Durante muito tempo, mantive neste blog uma seção chamada Começos Inesquecíveis, dedicada a aberturas especialmente brilhantes – sobretudo de romances, embora um ou outro conto tenha comparecido também. (Um desses começos, aliás, faz coro com as palavras iniciais deste post: “Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo”, escreveu Marcel Proust na primeira linha de “No caminho de Swann”.) A seção não tinha dia fixo, mas era atualizada com grande frequência por exigência dos próprios leitores, que a transformaram na mais visitada do Todoprosa. Nunca parei para contar, mas imagino que no fim das contas o número de começos contemplados se aproximasse da casa dos três dígitos. A popularidade dos grandes começos da literatura é um tema curioso. Parece existir em nós, leitores, e principalmente nos leitores que também escrevem ou gostariam de escrever, uma crença irracional no poder mágico das palavras de abertura de um livro. Como se elas já contivessem em miniatura tudo o que importa saber, um certo espírito geral da obra. Como se, acertando no começo, o resto viesse naturalmente ao autor. A realidade é mais complicada do que isso. Um bom início tem a responsabilidade de introduzir um certo tom, uma certa voz, e o desafio nada…
Uma vez que este blog vem reincidindo nos últimos tempos – de forma não planejada e até meio misteriosa para mim, mas indiscutível – na discussão de aspectos técnicos do ofício de escrever, como se fosse uma espécie de oficina online, talvez não seja descabido supor que um texto se encaixe no outro para formar algum tipo de conjunto coerente. Ainda que possa ser cedo para dizer que tipo de conjunto e coerência. Para deixar isso claro puxo um fio do artigo da semana passada: o trecho em que, citando de memória um ensaio da escritora canadense Margaret Atwood, falo da capacidade que tem a literatura de “pintar cenários grandiosos com base em quase nada, a chaminha trêmula de um palito de fósforo passando por grande incêndio”. Quem enfatiza esse mesmo ponto com uma boa tirada é um escritor mineiro que estaria fazendo 88 anos hoje, se não tivesse morrido em 2012: em seu livro “Uma poética de romance” (Rocco), Autran Dourado afirma ser o romancista aquele que “com um tiquinho de pólvora faz uma girândola, com um gritinho apronta um escarcéu”. A ideia que Autran defende nesse trecho – e em todo o livro, uma reflexão sobre os bastidores…
Então é só isso? Umas poucas palavras bem colocadas e pronto, ali está o leitor na ponta da linha, anzol cravado na bochecha? Sim, mas também pode ser só isso: uma única palavra em falso e o peixe desaparece nas profundezas para nunca mais passar perto do seu bote. O que vai ser? Em qualquer praia estética, esteja ele muito ou nada interessado em ser acessível a um grande número de leitores, acredito que esta preocupação habite a cabeça de todo escritor digno desse nome, isto é, qualquer um que escreva para ser lido por alguém e não apenas para expressar seu eu profundo: como dar às palavras, uma após a outra, uma certa ressonância de verdade? Estamos em terreno traiçoeiro. Em primeiro lugar convém deixar claro que a palavra verdade não tem aqui – não ainda – a menor fumaça filosófica, histórica ou mesmo emocional. Importa menos “a verdade” do autor ou da história que ele conta do que “uma certa ressonância de verdade”. Sim, é claro que uma dimensão está ligada à outra em algum nível profundo, mas vamos supor que ainda não mergulhamos o suficiente para chegar lá. Estamos na superfície do texto, mal equilibrados em nosso…
A importância do silêncio numa narrativa de ficção se manifesta de diversas formas, incluindo as óbvias elipses e subentendidos, pois, como disse Erico Verissimo (que cito de memória), “um dos segredos do romancista é nunca explicar demais”. Tudo aquilo que não é dito oferece à imaginação do leitor – coautor pouco comentado de qualquer obra literária – espaço para se espraiar, ligar os pontinhos, produzir e não apenas decifrar sentido. Embora geralmente esquecido, até mesmo o silêncio que vem antes da primeira frase do texto, como os milênios de não-ser que precedem o nascimento de qualquer bebê, é tão fundamental quanto o clímax de uma história. O silêncio que vem depois do fim, então… Vamos começar pelo começo. Entramos em “Viva o povo brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro, um dos grandes romances de nossa literatura, vendo o herói ser fuzilado. A sugestão de uma longa história passada, mas calada, insinua-se na estranha precedência de uma conjunção adversativa a adversar o ignorado: Contudo, nunca foi bem estabelecida a primeira encarnação do Alferes José Francisco Brandão Galvão, agora em pé na brisa da Ponta das Baleias, pouco antes de receber contra o peito e a cabeça as bolinhas de pedra ou ferro…