literária acadêmica. Eagleton afirma que, pensando bem e diferentemente do que vinha sustentando até aqui, é possível, além de desejável, definir de forma universal o que é literatura, sim. Para tanto basta introduzir nas lucubrações…

O baú de David Foster Wallace e outros links
Pelo mundo / 13/04/2012

Três anos e meio após a sua morte, David Foster Wallace (foto) se consolida como o Raul Seixas da literatura americana: os últimos achados em seu baú são um cartão postal que ele escreveu para Don DeLillo e algumas cenas ainda inéditas de The Pale King, romance inacabado publicado postumamente. * Da mesma geração de DFW e, para todos os efeitos, tão sério quanto ele no modo de encarar a literatura, Jonathan Franzen se distingue pela absoluta ausência de autoironia. Após mais uma entrevista em que martelou seus temas preferidos – a necessidade que o ser humano tem de ler histórias literárias “complexas” como as que ele escreve e a incapacidade escrevê-las quando se tem conta no Twitter ou no Facebook – abriu a porta para que Tim Parks levantasse dúvidas interessantes sobre a tal “necessidade humana de histórias” e lhe dirigisse outras perguntas incômodas neste artigo (em inglês) no blog da “New York Review of Books”: Naturalmente, é conveniente para um romancista pensar que, pela própria natureza de seu trabalho, está do lado do bem, provendo uma demanda urgente e geral. (…) Mas qual é a natureza dessa demanda? O que aconteceria se ela não fosse atendida? (…) E…

Literatura? A minha com libido, por favor
Vida literária / 11/04/2012

Bem, vocês que são jovens corajosos, abram o ‘Grande sertão’ e leiam as 565 páginas. Isso para mim é um ato de coragem, ler ‘O jogo da amarelinha’, do Cortázar. Leia ‘Guerra e paz’. É um ato de coragem, transgressor, vai fazer bem para a sua vida, para a sua alma, para as conversas com a namorada. É um assunto e tanto. Já pensou, ‘Guerra e paz’? Três anos de conversa. Poucos momentos de silêncio e tédio. Chega o tédio, você fala: “tem uma cena no Grande sertão…”. É um casamento, uma vida inteira. Quando ele entra nas veredas mortas… sabe por que veredas mortas? Porque alguma coisa vai acontecer. É um lugar sombrio, obscuro. Conta isso para ela. Milton Hatoum, autor de “Dois irmãos” e “Cinzas do Norte”, saiu-se com a excelente tirada acima em seu bate-papo público na série de encontros Um escritor na Biblioteca, organizada pela Biblioteca Pública do Paraná, transcrita e publicada pelo jornal “Cândido”. Tocou num ponto nevrálgico que as campanhas pró-leitura, em geral chatíssimas, costumam deixar de lado por pudor ou caretice: o fato de que, em sua fase de formação, todo leitor é um aventureiro movido pela libido – nem mais nem menos…

‘Lean back’, moçada, e leia: é a nova moda
Mercado , Pelo mundo / 09/04/2012

Lean Back 2.0 – updated February 2012 O link acima abre uma apresentação de slides feita há menos de dois meses por Andrew Rashbass, presidente do grupo “The Economist” (em inglês). Para quem tiver paciência de aguentar um certo visgo Powerpointilhista de embromação corporativa, ela traz algumas ideias novas e surpreendentes – numa palavra, revolucionárias – sobre os padrões de leitura online na segunda década do século 21. “O velho é novo de novo”, afirma um dos quadros. O que isso quer dizer? Resumindo, trata-se da constatação de que, após um período em que a leitura online foi feita basicamente em desktops e laptops, estamos entrando de modo resoluto na era do tablet, que – eis a tese, sustentada por pesquisas e tendências já visíveis de comportamento – muda tudo: daquilo que já se convencionou chamar de Lean forward para Lean back 2.0. Lean forward, para quem não sabe, faz referência à posição do corpo do internauta diante da máquina, inclinado sobre ela: é uma postura ativa que favorece o compartilhamento de informação, a navegação nervosa de link para link e o vaivém da atenção entre texto e vídeo, por exemplo. Lean back 2.0 – e agora a inclinação é…

Pop de sexta: ‘O velho e o mar’
Pelo mundo / 06/04/2012

httpv://www.youtube.com/watch?v=v1EbNvHDxbA O Pop Literário de Sexta volta com “O velho e o mar”, curta de animação russo (postado no YouTube em duas partes) que faturou o Oscar da categoria em 2000. Baseado na famosa novela de Ernest Hemingway sobre a luta de um velho pescador solitário contra um peixe gigantesco, o belíssimo filmete do animador Aleksandr Petrov foi feito com uma técnica peculiar – pastel sobre vidro em 29 mil quadros – e tem cenas de tirar o fôlego. Boa Páscoa a todos. httpv://www.youtube.com/watch?v=l2_KszEnlq0&feature=related

‘Por que só agora?’ Sobre os armários de Günter Grass
Pelo mundo / 05/04/2012

“Por que só digo agora,/ velho e com minha última gota de tinta,/ que a potência nuclear Israel põe em risco a já frágil paz mundial?” É curioso que o escritor alemão Günter Grass, Nobel de literatura de 1999, tenha abordado retoricamente em seu polêmico poema-manifesto “O que precisa ser dito” – publicado na quarta-feira em diversos jornais do mundo com duras críticas a Israel – a questão do longo silêncio que finalmente se quebra. Foi um desses atrasos que, em agosto de 2006, arranhou sua imagem de tal forma que faz a manifestação de agora ser recebida com maior perplexidade. Naquele momento, veio a público a confissão de Grass – parte de seu livro de memórias “Descascando a cebola” – de que tinha sido nazista na juventude, tendo pertencido às tropas SS em 1945, no fim da Segunda Guerra Mundial. Uma informação que ele mantivera em segredo até então. Muitos alemães tinham e têm histórias semelhantes. A diferença é que o autor de “O tambor” havia passado seis décadas como uma das principais vozes da consciência moral alemã, instando seus compatriotas a encarar de frente o passado nazista, sem no entanto aplicar a receita a si mesmo (leia aqui…

O amor literário é a raiz quadrada do ódio
Sobrescritos / 04/04/2012

A fórmula v = b², proposta em seu clássico The supercool writer’s decalogue por Otto Bax, o berlinense suicida, é a genial quantificação de uma lei universal que, apesar de pressentida por geração após geração de cultores das letras, permanecia desde Homero no campo obscuro das intuições: no âmago de todo escritor, o número de colegas desprezados é igual ao número de colegas admirados ao quadrado. O que equivale a dizer, naturalmente, que o amor literário é a raiz quadrada do ódio. (As iniciais v e b correspondem respectivamente às palavras Verachtung, “desprezo”, e Bewunderung, “admiração”. Optamos por não traduzi-las, discordando de outros autores, devido à consagração da fórmula de Bax nos mais influentes círculos da coologia acadêmica literária internacional.) Não contente em capturar na malha dos números aquilo que se julgaria imponderável, Bax foi além e, antes de aplicar na própria veia uma gorda injeção de Frischluft, propôs outra lei universal: quando se levam em conta apenas autores vivos, a fórmula se transforma em v = b³, o desprezo equivalendo à admiração elevada ao cubo. Infelizmente, a morte prematura de Bax não lhe deu tempo de se aprofundar nas consequências de seus achados para o estudo da complexa rede…

A verdadeira máquina de escrever é o cérebro
Pelo mundo , Vida literária / 02/04/2012

Descubro sem surpresa, mas com algum pesar, que já existe alguém na internet declarando seu ódio a máquinas de escrever como peças de decoração moderninha – um tumblr dedicado à trollagem dos modismos do design chamado, significativamente, Fuck Your Noguchi Coffee Table. Não, é claro que isso não quer dizer muito. Tente imaginar qualquer coisa no universo que não mereça declarações de ódio em algum lugar da internet e você se verá em apuros. Mas achei curioso, porque não fazia ideia disso e nunca vi nada parecido nas casas que frequento, descobrir que uma paixão que alimento há anos vai, em alguma parte do mundo, entrando no terreno do clichê. Há dois anos e meio, quando rolou a notícia de que Cormac McCarthy estava leiloando sua velha Olivetti, saí do armário aqui no blog como amante e pequeno colecionador de máquinas de escrever. Na verdade, tenho só três peças, todas de valor afetivo, que na época apresentei assim: Tenho em casa um modesto museu da máquina de escrever. Além da portátil Hermes 2000 que já comprei velhinha nos anos 1980, num antiquário, mas ainda cheguei a usar, conservo a pesada Remington que herdei de meu pai, na qual batuquei meus…