O Grande Prêmio Portugal Telecom conferido esta semana a meu romance “O drible” me deu vontade de compartilhar com os leitores, além da alegria por esse reconhecimento, algum tipo de presente que expressasse minha gratidão pelo carinho com que o livro foi recebido desde seu lançamento, em setembro do ano passado.
Acabei indo buscar no almoxarifado aqui do computador uma cena que excluí da edição final e que, com um pouco de sorte, pode ter alguma graça como curiosidade para os leitores do livro, como uma faixa-bônus naquelas edições comemorativas dos discos de antigamente.
Mais do que mera curiosidade, é possível que a cena seja também, no espírito das reflexões sobre o ofício de escrever que costumam frequentar este espaço, ilustrativa da importância de um certo desapego na hora da edição final de uma história.
Eu gostava muito do personagem secundário que contracena com Neto, uma das figuras centrais de “O drible”, no trecho abaixo. Descrito como parecido com Sammy Davis Jr. ou Dom Pixote – o que é condizente com as imagens de cultura pop e lixo televisivo antigo que enchem a cabeça de Neto –, o pedreiro Sebastião surgiu para fazer uma ponta, mas chegou com força impressionante.
Uma tarde, acredito que dois ou três dias depois de escrever a cena em que Sebastião nasce, entrando pela porta do apartamento de Neto para examinar uma mancha de umidade na parede, atendi o interfone e ouvi o porteiro do prédio me perguntar se podia mandar subir o pedreiro indicado pelo condomínio para resolver um pequeno problema na varanda. “O nome dele”, ouvi estarrecido, “é Sebastião.”
Julguei ter entendido mal. “Como?”
“Sebastião. Seu Sebastião. Está subindo.”
Ainda não tinha assimilado a coincidência espantosa quando a campainha tocou e eu pensei, pelo puro prazer de flertar com o absurdo: “Agora só falta o sujeito ser a cara do Sammy Davis Jr.”.
Era.
Que conclusão tirar disso? Que coinciências realmente incríveis acontecem? Que coincidências não existem – são apenas a face visível de mecanismos ocultos que passamos longe de compreender? Mais inclinado ao ceticismo, o que pensei a princípio foi que Sebastião tinha vindo para ficar.
E apesar disso ele não está no livro. Sua cena, concebida para enfatizar o dom-juanismo meio covardão de Neto com as moçoilas pobres da vizinhança, acabou me parecendo supérflua. Quebrava o ritmo, atrasava o andamento numa altura em que se exigia aceleração, conduzia a história por uma subtrama – que chegou a ter mais páginas escritas – condenada a ficar um tanto desamarrada na estrutura final do livro.
Mesmo assim, como eu disse, sempre gostei de Sebastião. Ainda gosto. Fico contente de ter a chance de tirá-lo do almoxarifado.
A porta do apartamento – que ninguém jamais atravessava além dele mesmo e de Neucy, a diarista – se abriu para um homem franzino de meia idade vestido mais como contínuo do que como pedreiro: calça cinza de tergal, camisa social branca. Tinha uma cara alongada e olhos compridos e pendurados que lembravam personagens antigos como Sammy Davis Jr. e Dom Pixote. Mal trocaram uma palavra. Sebastião podia ser calado mas era curioso. Encompridou mais ainda os olhos na direção dos objetos de época que decoravam a sala: toca-discos de pés-palitos, televisão redonda de astronauta, duas cadeiras de acrílico de frente para o sofá de zebra acima do qual reinavam os pôsteres de Lost in Space e The Time Tunnel. Parado ali de boca aberta, dava a impressão de que poderia ficar assim por horas.
Lá dentro, resmungou Neto, fazendo com o braço um movimento de varredura, e o arrastou até a parede doente. Ficaram olhando para a mancha em silêncio por um minuto inteiro antes que Sebastião esticasse um dedo para sondar a superfície úmida. Mais um minuto e perguntou quando aquilo tinha começado. Neto não tinha uma resposta precisa. Faz um tempo, disse.
Quando o homem pediu licença para entrar no banheiro a fim de verificar a situação do outro lado da parede, onde os azulejos decorados fora de moda não exibiam dano algum, Neto aproveitou para sair de perto. Na cozinha pingou detergente na esponja e atacou a montanha de louça suja dentro da pia, que tinha desabado feito uma torre de Pisa cansada de suspense sobre a bancada de mármore à espera da visita semanal de Neucy. Três copos, dois pratos e meia dúzia de talheres depois, calculando que o pedreiro já teria chegado a um orçamento, abandonou o resto da sujeira.
O homem estava de novo no corredor, mas agora dava as costas para a mancha e examinava com seus olhos desabados a parede oposta, onde Neto tinha um quadro de metal cheio de fotos presas com pequenos ímãs coloridos.
Seu coração deu uma pancada forte, uma só. Sentiu que as entranhas se retorciam em lenta expectativa. Parou no meio do corredor apertando o pano de prato com as duas mãos e esperando que Sebastião se encabulasse de bisbilhotar daquele modo descarado a vida alheia. O homem não tinha como não perceber que ele estava ali, mas continuou fixado nas fotos, de queixo caído.
Achou outra infiltração aí?
Só então o cara desviou o olhar da galeria das namoradas de Neto – duas décadas de Dayannes, Gislleynes, Jéssykas, Emmanuellys, Brittneys e Marayahs, além de uma ou outra Bruna ou Maria, exceções batizadas por pais fora de sintonia com seu tempo – e transferiu pachorrentamente o foco para o dono da casa. Por trás de sua película nublada de indolência ou alcoolismo, aqueles olhos tinham agora uma fagulha de confusão, talvez de mágoa.
São amigas do senhor?
Não é da sua conta.
Pois é, aí que está.
Não entendi.
O senhor tem uma foto da minha sobrinha. Por quê?
Mais uma pancada violenta, desta vez seguida de outras também fortes. Mediu o intruso e calculou que, embora não fosse alto, ganhava de Sebastião por meio palmo, além de ser mais jovem e aparentar um pouco mais de vigor. Claro que a vantagem podia acabar se revelando ilusória no embate entre um revisor de texto e um trabalhador braçal. Mesmo assim julgou-se em segurança pelo menos momentânea.
Quem é a sua sobrinha?
Sebastião apontou uma foto no canto inferior esquerdo do mural.
A Miquélly, disse. Auxiliar de enfermagem. Mãe do Luan. Casada com o Hudson, sargento da PM.
Mas olha que coincidência. Mundo pequeno.
Miquélly era uma Grace Jones de olhos pendurados – pois é – com quem Neto tinha saído por não mais de três semanas, cerca de sete anos antes. Por azar, sua foto pertencia à seção mais comprometedora da galeria. Com as pupilas vermelhas cravadas na câmera e a ponta da língua se projetando obscena entre os dentes, a moça bem que tinha tentado cobrir os seios pontudos com o lençol, seu braço direito fora de foco era puro movimento, mas o fotógrafo havia sido mais rápido. A cama pertencia a algum motel, embora fosse difícil dizer qual. O flash tinha estourado na parede espelhada do fundo. Era uma foto cheia de problemas técnicos mas interessante, com um clima de sensualidade crua que Neto apreciava.
Faz tempo, disse. Muitos anos, não lembro bem. Nunca mais vi a Miquélly. Diz que eu mandei um abraço.
Num lampejo que o breu não demorou a engolir ouviu uma gargalhada e viu a correntinha dourada de tornozelo, pés grandes e ossudos com unhas cobertas de esmalte branco descascado. Caixa no café de uma livraria do Shopping da Gávea, Miquélly discorria com voz de contralto sobre o sonho de ser aeromoça. Era mais que memória, era uma visão, dois segundos depois já não estava lá.
O pedreiro fitou por mais algum tempo a foto da sobrinha. Ao se virar para o dono da casa já não parecia confuso nem magoado. Parecia triste.
Ela podia ser sua filha.
Não podia, respondeu Neto. Para isso, você teria que ser meu irmão ou meu cunhado, e as duas coisas estão fora de questão.
8 Comentários
Parabéns, Sérgio. Não tenho muito o que acrescentar ao que já foi dito sobre sua recente conquista. Vida longa a você e à trincheira do Todoprosa.
Parabéns pelo prêmio, xará! Você merece! Abraços!
Caros Silvio e Sérgio, muito obrigado. Grande abraço.
Parabéns, Sergio e obrigado.
Sou eu que agradeço, Flavio.
Acho que o Portugal Telecom consagra duma vez O drible, né? Merecido o prêmio, meus parabéns e um abr.
Obrigado, Alex. Um abraço.
É muito bom ver as gotas de suor de um trabalho árduo se transformarem em pingentes de ouro. O Drible culminando em golaço. Parabéns, Sérgio!
Obrigado, Athayde.
Parabéns, Sérgio. Narrativa afiada!
Valeu, Chico.
Acabei nesta madrugada de ler o Drible.Obrigado pela descrição desse belo jogo. Mas, cá entre nós, foi covardia, o Murilo Filho jogava muito mais que o Neto! Era de outro nível e dar um drible tão arrasador no Tiziu foi moleza, ele via uns 3 segundos antes do menino.