“Ouviram dizer que a concisão é uma virtude e consideram conciso quem se demora em dez frases breves e não quem domina uma longa”, escreveu o argentino Jorge Luis Borges (foto), ele mesmo um mestre da concisão, cultor privilegiado da brevidade do conto. Leio isso e imagino um romance de 800 páginas em que se descreve à exaustão, por exemplo, uma única noite na vida de um personagem. As frases são todas curtas, soluçadas, mas ninguém seria louco de chamar o livro de conciso. Digamos que esse personagem principal não seja desinteressante, pelo contrário: é um médico, um plantonista de pronto-socorro numa grande metrópole latino-americana, de cujas decisões instantâneas – tomadas em meio à mais desoladora precariedade de condições de trabalho – depende muitas vezes a vida das pessoas estropiadas que lhe entram pela porta ao longo da comprida, interminável noite em que o vemos exercer seu desesperado ofício. Nosso romance não se contenta em descrever em detalhes – sempre com frases breves – o estado dos pacientes e o que faz o médico para tentar salvá-los ou aliviar sua dor. O homem sangrava copiosamente. Tinha perdido um olho, que pendia sobre a bochecha. O que houve?, perguntou o médico….
As “franjinhas literárias” que foram tema do último post – aqueles emblemas de literariedade que nada mais são do que uma manifestação do mau e velho clichê, da linguagem morta ou pelo menos artrítica – podem ser mais ou menos antiquadas. É claro que existem as franjinhas modernosas e até as vanguardistas, pois, nas palavras de Ricardo Piglia, “a modernidade é o grande mito da literatura contemporânea”. No entanto, é impressionante o número de pessoas que se lançam à aventura de escrever um romance tendo na mira, de forma consciente ou não, um modelo que já era velho há pelo menos cento e cinquenta anos. A franjinha preferida de todas essas é a descrição. Qualquer um que já tenha sido obrigado – como jurado de um concurso de prestígio, por exemplo – a ler de enfiada um grande lote de romances contemporâneos sabe que, numa fatia em torno de um terço deles (estou chutando, claro, mas não errarei por muito), a narrativa começa com uma longa descrição. Em alguns casos, de fenômenos atmosféricos, num eco certamente involuntário do mais famoso clichê literário da história – a famigerada frase “Era uma noite escura e tempestuosa”, do romancista vitoriano Edward Bulwer-Lytton, que…
Num dos curtos ensaios de crítica cultural que escreveu entre 1954 e 1956, reunidos no livro “Mitologias” (Difel), o semiólogo francês Roland Barthes se detém com especial crueldade nas franjinhas exibidas por todos os personagens masculinos do filme “Júlio César”, de Joseph L. Mankiewicz, adaptação hollywoodiana da peça de William Shakespeare, com Marlon Brando (foto) no papel de Marco Antônio e James Mason no de Brutus. Declarando o cabeleireiro o “principal atesão do filme”, Barthes registra a variedade das franjas exibidas pelos atores, dizendo que “umas são frisadas, outras filiformes, outras em forma de topete, outras ainda oleosas, todas bem penteadas; os calvos não foram admitidos, embora abundem na história romana”. No entanto, encontra para todas elas um propósito único, que chama de “ostentação da romanidade”: A madeixa na testa torna tudo bem claro; ninguém pode duvidar de que está na Roma antiga. E esta certeza é constante: os atores falam, agem, torturam-se, debatem questões “universais”, sem que, graças à bandeirinha suspensa na testa, percam seja o que for da sua verossimilhança histórica. Mas o que Barthes tem contra franjas romanas, afinal, se nenhuma representação artística pode prescindir de artifícios desse tipo ao propor seu jogo de faz-de-conta? A resposta…
Depois que escrevi aqui sobre o que chamo de literatura de autoatrapalhação – aquela que se opõe à autoajuda –, a questão do enfoque utilitarista da leitura não parou de atravessar meu caminho sob as mais variadas formas. Fez isso tantas vezes que me induziu à conclusão de que o tema está boiando no ar do nosso tempo. Primeiro foi uma pergunta do mediador Rosel Soares na Festa Literária Internacional de Cachoeira (BA), há duas semanas, sobre a capacidade que a literatura teria ou não teria de nos transformar em pessoas melhores. Em seguida, devido a uma série de viagens ligadas ao lançamento do meu novo livro, vieram os repetidos encontros com livrarias de aeroporto, essas lojas peculiares – e no meu caso praticamente inúteis – que tendem a concentrar seu estoque em autoajuda, elevação espiritual, gerenciamento, picaretagem explícita e outros gêneros com títulos imperativos: “Faça”, “Seja”, “Não faça”, “Não seja”… Finalmente, esta semana, dois golpes de misericórdia: dei uma entrevista por telefone a um programa da ótima TV universitária de Caxias do Sul (RS), sobre os prós e contras da autoajuda na formação de leitores, e tropecei num artigo imperdível da revista “New Yorker” chamado “Deve a literatura ser…
Em seu lapidar ensaio Teses sobre o conto, publicado no livro “Formas breves”, o escritor e crítico argentino Ricardo Piglia resume assim o ponto de partida de suas reflexões sobre as histórias curtas – ou, em inglês, simplesmente stories: Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias. Numa linguagem límpida e legível que não esconde a generosa – e rara – intenção de conversar com o maior número possível de leitores, sem prejuízo do rigor do pensamento crítico, o autor passa então a discorrer sobre a tal duplicidade: a de uma história ostensiva, exterior, que contém em si uma história secreta, cifrada, elíptica. A história que ele chama de 1, a evidente, só aqui e ali deixa entrever ou pressentir “nos seus interstícios” a história 2, que ao irromper por fim na consciência do leitor provoca aquele efeito de surpresa, revelação ou epifania que se espera de todo conto. Piglia recupera uma deliciosa anotação rabiscada pelo russo Anton Tchekhov, mestre do conto moderno, embrião de uma história que ele jamais escreveu: “Um homem em Montecarlo vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, suicida-se”. A história 1 – o jogo, a sorte, a euforia do enriquecimento – tem no…