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Que cena! Joyce entra com Bloom na casinha
Destaque , Que cena! / 29/08/2015

A cena abaixo é uma das mais famosas – e infames – de “Ulisses”, do irlandês James Joyce (“Ulysses” na edição da Penguin-Companhia, tradução de Caetano Galindo, 1112 páginas, R$ 50,00). Parte do que a fez tão especial pode escapar aos leitores de hoje, habituados a todo tipo de indiscrição literária: o escândalo provocado nas primeiras décadas do século XX pelo fato de Joyce ter acompanhado o personagem Leopold Bloom em sua ida matinal ao banheiro, jornal na mão, na cabeça a ideia de se livrar de uma prisão de ventre. Em vez de esperar do lado de fora, por pudor ou bom gosto, o escritor entra com Bloom no reservado malcheiroso e faz o que está determinado a fazer em seu romance estranho, excessivo, prodigioso (mais sobre ele aqui): narrar tudo o que se passa diante dos sentidos e dentro da cabeça de seus personagens naquele 16 de junho de 1904 em Dublin. O resultado é o esquete abaixo, com sua comicidade ultrajante que a excelente tradução de Galindo aproveita ao máximo. E que inclui até uma autoironia feroz, prova de que Joyce, ao escrever aquilo, divertia-se com o furor que ia causar: “Imprimem qualquer coisa hoje em dia”,…

Adjetivos são legais
Vida literária / 22/08/2015

Sempre achei que a campanha de difamação movida contra os adjetivos, como se eles fossem responsáveis por toda a subliteratura do mundo, errou a mão e avançou alguns quilômetros pelo terreno da injustiça. “Quando conseguir agarrar um adjetivo, mate-o”, aconselhou Mark Twain, naquele que é um dos mais famosos na longa lista de insultos dirigidos à “palavra de natureza nominal que se junta ao substantivo para modificar o seu significado, acrescentando-lhe uma característica” (a definição é do Houaiss). Adjetivos colorem o texto: não à toa, todos os nomes de cores são também adjetivos. É possível criar um belo quadro em tons de preto e branco, mas ninguém no mundo das artes plásticas chegaria ao extremo de condenar as cores como pragas: “Quando conseguir agarrar uma cor, mate-a!”. Aprender a usá-las, explorar suas harmonias e desarmonias, isso sim. Mas para tanto é preciso que estejam vivas. * Entende-se de onde vem a má reputação dos adjetivos. Por definição, eles têm mesmo uma tendência maior à futilidade do que os substantivos que escoltam: pendurados nestes, que trazem a substância no nome, são no máximo adjuntos, nunca a atração principal. Certo discurso beletrista – que ainda hoje há quem identifique ingenuamente com a…

‘Nora Webster’: a grandeza das coisas pequenas
Resenha / 15/08/2015

É fácil reconhecer que “Nora Webster”, do irlandês Colm Tóibín (Companhia das Letras, tradução de Rubens Figueiredo, 398 páginas, R$ 54,90), é um grande romance. Difícil é explicar por que é assim. Em outras palavras, a rendição do leitor às artes e artimanhas do autor é imediata, garantindo uma leitura imersiva e um interesse apaixonado pela protagonista e pelas pessoas que lhe são caras, mas o crítico tem tarefa mais cascuda: determinar o que, num texto que é um implacável exercício de contenção emocional e sobriedade narrativa, confere grandeza a uma história tão pequena, tão banal, e termina por desenhar na imaginação do leitor uma personagem feminina que parece viva como poucas na história da literatura. “Nora Webster” é um romance realista que cobre três anos na vida da personagem-título, entre o fim dos anos 1960 e o início dos 70. Dona de casa quarentona do interior da Irlanda, Nora acabou de ficar viúva quando o narrador em terceira pessoa começa a acompanhá-la com uma fidelidade que não vai esmorecer até o ponto final. Não há alternância de pontos de vista e a rigor, com exceção de algumas recordações esparsas de Nora, não há flashbacks. “Isso era passado, pensou Nora…

‘O vento que arrasa’, uma aquarela argentina
Resenha / 01/08/2015

Um carro tem defeito no meio do nada, numa estrada deserta na província argentina do Chaco. A bordo dele vão um pastor evangélico itinerante e sua filha adolescente. Rebocados até a oficina de beira de estrada de um mecânico solitário e grosseirão, que vive ali na companhia de um garoto silencioso, também adolescente, e um número indefinido de cachorros, pai e filha terão que esperar que o carro seja consertado para seguir viagem. Com esses elementos escassos, a escritora argentina Selva Almada compôs a narrativa “O vento que arrasa”, publicada por lá em 2012 e agora lançada no Brasil (Cosac Naify, tradução de Samuel Titan Jr., 128 páginas, R$ 29,90). Recebido com entusiasmo crítico incomum em seu país, o livro foi eleito o melhor lançamento da ficção argentina naquele ano, em votação organizada pela referencial editora e livraria Eterna Cadencia, e sai aqui com orelha empolgada da crítica Beatriz Sarlo, que o chama de “romance surpreendente” de “uma narradora original”. Em primeiro lugar, será preciso corrigir a classificação de “O vento que arrasa” como romance. Trata-se sem dúvida alguma de uma novela, ainda que generosamente engordada pelo papel robusto (Pólen Bold 90) e pelas dimensões da mancha gráfica. Essa correção…