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McEwan, Zadie e o limite de quinze palavras por dia

Entre as muitas delícias da longa entrevista (em inglês, acesso gratuito) que Zadie Smith fez com Ian McEwan em 2005, publicada pela revista The Believer, minha preferida aparece já no texto introdutório da autora de “Sobre a beleza”. Zadie conta que, ainda universitária e aspirante ao mundo das letras, foi levada por uma amiga enturmada à festa de casamento de McEwan, já então um escritor estabelecido (embora ela confesse que, na época, estava ocupada imitando Martin Amis, também presente à festa). “Parece”, disse minha amiga com ar de entendida, quando observávamos McEwan rodopiar com sua nova esposa pela pista de dança, “que ele escreve apenas quinze palavras por dia.” Eis uma informação infeliz para se dar a um escritor aspirante. Eu era terrivelmente suscetível ao poder do exemplo. Se me dissessem que Borges corria três milhas toda manhã e depois plantava bananeira numa tina de água antes de se sentar para escrever, eu me sentiria obrigada a tentar isso. O espectro do limite de quinze palavras ficou comigo por um longo tempo. Três anos depois, quando estava escrevendo “Dentes brancos”, lembro-me de pensar que todos os meus problemas se originavam do excesso de palavras que me sentia impelida a escrever…

A insustentável leveza de um golaço

Um jornal de Belo Horizonte pisou na bola da linguagem e, em chamada de primeira página, classificou de “ontológico” o gol marcado por Neymar aos 39 minutos e meio do segundo tempo da partida entre Barcelona e Villareal pelo Campeonato Espanhol, domingo passado (8/11), no Camp Nou. Acertou sem querer, como aquele centroavante tosco que arma uma bomba e, errando o chute, roça na bola tão de leve que ela engana o goleiro e desliza para dentro da meta. A confusão entre antologia (coletânea) e ontologia (o estudo do ser enquanto ser, para além de todas as contingências) traz para a conversa um viés filosófico inesperado. O erro do diário mineiro é bem-vindo. Um daqueles momentos que nascem condenados à imortalidade no YouTube, será que o gol de Neymar aguenta o peso de ser lido e relido como uma demonstração concisa do que é ser, para além de todas as contingências, um gênio da bola? Sem a pretensão de substituir as imagens, obrigatórias para qualquer pessoa que não odeie futebol, vamos ao lance. A poucos minutos do fim, o Barcelona vence de 2 a 0 – o primeiro de Neymar, o segundo do centroavante uruguaio Luis Suárez – uma partida…

Poe e a filosofia da edição

Num debate na Biblioteca de São Paulo com a presença de outros finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura, ano passado, um rapaz na audiência nos perguntou – a Adriana Lisboa, Michel Laub e Flavio Cafiero, além de mim – o que pensávamos do “método” de escrita defendido por Edgar Allan Poe em seu famoso ensaio “A filosofia da composição”. Foi um prazer inesperado ver surgir numa conversa literária de hoje, e trazido por um leitor jovem, o texto de 1846 em que Poe explica passo a passo como escreveu o poema “O corvo”. Trata-se de um velho favorito meu, ode curiosa ao planejamento meticuloso e à intencionalidade como os melhores conselheiros do escritor – uma ode composta, o que é melhor, por um cultor de histórias fantásticas, sombrias, fantasmagóricas, normalmente associadas ao oposto do racionalismo solar que o ensaio defende. O fascínio que “A filosofia da composição” provocou em mim quando o li pela primeira vez, muitos anos atrás, está longe de morrer, mas faz tempo que foi temperado por ceticismo. Diz o escritor americano que “O corvo” foi escrito “com a precisão e a sequência rígida de um problema matemático”. E promete: “É meu desígnio tornar manifesto que…

‘Não é meia-noite…’: Lobo Antunes no labirinto da memória
Resenha / 07/11/2015

O novo lançamento do escritor português António Lobo Antunes no Brasil, o romance “Não é meia-noite quem quer” (Alfaguara, 480 páginas, R$ 59,90), publicado em Portugal em 2012, oferece munição tanto a seus fãs incondicionais quanto a seus detratores. Estamos falando de um velho embate da cultura lusitana, a polarização entre os que acreditam estar diante do único escritor genial em atividade na língua portuguesa e os que julgam ter sido o autor lisboeta de 73 anos engolido pela própria vaidade de malabarista das palavras, terminando por sucumbir ao vazio do exibicionismo formal. Naturalmente, o leitor não precisa se alinhar com nenhum desses lados, mesmo porque há um pouco de verdade em ambos. Antes de se lançar à aventura do livro, contudo, deve saber que “Não é meia-noite…” é um romance exigente que demandará sua adesão incondicional, uma espécie de profissão de fé renovada a cada página (às vezes penosamente) na recompensa proporcionada por uma história que gira sobre si mesma. Na primeira metade de sua carreira, Lobo Antunes, psiquiatra de formação, perseguia algum equilíbrio entre a tessitura da prosa – que sempre foi caudalosa, musical e poética – e o enredo. Por exemplo: um romance como “As naus” (1988),…

Da arte de ‘acariciar os detalhes’

Então é só isso? Umas poucas palavras bem colocadas e pronto, ali está o leitor na ponta da linha, anzol cravado na bochecha? Sim, mas também pode ser só isso: uma única palavra em falso e o peixe desaparece nas profundezas para nunca mais passar perto do seu bote. O que vai ser? Em qualquer praia estética, esteja ele muito ou nada interessado em ser acessível a um grande número de leitores, acredito que esta preocupação habite a cabeça de todo escritor digno desse nome, isto é, qualquer um que escreva para ser lido por alguém e não apenas para expressar seu eu profundo: como dar às palavras, uma após a outra, uma certa ressonância de verdade? Estamos em terreno traiçoeiro. Em primeiro lugar convém deixar claro que a palavra verdade não tem aqui – não ainda – a menor fumaça filosófica, histórica ou mesmo emocional. Importa menos “a verdade” do autor ou da história que ele conta do que “uma certa ressonância de verdade”. Sim, é claro que uma dimensão está ligada à outra em algum nível profundo, mas vamos supor que ainda não mergulhamos o suficiente para chegar lá. Estamos na superfície do texto, mal equilibrados em nosso…