Vida de escriba, capítulo 345. Alguns anos atrás recebi de uma grande editora uma tarefa peculiar, que acabou se revelando tão desafiadora quanto divertida. Eles tinham um abacaxi na mão e queriam que eu o descascasse: haviam comprado de uma casa estrangeira os direitos de publicar em nosso país a autobiografia de um brasileiro (que vai ficar sem nome: além de sua identidade não ser fundamental para o que quero contar, o anonimato pode evitar alguns dentes rangidos em vão). O abacaxi se devia ao fato de que, ao contrário do que supunha inicialmente a editora nacional, a narrativa da vida do sujeito – em primeira pessoa, já foi dito que era uma autobiografia – só existia em inglês. Não havia nem sombra de um original em português que se pudesse usar. Descobriu-se então que por trás daquele livro de historinha simples, linear, havia uma trama um tanto intrincada. Os editores estrangeiros à frente do projeto tinham rejeitado inteiramente o manuscrito apresentado – não pelo próprio personagem, mas por um ghost writer, como é comum nesses casos – em português. Registre-se que ao agir assim estavam sendo apenas sensatos. Em vez de traduzir aquilo, haviam decidido contratar alguém para escrever…