É possível que para algumas pessoas a cena abaixo, um dos pontos culminantes do romance “O retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde, publicado em sua versão final em 1891, contenha um spoiler. No entanto, imagino que para os leitores habituais deste blog sua leitura apresente tanta novidade quanto a “revelação” de que Jekyll e Hyde são a mesma pessoa. Ou de que Diadorim é mulher. A intriga básica do livro mais famoso de Wilde, a do retrato que envelhece em segredo enquanto seu modelo permanece jovem, é uma daquelas que transbordaram do universo propriamente literário para se incorporar a um certo patrimônio de cultura geral. Os que conhecem a trama de ouvido e até os que já leram o livro têm muito a ganhar revisitando a cena abaixo, em que o pintor do quadro mágico, Basil Hallward, penetra no quarto secreto de Dorian Gray a convite deste e é apresentado ao impensável: o estado repugnante ao qual a vida de crime e devassidão do ex-amigo terminou por reduzir o retrato que, anos antes, ele havia pincelado com iguais medidas de talento e paixão pelo belo modelo. (Sim, o homoerotismo do livro foi considerado escandaloso na época, a ponto de…
FINADOS (MANTRA DO ESCRITOR OBCECADO) Cervantes morreu em 22 de abril de 1616. Shakespeare o acompanhou um dia depois, 23 de abril de 1616. Sterne R.I.P. em 18 de março de 1768. No século seguinte, também em março, dia 22, do ano de 1832: Goethe. Flaubert tinha então dez anos, e 58 ao parar de envelhecer, em 8 de maio de 1880. Machado foi fazer companhia a Brás Cubas no dia 29 de setembro de 1908. Mais dois anos e Tolstoi perdeu a guerra, tomara que para encontrar a paz: 20 de novembro de 1910. Em 3 de junho de 1924 foi a vez de Kafka sair da vida, mas aquilo era vida? Joyce começava então a escrever o Finnegans Wake. Em 13 de janeiro de 1941, levou-o a peritonite. Rosa completou sua travessia de homem humano em 19 de novembro de 1967, três dias depois de virar imortal. Em 1977, Nabokov se foi em 2 de julho e Clarice em 9 de dezembro, no pós-parto de Macabéa, um dia antes de completar 57. Conclusão: escrever é tão perigoso quanto viver. E eu mesmo não estou me sentindo muito bem. * O AMOR LITERÁRIO É A RAIZ QUADRADA DO ÓDIO…
“O mosteiro frio, austero, longe de mim, mosteiro monumental, de pedra, patrimônio histórico. Eu, de carne.” O confronto tão sucintamente expresso nessa descrição do Mosteiro de São Bento é a principal chave de leitura do mais conhecido livro de memórias do carioca Antonio Carlos Villaça (1928-2005), “O nariz do morto” (Civilização Brasileira), publicado em 1970. Cobrindo da infância ao início da idade adulta do autor, com destaque para o tempo em que, aos 21 anos, sua atormentada fé católica o levou a se internar no tradicional mosteiro carioca para virar monge (não deu certo), essa obra-prima contém algumas das melhores cenas que já li sobre a luta entre espírito e carne, sagrado e profano, permanência e finitude, dilemas com os quais o autor se debateu a vida inteira – e que a cena abaixo, brilhante vinheta de humor filosófico, captura com perfeição. (Para a resenha que publiquei neste blog em 2006, “O escritor que era monge que era escritor”, clique aqui.) O gordíssimo Villaça ficou mais conhecido como personagem do que como escritor. Dono de um arquivo implacável de anedotas dos bastidores da vida intelectual brasileira de seu tempo, que conheceu na intimidade, foi de fato um grande observador e…
O mistério que envolve a festejada escritora italiana Elena Ferrante pode começar a ser desvendado pelo leitor brasileiro com a publicação de “A amiga genial” (Biblioteca Azul, tradução de Maurício Santana Dias, 331 páginas, R$ 44,90), o primeiro dos quatro volumes que compõem sua chamada “série napolitana”. Isto é, desde que se tome como autobiográfico o romance narrado por Elena Greco, que reconstrói sua infância e adolescência num bairro pobre de Nápoles nos anos 1950. Apesar da diferença de sobrenome, tal identificação entre autora e personagem tem sido feita pela maior parte de uma crítica internacional entusiasmada, que tornou Ferrante, ao lado do também prolífico norueguês Karl Ove Knausgård, a coqueluche literária do momento. O argumento é que os dois, chamados simplesmente de “titãs” pela prestigiosa revista americana The New Yorker, driblariam o que a ficção tem de falso ao se desnudar em suas memórias. “Seus romances são intensamente, violentamente pessoais”, escreveu sobre Ferrante o respeitado crítico inglês James Wood. O problema mais óbvio com tal ideia é que, enquanto Knausgård escreve de modo explícito sobre a própria vida e se multiplica em entrevistas sobre isso, Ferrante é um ponto de interrogação. “Acredito que os livros, uma vez escritos, já…