A cena abaixo é uma das mais famosas – e infames – de “Ulisses”, do irlandês James Joyce (“Ulysses” na edição da Penguin-Companhia, tradução de Caetano Galindo, 1112 páginas, R$ 50,00). Parte do que a fez tão especial pode escapar aos leitores de hoje, habituados a todo tipo de indiscrição literária: o escândalo provocado nas primeiras décadas do século XX pelo fato de Joyce ter acompanhado o personagem Leopold Bloom em sua ida matinal ao banheiro, jornal na mão, na cabeça a ideia de se livrar de uma prisão de ventre. Em vez de esperar do lado de fora, por pudor ou bom gosto, o escritor entra com Bloom no reservado malcheiroso e faz o que está determinado a fazer em seu romance estranho, excessivo, prodigioso (mais sobre ele aqui): narrar tudo o que se passa diante dos sentidos e dentro da cabeça de seus personagens naquele 16 de junho de 1904 em Dublin. O resultado é o esquete abaixo, com sua comicidade ultrajante que a excelente tradução de Galindo aproveita ao máximo. E que inclui até uma autoironia feroz, prova de que Joyce, ao escrever aquilo, divertia-se com o furor que ia causar: “Imprimem qualquer coisa hoje em dia”,…
Sempre achei que a campanha de difamação movida contra os adjetivos, como se eles fossem responsáveis por toda a subliteratura do mundo, errou a mão e avançou alguns quilômetros pelo terreno da injustiça. “Quando conseguir agarrar um adjetivo, mate-o”, aconselhou Mark Twain, naquele que é um dos mais famosos na longa lista de insultos dirigidos à “palavra de natureza nominal que se junta ao substantivo para modificar o seu significado, acrescentando-lhe uma característica” (a definição é do Houaiss). Adjetivos colorem o texto: não à toa, todos os nomes de cores são também adjetivos. É possível criar um belo quadro em tons de preto e branco, mas ninguém no mundo das artes plásticas chegaria ao extremo de condenar as cores como pragas: “Quando conseguir agarrar uma cor, mate-a!”. Aprender a usá-las, explorar suas harmonias e desarmonias, isso sim. Mas para tanto é preciso que estejam vivas. * Entende-se de onde vem a má reputação dos adjetivos. Por definição, eles têm mesmo uma tendência maior à futilidade do que os substantivos que escoltam: pendurados nestes, que trazem a substância no nome, são no máximo adjuntos, nunca a atração principal. Certo discurso beletrista – que ainda hoje há quem identifique ingenuamente com a…
É fácil reconhecer que “Nora Webster”, do irlandês Colm Tóibín (Companhia das Letras, tradução de Rubens Figueiredo, 398 páginas, R$ 54,90), é um grande romance. Difícil é explicar por que é assim. Em outras palavras, a rendição do leitor às artes e artimanhas do autor é imediata, garantindo uma leitura imersiva e um interesse apaixonado pela protagonista e pelas pessoas que lhe são caras, mas o crítico tem tarefa mais cascuda: determinar o que, num texto que é um implacável exercício de contenção emocional e sobriedade narrativa, confere grandeza a uma história tão pequena, tão banal, e termina por desenhar na imaginação do leitor uma personagem feminina que parece viva como poucas na história da literatura. “Nora Webster” é um romance realista que cobre três anos na vida da personagem-título, entre o fim dos anos 1960 e o início dos 70. Dona de casa quarentona do interior da Irlanda, Nora acabou de ficar viúva quando o narrador em terceira pessoa começa a acompanhá-la com uma fidelidade que não vai esmorecer até o ponto final. Não há alternância de pontos de vista e a rigor, com exceção de algumas recordações esparsas de Nora, não há flashbacks. “Isso era passado, pensou Nora…
Um carro tem defeito no meio do nada, numa estrada deserta na província argentina do Chaco. A bordo dele vão um pastor evangélico itinerante e sua filha adolescente. Rebocados até a oficina de beira de estrada de um mecânico solitário e grosseirão, que vive ali na companhia de um garoto silencioso, também adolescente, e um número indefinido de cachorros, pai e filha terão que esperar que o carro seja consertado para seguir viagem. Com esses elementos escassos, a escritora argentina Selva Almada compôs a narrativa “O vento que arrasa”, publicada por lá em 2012 e agora lançada no Brasil (Cosac Naify, tradução de Samuel Titan Jr., 128 páginas, R$ 29,90). Recebido com entusiasmo crítico incomum em seu país, o livro foi eleito o melhor lançamento da ficção argentina naquele ano, em votação organizada pela referencial editora e livraria Eterna Cadencia, e sai aqui com orelha empolgada da crítica Beatriz Sarlo, que o chama de “romance surpreendente” de “uma narradora original”. Em primeiro lugar, será preciso corrigir a classificação de “O vento que arrasa” como romance. Trata-se sem dúvida alguma de uma novela, ainda que generosamente engordada pelo papel robusto (Pólen Bold 90) e pelas dimensões da mancha gráfica. Essa correção…