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Quixote, o maluco que inventou a liberdade
Resenha , Vida literária / 22/04/2016

Advertência: o fôlego deste artigo é pouco compatível com a brevidade internética. Ele foi escrito para a edição de papel da revista Veja que está agora nas bancas, como parte do material especial sobre os 400 anos da morte de Cervantes – completados hoje – e de Shakespeare, e dividiu as páginas com um texto igualmente extenso sobre o bardo assinado por Jerônimo Teixeira. Como se diz na Espanha: Vale. * A imagem é mais velha e sábia do que todos nós: o cavaleiro esguio em seu cavalo magro, ao lado do escudeiro gordinho montado num burro, contra uma paisagem árida onde se veem, ao longe, moinhos de vento. Foi atualizada nos últimos quatro séculos por tantos pintores e ilustradores, dos mais renomados aos mais chinfrins, que ocupa lugar de honra na galeria de clichês culturais à qual praticamente todos os seres humanos – letrados e não letrados – têm acesso. Se essa galeria não se destaca pela quantidade de obras, o bom gosto também não é seu ponto forte: nos varais de feira hippie, a apropriação pop da alta cultura costuma exibir o pôster da dupla ao lado daquele em que o mendigo de chapéu-coco encara a câmera com…

O inseto de Kafka era barata ou besouro?

A única resposta consistente para a dúvida enunciada no título acima, uma das mais resistentes de toda a literatura do século XX (e atualizada de forma fortuita por um imenso blatídeo que apareceu há pouco aqui no banheiro), é que não sabemos. O texto de “A metamorfose”, de Franz Kafka, simplesmente não nos fornece elementos suficientes para dizer. Foi mesmo uma barata, no entanto, o bicho que pousou no imaginário da maior parte dos leitores da novela que começa com o pobre Gregor Samsa acordando em sua cama transformado num inseto. Por quê? Provavelmente porque o destino de Samsa é asqueroso demais e não há nada, em todo o reino animal, que supere a barata na escala da asquerosidade. Elementar, meu caro Watson, poderia acrescentar neste ponto um amante do lugar-comum – uma frase que o detetive inglês Sherlock Holmes nunca pronunciou em nenhuma das histórias escritas por Arthur Conan Doyle, o que, juntamente com a “barata de Kafka”, prova que nem sempre o texto é soberano. Na esteira do êxito popular de um livro costuma vir uma certa aura, uma sobra de sentido contra a qual é difícil lutar. No caso de Holmes, a frase que não existe textualmente…