Um papagaio francês é o narrador do quinto romance de Luis Fernando Verissimo, “A décima segunda noite” (Objetiva, 148 páginas, R$ 28,90), que chega às livrarias no dia 16 de novembro. Segundo título da coleção Devorando Shakespeare, dedicado a histórias baseadas na obra do dramaturgo inglês, o livro se inspira na comédia “Noite de Reis”. Um dos maiores cronistas da literatura brasileira em qualquer época, Verissimo costuma se sair bem nas narrativas longas – em seu caso, nem tão longas assim –, que só escreve quando lhe encomendam. Foi assim com “O jardim do diabo” (L&PM, 1988), o primeiro e preferido deste escriba, e também com “Gula – O clube dos anjos” (Objetiva, 1999), “Borges e os orangotangos eternos” (Companhia das Letras, 2000) e “O opositor” (Objetiva, 2004). O primeiro título da coleção Devorando Shakespeare foi “Trabalhos de amor perdidos”, de Jorge Furtado. O próximo será “Sonhos de uma noite de verão”, de Adriana Falcão. Abaixo, o trecho inicial de “A décima segunda noite”:
Mon Dieu, mon Dieu, um gravador. Deus dos papagaios, me acuda. Já ouvi minha voz gravada. Quase silenciei para sempre. É o som do caldeirão rachado com o qual pretendemos comover as estrelas e só conseguimos fazer dançar os ursos, como escreveu Flaubert sobre a linguagem. Tente dizer qualquer coisa séria, ou profunda, com voz de papagaio. Mesmo em francês. Impossible. Foi por isso que não me deram atenção, e a comédia que vou contar quase virou tragédia. Eu avisei, me esganicei, mas me ouviram?Diziam “Le perroquet, qu’est qu’il dit?”. E riam. Eu avisando que não era comédia, era drama, era tragédia. Tinha paixão, traição, perfídia, sociologia. E riam, riam. Culpa da voz, minha sina. Com voz de papagaio, nada é importante, nada é trágico. Dizem que Shakespeare lia suas comédias com voz de papagaio para seus atores, que nunca entendiam o que ele escrevia. Só assim eles sabiam que não era tragédia. Não havia gravadores no tempo de Shakespeare. Quantos não devem sua fama póstuma ao fato de não haver um gravador por perto? O mundo talvez fosse outro se descobrissem que Péricles tinha a voz fina, Napoleão a língua presa e… Mas vamos à entrevista. Sei o que vocês querem ouvir. É sobre a santa que era santo, nespá? Sobre o passado. Pelo menos estão interessados no que eu tenho para contar. Só o que ouço aqui é “Le perroquet, qu’est qu’il dit?” e “Tais toi, Henri!”. Fazem pouco das digressões de um caldeirão rachado. Esse é outro terror do gravador: ele não permite digressões. E o que é um papagaio sem digressões? Essa fita girando, girando, como a vida se aproximando do fim, nos obrigando a ser sucintos e breves. É contra a natureza dos papagaios serem sucintos e breves. Durante séculos, milênios, gerações e gerações, vivemos com a capacidade de falar sem saber que a tínhamos. Imaginem. Uma espécie inteira que se autodesconhecia. Imitávamos uns aos outros, imitávamos os outros bichos e os sons da floresta, mas só quando ouvimos um humano falar, pela primeira vez, descobrimos este nosso talento para articular palavras. E descobrimos o que nos faltara durante gerações e gerações de loquacidade desperdiçada e sons desconexos:assunto. Até hoje,em florestas desabitadas, papagaios selvagens voam em bandos cacofônicos sem conhecer a delícia de fazer uma frase completa, os prazeres da prosódia. É em nome deles que eu falo tanto assim. E para recuperar o tempo perdido, o nosso tempo sem assunto. Eu estaria traindo a minha ascendência se fosse sucinto e breve. Eu… Está bem, a história. Vamos a ela. Está gravando? Isso é um gravador ou uma caixa de pílulas? Ridicule. Mas vamos lá.
Antes, alguns dados autobiográficos. Un peu de moi meme. Como cheguei ao salão Illyria. Não é digressão, é background. Como aconteceu de eu estar aqui, pintado de verde e amarelo, como parte da decoração de um salão de beleza em Paris, para ver e ouvir tudo e viver para contar o que vi e ouvi. Dois pontos. Sou descendente de um daqueles papagaios que vieram com os índios Tupinambás do Brasil para a recepção a Henri II em Rouen, no norte da França, em 1550. Quando armaram uma falsa maloca,com cinqüenta Tupinambás emplumados e cinqüenta franceses pintados de índio, para mostrar ao rei como era a vida na recém-descoberta Terra dos Papagaios. Nosso papel na encenação era sermos coloridos e exóticos e providenciarmos o som ambiente tropical, mas meu antepassado direto, que já tinha o meu espírito crítico, escapou da maloca, voou sobre a multidão e cagou na cabeça de Montaigne, inspirando-o a escrever seu ensaio sobre o primitivo, depois pousou no ombro do rei, que o achou “charmant ” e o levou para o aviário da sua favorita Diane de Poitiers, no castelo de Chenonceaux. Tudo isto é especulação minha mas sinto que há vestígios de nobreza no meu legado, resquícios claros de uma “vie en chateau ” e por que não teria sido entre os pavões entediados de Chenonceaux, no aviário da favorita do último dos Valois, o desafortunado Henri II em fim de reinado,acossado por dívidas e pela sífilis? Não deve ser por acaso que meu nome é Henri, talvez um nome herdado por todos da minha linhagem, junto com um acurado senso da nossa própria finitude, desde o encontro do primeiro Henri com o rei condenado, qui sais-je? Sei que nos 450 anos que nos separam da festa em Rouen nossa plumagem foi perdendo a cor. Eu nasci em Paris e a minha cor cinzenta é a do seu céu de inverno. Cinzenta, sim. Este verde e amarelo é tinta. Idéia da Negra. Quando o Orsino comprou o salão e disse que queria um ambiente brasileiro a Negra se encarregou da decoração e me voilá, verde e amarelo num poleiro de plástico, com fundo musical de Antônio Carlos e Jocaffi, “Você abusou ” o dia inteiro, mas essa é outra digressão. Meu primeiro dono, que eu me lembre, foi um historiador francês da escola dos Annales. Um intelectual, com gola roulé, barba por fazer, asa, tudo. Aprendi muito com o Jean-Paul. História francesa, como fazer uma omelette baveuse, como economizar papel higiênico usando L’Humanité e filosofia em geral. Ele trazia mulheres para o apartamento, não para treparem, para conversarem. Conversa, conversa, conversa e eu ali, pequenininho mas ouvindo tudo, gravando e aprendendo tudo. Pensei que o que faziam era uma forma requintada de sexo oralizado até me dar conta de que “annales” não tinha nada a ver com sodomia e… Hein? A história, certo. Vamos à história.
26 Comentários
Merci, Sergio! Merci beaucoup. Vc fez este dia chato em que preciso ir à Embaixada pra votar, começar de maneira completamente especial!
Je t’embrasse!
Será que há um jogo intertextual com o livro “O papagaio de Flaubert”, do Julian Barnes?
Não sei se é erro do autor ou de revisão da editora, mas a frase “Le perroquet, qu’est qu’il dit?” está errada. O certo é: “… qu’est-ce qu’il dit”. Como aparece o mesmo erro duas vezes… (Desculpa, parece pretensioso dizer, mas não resisti).
É, só falta mesmo este analista de Bagé entrar também para a ABL e, vestindo a camisa do Internacional e com uma cuia de chimarrão aos lábios, dedicar-se a especular sobre Ernst Jünger com seus pares José Sarney, Paulo Coelho, Ivo Pitanguy, Mindlin etc…
Doctorow é uma forma socialmente aceitável de americanofilia….
Avellar, me desculpa, mas eu acho que você não está falando coisa com coisa.
Em primeiro lugar: O Luiz Fernando Veríssimo pode não ser um escritor de romances exatamente de “primeira linha” (muito por conta de outras atividades/interesses dele), mas também não é um merda qualquer. Querer compará-lo (ou melhor, igualá-lo) a criaturas do porte do já-morto Roberto Marinho e do nosso mago preferido é, além de bobo, ingênuo. Revela que você não pensou (ou não leu) muito antes de escrever seu comentário.
Segundo: atacar o Mindlin, que tanto faz pelas Letras brasileiras, e também colocá-lo no mesmo saco com figuras como o Pitanguy e o Sarney, é de uma idiotice atroz.
Desculpa a franqueza. Sei que, em nosso Século das trevas, não é de bom-tom.
Ah, já ia me esquecendo: se você estiver falando de E. L. Doctorow, saiba que ele é um PUTA escritor. Não sofro de americanofilia (sou vítima de francofilia), mas adoro os textos dele. Melhores do que os de muito escritor brasileiro premiado por aí. Uma aula, meu caro, uma aula.
Doce Stockler,
Não estamos em séculos de trevas. Veríssimo erra nas crases, E. L. Doctorow não chega aos pes de Dyonelio Machado e o acadêmico Mindlin fez tanto para a “curtura”nacional quanto o também imortal General Lyra Tavares, vulgo “Adelita”…
Bom domingo. Vote bem. Vote nulo.
Mon Dieu, mon Dieu, pelo andar da carruagem este novo romance será mais uma nova droga lançada ao público! Vamos conferir…
Mon ami Verissimô, que artifícios teus nos fará soltar um pouco essa mandíbula presa de tédio?
Já que você anuncia em primeira mão esse livro do Veríssimo, gostaria que você fizesse um comentário também sobre o recente livro do Dalton Trevisan, bem como sobre a colher de chá que a revista Piauí dá com um conto do Rubem Fonseca (por sinal, alvissareiro), que lançará logo mais uma obra.
Francisco, uma porcaria esse conto do Rubem Fonseca, por sinal….
Esse ai é o Alckmin.
Sr. Sérgio Rodrigues, por acaso esqueceu do livro “O Opositor” da coleção 5 Dedos de Prosa?
Por acaso ele não seria um romance também?
Miriam é a “leitora sensata”:sua insensatez causa a miopia sobre sua saúde e realidade.
Sr. Jorjão, por acaso “O opositor” deve ser incluído nessa lista, sim. É no mínimo uma novela, mas o mesmo pode ser dito de outros romances do Verissimo. Estranhamente, “O opositor” não aparece na lista oficial dos romances do autor, em sua página no Portal Literal: está listado entre os livros de crônicas. Mas é justo incluí-lo aqui, obrigado.
Realmente, Francisco. Aquele conto do Rubem Fonseca é uma obra-prima da literatura brasileira, né? De uma densidade literária que surpreende. Que coisa!
A leitora dá valor ao Dalton ou esse não faz literatura que preste igualmente?
Francisco, não seja leviano com minhas palavras. Em momento algum eu disse que Rubem Fonseca não faz literatura de qualidade. Minha crítica foi ao conto que ele publicou na Piauí. Aliás, que coragem a dele. O conto é muito ruim.
Enfim, não entendo essas pessoas (você, inclusive) que tomam como ofensa pessoal uma crítica a um texto específico de determinado autor. Rubem Fonseca não é uma máquina de obras-primas. Ninguém é. Todos estamos sujeitos a cometer textos ruins. Mas é fundamental ter autocrítica e vergonha suficientes para jogar no lixo o que merece ir para o lixo (ou para a gaveta), coisas que faltaram a ele, vale dizer.
Bem, não levei para o campo pessoal e elogiei o conto do Fonseca por saber que ele tem pontos baixos em sua obra, como os livros Pequenas Criaturas e O Diário de um Fescenino; o conto Miriam, francamente, parece-me uma retomada do Rubem em recortar criticamente nossa realidade brutal e desigual. Quando ele se atém apenas à libido, seu resultado é sofrível, porém, se retrata nosso quadro social, sua literatura merece elogios. Curiosidade: aponte-me um bom escritor para você.
Seja um pouco mais específico.
Apenas diga-me um bom texto,então, que você tenha lido, seja conto ou romance.
Francisco, autor estrangeiro, autor nacional? contemporâneo? do século XIX? conto? romance? poesia? Esse teu pingue-pongue é bem difícil. Não sou leitora de um livro só. Se assim fosse, seria mais fácil te responder.
Contos, só pra citar alguns dos mais marcantes de todos os tempos para mim: “Peru de Natal”, do Mário de Andrade, e “Feliz Aniversário”, da Clarice.
Ótimo que você não se prenda a um livro só, contudo o responsável por sua qualidade literária é um gênio de carne e ossos. Quando leio algo bom, desejo ler outros escritos do mesmo autor. Conhece Raduan Nassar? João Antônio? Murilo Rubião? Juarez Barroso e Moreira Campos( excelentes contistas cearenses)? Sobre Moreira Campos, Rachel de Queiroz dizia que se ele morasse no Sudeste, seria aclamado como o excelso contista que é; toda sua produção mantém um alto nível, daí conhecer não apenas um só livro de um autor, e sim, obter uma visão geral de sua produção.
ih, gente chata… rubem fonseca também é chato. ou pelo menos agora ficou. veríssimo sempre foi. bom mesmo é o maurício de souza que vai fazer um maguinho para que a mônica o trucide todinho…
Eu ainda não li mas o livro me foi recomendado por um amigo que vê na literatura não somente fonte de aprendizado mas também de prazer e diversão. É tudo que espero desse livro, a princípio