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Contra o romance
Vida literária / 27/07/2013

No apêndice de seu ensaio “O romance sob acusação”, o crítico e escritor italiano Walter Siti traz uma interessante coleção de provas documentais – algumas delas famosas – do escândalo moral ou político que trabalhos de ficção provocaram em seu tempo. Gosto especialmente da argumentação de Ernest Pinard em sua sustentação oral no processo de 1857 contra “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert. O advogado nega a certa altura que o fim trágico da protagonista possa servir de atenuante ao crime de “ofensa à moral pública e à religião”: Digo, senhores, que os detalhes lascivos não podem ser acobertados por uma conclusão moral, caso contrário poder-se-iam contar todas as orgias imagináveis, descrever todas as torpezas de uma mulher pública, fazendo-a morrer sobre uma miserável cama de hospital. Seria permitido estudar e mostrar todas as poses lascivas! Seria ir contra todas as regras do bom senso. Seria colocar o veneno ao alcance de todos e o remédio ao alcance de poucos, caso houvesse um remédio. Quem lê o romance do sr. Flaubert? Serão homens que se ocupam de economia política ou social? Não! As páginas levianas de ‘Madame Bovary’ caem em mãos mais levianas, nas mãos de moças, algumas vezes de mulheres…

Escrever, cortar, escrever: a concisão e a clareza
Vida literária / 20/07/2013

“Escrever é cortar palavras”, disse Carlos Drummond de Andrade, mas talvez não tenha sido ele: parece que, na ânsia de enxugar, alguém acabou cortando o crédito. Importa pouco a autoria do conselho. Com essas ou outras palavras, o elogio da concisão é a lição mais ouvida por aprendizes das letras há mais de cem anos. Quer dizer que antes disso o poder de síntese não valia nada? Claro que valia. Os poetas da antiga Grécia cultivaram a brevidade do epigrama. No início do século XVIII, o poeta inglês Alexander Pope, tradutor de Homero, dizia que palavras são como folhas de árvore: quando são muito abundantes, diminui a chance de vislumbrarmos ali embaixo “o fruto do sentido”. No entanto, parece ter sido nas primeiras décadas do século XX que o relógio do mundo acelerou de vez e deixou com cara de obesa uma silhueta textual – a palavrosa – que até então ainda podia ser vista como atraente e saudável. Mais ou menos o que tinha ocorrido um pouco antes com as mulheres de Rubens. Pode-se relacionar esse aguçamento da intolerância ao desperdício vocabular a uma série de fenômenos, como a industrialização e a vida urbana. Parece claro que um papel…

Banville e a máquina de produzir epifanias
Resenha / 13/07/2013

Reconheço que o alerta pode afugentar leitores deste texto que mal começa, mas paciência: muitas vezes, ler demais sobre um escritor atrapalha a leitura do próprio escritor. Veja-se o caso do irlandês John Banville, que acaba de vir à Flip a bordo de seu último romance, “Luz antiga” (Biblioteca Azul, tradução de Sergio Flaksman, 336 páginas, R$ 39,90). Quando se sabe que o próprio Banville se considera um raro – talvez até único, embora isso não fique claro – artista verdadeiro das letras num cenário internacional povoado de artesãos no máximo competentes e outros fornecedores de conteúdo para o mercado editorial, um representante implacável da literatura highbrow num mundo definitivamente middlebrow, é tentador transformar a leitura num teste e adotar, após meia dúzia de páginas, uma de duas posturas: ficar a favor de tal juízo presunçoso, encontrando a cada linha a confirmação de seu acerto, ou ficar contra o mesmo juízo e descobrir em cada linha seu desmentido categórico. Em outras palavras: ou Banville é um gênio ou é uma besta. Não por acaso, encontram-se por aí as duas leituras. Ambas são desculpáveis, pois é o personagem arrogante construído pelo próprio romancista, sobretudo a partir de sua premiação com o…

Como o português pode salvar sua vida
Resenha / 06/07/2013

A reedição de “Como aprendi o português e outras aventuras” (Casa da Palavra e Fundação Biblioteca Nacional, 264 páginas, R$ 34,00), coletânea de artigos, crônicas e breves ensaios escritos nos anos 1940-50 por Paulo Rónai (1907-1992), é uma excelente notícia. A edição em formato de bolso traz de volta à circulação um livro tão espirituoso quanto comovente. Vamos direto ao ponto: a paixão pelo português salvou a vida de Rónai. Literalmente. Judeu húngaro, o erudito naturalizou-se brasileiro em 1945 e, em décadas de atividade incessante como professor de línguas, tradutor e crítico literário, retribuiu o favor tornando nosso país mais inteligente e sintonizado com a melhor tradição humanista europeia que ele representava tão bem. Dito assim, o resumo da ópera pode sugerir um livro de tom épico, mas parte de sua graça é ser o oposto disso – bem-humorado, despretensioso e autoirônico como o próprio autor. Grandiloquente é apenas o pano de fundo histórico em que se deu a aventura linguística que mudou a vida de Rónai: quando, aos 32 anos, já poliglota, ele começou a estudar português em Budapeste como um dos desdobramentos naturais de seu interesse por latim, corria o ano de 1939 e a Segunda Guerra Mundial…