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A blogueira e o estruturalista

13/10/2008

O DJ retrô contratado pelo shopping center enchia os corredores com a voz grossa de Renato Russo cantando “Eduardo e Mônica” quando a blogueira perguntou as horas ao estruturalista na fila do caixa da megalivraria. Mais tarde, ao se lembrar desse momento e observar que a trilha era simplesmente perfeita, ela o ouviria responder corado com a falta de prática que não, não, perfeita é você.

Quando a blogueira o abordou, fingindo não saber quem ele era, o estruturalista tinha meia dúzia de livros fora de catálogo e uma reputação longamente esquecida de analista rigoroso de João Cabral, Guimarães Rosa e Osman Lins. A aposentadoria federal como professor titular de literatura lhe propiciava uma vida tediosa mas tranqüila de viúvo sem ambição, sem desejo e sem arrependimento, como achava que devia ser.

Se alguma coisa incomodava o estruturalista àquela altura, além de certos padecimentos próprios da idade como dor nas costas e insônia, era o fato de já não conseguir ler. Poesia, prosa, clássico, contemporâneo, coisa nenhuma. E não por ter ficado cego como Borges: nada havia em sua visão que lentes bifocais não emendassem, era interna a escuridão do estruturalista. Que jamais tocava no assunto, tentando ser estóico diante do que, embora parecesse de uma crueldade diabólica com quem dedicara a vida à literatura, provavelmente não passava de mais um engodo simples no quadro de um logro muito maior.

A blogueira tinha, além de um fotolog estudadamente sexy, um blog supercool de autoridade 237 no Technorati onde publicava quase todos os dias poemas trocadilhescos de três versos e minicontos mais ou menos confessionais. Em conjunto, os dois empreendimentos virtuais a situavam no topo da pirâmide formada pelas poucas centenas de pessoas que, desdobrando-se em milhares de nicks para confundir (com sucesso) a velha imprensa de papel, faziam a glória da chamada blogosfera literária nacional, um meio em que a blogueira era ridiculamente famosa.

O estruturalista não saberia dizer por que aceitou o convite da blogueira, de quem jamais ouvira falar, para tomar um café no mezanino da livraria. Ela sabia por que o tinha convidado, ou acreditava saber, mas no início era vago o plano concebido de estalo na fila do caixa. Depois de reconhecer o estruturalista como alguém que um dia tinha sido importante na literatura brasileira, pelo menos assim dizia o programa sobre Grandes Críticos que vira algum tempo atrás na TV educativa, achou que na pior das hipóteses descolaria um post tragidoce ou agricômico sobre o tempo, os tempos. Como se o homem pertencesse à Rússia tsarista e ela fosse uma improvável bolchevique compreensiva.

A blogueira e o estruturalista eram nada parecidos, ela era um tesão e ele tinha setenta e três, mas do expresso passaram pro scotch, da megalivraria pro barzinho penumbroso, do engov pro viagra, e na manhã seguinte ele abriu os olhos primeiro em sua cama de casal e teve vontade de chorar com a visão daquela barriguinha morena espetada com alfinete entre os lençóis. A blogueira acordou sem graça pensando no que diriam seus amigos se soubessem, fetiche, doença, seventy-plus.com, e com essa zoeira na cabeça foi talvez até um pouco rude ao se despedir. Mas aquela tarde, quando o estruturalista ligou, seu coração bateu mais forte e ela disse que sim, sim, sins, tô indo.

O estruturalista leu os poemas trocadilhescos de três versos e os minicontos mais ou menos confessionais da blogueira e achou tudo uma merda, mas disfarçou e disse, sorriso amarelo, que a culpa era dele mesmo, dinossauro chato. A blogueira folheou os livros de páginas manchadas do estruturalista e quase morreu de tédio, pensando, se literatura é isso, tô fora. Diante dele, porém, preferiu bancar a burrinha dizendo que parecia tudo muito bonito e complexo e importante, mas além da sua compreensão.

Um ano depois, enquanto o estruturalista definhava numa cama de hospital, linfoma não-Hodgkin, a blogueira ficou ao seu lado dia e noite, num convívio íntimo com a morte que durou cinco semanas e a levou a repensar a vida inteira com um misto de vergonha do passado e ânsia de futuro. Na madrugada em que o estruturalista morreu e ela se acabou de chorar, estava madura a decisão de trocar o blog pela faculdade de enfermagem.

Publicado em 20/8/2007. Republicado a pedidos.

22 Comentários

  • Henrique 13/10/2008em16:02

    Vc é parente do Lourenço Mutarelli?

  • Hélio Jorge Cordeiro 13/10/2008em16:24

    Taí, mais uma pérola desse seu grande repertório, Sérgio.

    Um dia quero ser um blogueiro estruturalista! rss

    grande!

  • Isabel 13/10/2008em16:40

    Fabuloso!

  • Caio Marinho. 13/10/2008em19:54

    A sedução do blog é efêmera como um orgasmo.

  • Ana Paula 13/10/2008em20:19

    Eu li e reli e reli e cada vez gosto mais. Ganhei meu dia!

  • Leonardo Petersen Lamha 13/10/2008em21:57

    ótimo conto. sou novo por aqui, andei lendo uns posts antigos, mas já virou rotina o seu blog.

    como disse o henrique, você realmente é parecido com o lourenço mutarelli…

    abraços!

  • . 14/10/2008em00:02

    Parece quase familiar…

  • Sérgio Rodrigues 14/10/2008em08:31

    Obrigado a todos pelas mensagens bacanas. Quanto à alegada semelhança com Lourenço Mutarelli – que não é meu parente -, só posso dizer que não é a primeira vez que ouço isso. Mas sempre recomendo olhar melhor.

    Abraços.

  • Sérgio Rodrigues 14/10/2008em10:12

    Claudio, a semelhança que julgaram ver é fisionômica, não literária. Será que isso também acontece com autores de uma mesma geração?

    Sobre o artigo de Adriana Lisboa: achei correto em linhas gerais, mas comete o pecado de responder a uma provocação que não existe. “Todos os escritores brasileiros querem ser Joyce”, diz o escritor estreante. Puxa. Melhor seria deixar morrer o assunto.

    Numa área em que o debate já anda fraco, a falsa polêmica é ainda mais debilitante.

    Um abraço.

  • Claudio Soares 14/10/2008em10:06

    Qq semelhança, se a houver, talvez se explique pelo fato de serem jovens autores de uma mesma geração, não? Aliás, por tocar no assunto da atual geração de escritores, Sérgio, o que vc achou do artigo da Adriana Lisboa no Prosa & Verso do último sábado? (Na minha modesta opinião, uma tautologia se comparado ao primeiro parágrafo do mesmo artigo).

  • Claudio Soares 14/10/2008em11:37

    Pensei que a semelhança fosse no estilo (ainda não li ou conheço o Mutarelli). Passemos a página.

    Sobre a polêmica (ou, como concordo, falsa): o assunto já nasceu morto, mas fica nesse exemplo (apesar de achar que a intenção de Adriana tenha sido a melhor das possíveis) um reforço ao “teorema de Moutinho” (com o qual concordo), citado ao final do artigo.

    Tristes trópicos…

  • Eric Novello 14/10/2008em11:42

    Saint, está por aí?
    Esse conto me lembrou o debate sci-fi sobre a primeira onda, segunda onda, terceira onda, marola… né não?

    Sérgio, não conhecia esse. Achei um dos mais interessantes! Tem mais nesse baú virtual?

  • Roberto Almeida 14/10/2008em14:27

    Simples e delicado. Cute, minha priminha diria.

  • . 14/10/2008em16:26

    O meu familiar foi bom, não tinha nada a ver com Lourenço Mutarelli!

  • Sérgio Rodrigues 14/10/2008em20:53

    Tem aos montes, Eric. Abraços a todos.

  • Isabel Pinheiro 14/10/2008em22:40

    Eu não li o que a Adriana Lisboa escreveu n’O Globo (cortaram meu acesso online, por mais que eu tenha me cadastrado 500 vezes). Se entendi direito, ela respondeu a uma provocação que dizia “Todos os escritores brasileiros querem ser Joyce”, é isso? Na segunda Flip, acho, ela deu uma excelente resposta a uma outra provocação do tipo. Não me lembro exatamente o que ela disse, mas foi uma saída elegantíssima e esperta sobre “novos autores quererem ser Guimarães Rosa ou Clarice Lispector”. Ou sobre o “fantasma” de GR e CL para a nova geração. Ou algo do gênero. E lembro de ter gostado muito da moça por isso. Abs

  • Nilton 14/10/2008em23:04
  • Sérgio Rodrigues 15/10/2008em09:48

    Vi a notícia, Nilton, obrigado. De qq maneira, é bom ler esse tipo de coisa para comprovar que me interessa cada vez menos. Como as fofocas familiares da família Hemingway.

    Abraço.

  • Fernando Torres 15/10/2008em12:43

    Sérgio,

    Você não acha que está na hora de transformar o Sobrescritos num ponte de papel colado? Ou seja, reúna e publique.

  • Sérgio Rodrigues 15/10/2008em12:05

    Obrigado pelo interesse, Fernando. Há conversas em andamento nesse sentido, mas ainda não é a hora. Acredito que ano que vem, sim.

  • Nilton 15/11/2008em15:49

    Sensacional! Eduardo e Mônica é a trilha ideal e perfeitamente escolhida para esta história.

  • Alvaro Domingues 05/05/2010em17:02

    Excelente crônica!