Gabriel García Márquez “Cem anos de solidão” é um monumento cravado na história da literatura, ponto. Como os três ou quatro principais livros que o escritor colombiano publicou depois dele mantêm o sarrafo lá no alto, o solo sob seus pés parece firme. A reputação que falta fixar é a do homem público, a do “político”, papel que o ex-menino pobre e franzino de Aracataca passou a representar de modo praticamente profissional depois de se consolidar como celebridade planetária com o Nobel de literatura de 1982. A vaidade transoceânica era um dos lados menos favoráveis do baixinho Gabo. É óbvio o prazer que ele sentia no papel de mediador universal: o escritor no labirinto de sua própria influência, sob o peso de uma fama achachapante, brincando de resolver os problemas do mundo.(Leia mais.) João Ubaldo Ribeiro Eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1993 e vencedor do Prêmio Camões em 2008, o escritor baiano era “imortal” apenas no título honorífico. Seu principal romance, “Viva o povo brasileiro”, é imortal literalmente. Épico da nacionalidade, com sua narrativa espalhada por quatro séculos de história e amarrada com o fio mítico, lírico, cômico e irreverente da reencarnação dos personagens segundo a compreendem…
“Não sou chauvinista com meu país, mas sou chauvinista com a língua hebraica.” Estou conversando com o escritor israelense Amós Oz num canto tranquilo de um dos amplos espaços vazios do segundo andar do aristocrático hotel Copacabana Palace. Depois de muitas perguntas sobre literatura e política (que renderam essa entrevista), o papo desagua com naturalidade na língua, como se fosse um rio que corresse para o mar. Conversamos em latim contemporâneo, isto é, inglês. Sei tanto de hebraico, clássico ou moderno, quanto Amós Oz sabe de português – talvez um pouco menos. No entanto, já tendo me deparado muitas vezes com a metáfora do idioma como instrumento musical que todo escritor precisa dominar, entendo o brilho nos olhos do homem quando ele se derrama todo por uma língua antiga que por pouco não ficou congelada nos textos sagrados, perfeita e morta como o latim num poema de Ovídio. Salva há pouco mais de um século de um declínio que parecia inexorável, a língua em que escreve Oz vem se firmando nas últimas décadas, como o próprio Estado de Israel, sobre um ato de vontade política. “O hebraico moderno é um instrumento tremendo, porque é ao mesmo tempo antigo e moderno”,…
O Grande Prêmio Portugal Telecom conferido esta semana a meu romance “O drible” me deu vontade de compartilhar com os leitores, além da alegria por esse reconhecimento, algum tipo de presente que expressasse minha gratidão pelo carinho com que o livro foi recebido desde seu lançamento, em setembro do ano passado. Acabei indo buscar no almoxarifado aqui do computador uma cena que excluí da edição final e que, com um pouco de sorte, pode ter alguma graça como curiosidade para os leitores do livro, como uma faixa-bônus naquelas edições comemorativas dos discos de antigamente. Mais do que mera curiosidade, é possível que a cena seja também, no espírito das reflexões sobre o ofício de escrever que costumam frequentar este espaço, ilustrativa da importância de um certo desapego na hora da edição final de uma história. Eu gostava muito do personagem secundário que contracena com Neto, uma das figuras centrais de “O drible”, no trecho abaixo. Descrito como parecido com Sammy Davis Jr. ou Dom Pixote – o que é condizente com as imagens de cultura pop e lixo televisivo antigo que enchem a cabeça de Neto –, o pedreiro Sebastião surgiu para fazer uma ponta, mas chegou com força impressionante….
Leu-se no jornalão mexicano “El Excelsior” que a morte do comediante Roberto Bolaños deixou multidões de luto “em toda a América Latina, no Brasil e na Espanha”. Foi o adido cultural brasileiro no México, Gustavo Pacheco, quem me chamou a atenção para o detalhe, daquele tipo em que o diabo gosta de morar: pela lógica do jornal, que espelha uma percepção bastante comum, nosso país não está contido no conjunto “América Latina” e precisa ser nomeado à parte. À parte, pois é. Por acaso não será assim que gostamos de nos ver? Se é evidente que, histórica e politicamente, isso é só um erro de classificação, há vetores culturais poderosos que apoiam tal ideia. Isso ficou muito claro para mim na espetacular Feira do Livro de Guadalajara na última quinta-feira, quando me vi dividindo uma das mesas do programa Latinoamérica Viva com um escritor uruguaio, um argentino, um chileno e uma equatoriana. A língua é o que primeiro nos separa, claro – e certamente aquilo que mais dificulta a vida de um imprudente como eu, que decidi não levar nenhum texto pronto, ponderado e revisado para ler diante do público, como fizeram o chileno Nicolás Poblete e a equatoriana Maria…