O DJ retrô contratado pelo shopping center enchia os corredores com a voz grossa de Renato Russo cantando “Eduardo e Mônica” quando a blogueira perguntou as horas ao estruturalista na fila do caixa da megalivraria. Mais tarde, ao se lembrar desse momento e observar que a trilha era simplesmente perfeita, ela o ouviria responder corado com a falta de prática que não, não, perfeita é você.
Quando a blogueira o abordou, fingindo não saber quem ele era, o estruturalista tinha meia dúzia de livros fora de catálogo e uma reputação longamente esquecida de analista rigoroso de João Cabral, Guimarães Rosa e Osman Lins. A aposentadoria federal como professor titular de literatura lhe propiciava uma vida tediosa mas tranqüila de viúvo sem ambição, sem desejo e sem arrependimento, como achava que devia ser.
Se alguma coisa incomodava o estruturalista àquela altura, além de certos padecimentos próprios da idade como dor nas costas e insônia, era o fato de já não conseguir ler. Poesia, prosa, clássico, contemporâneo, coisa nenhuma. E não por ter ficado cego como Borges: nada havia em sua visão que lentes bifocais não emendassem, era interna a escuridão do estruturalista. Que jamais tocava no assunto, tentando ser estóico diante do que, embora parecesse de uma crueldade diabólica com quem dedicara a vida à literatura, provavelmente não passava de mais um engodo simples no quadro de um logro muito maior.
A blogueira tinha, além de um fotolog estudadamente sexy, um blog supercool de autoridade 237 no Technorati onde publicava quase todos os dias poemas trocadilhescos de três versos e minicontos mais ou menos confessionais. Em conjunto, os dois empreendimentos virtuais a situavam no topo da pirâmide formada pelas poucas centenas de pessoas que, desdobrando-se em milhares de nicks para confundir (com sucesso) a velha imprensa de papel, faziam a glória da chamada blogosfera literária nacional, um meio em que a blogueira era ridiculamente famosa.
O estruturalista não saberia dizer por que aceitou o convite da blogueira, de quem jamais ouvira falar, para tomar um café no mezanino da livraria. Ela sabia por que o tinha convidado, ou acreditava saber, mas no início era vago o plano concebido de estalo na fila do caixa. Depois de reconhecer o estruturalista como alguém que um dia tinha sido importante na literatura brasileira, pelo menos assim dizia o programa sobre Grandes Críticos que vira algum tempo atrás na TV educativa, achou que na pior das hipóteses descolaria um post tragidoce ou agricômico sobre o tempo, os tempos. Como se o homem pertencesse à Rússia tsarista e ela fosse uma improvável bolchevique compreensiva.
A blogueira e o estruturalista eram nada parecidos, ela era um tesão e ele tinha setenta e três, mas do expresso passaram pro scotch, da megalivraria pro barzinho penumbroso, do engov pro viagra, e na manhã seguinte ele abriu os olhos primeiro em sua cama de casal e teve vontade de chorar com a visão daquela barriguinha morena espetada com alfinete entre os lençóis. A blogueira acordou sem graça pensando no que diriam seus amigos se soubessem, fetiche, doença, seventy-plus.com, e com essa zoeira na cabeça foi talvez até um pouco rude ao se despedir. Mas aquela tarde, quando o estruturalista ligou, seu coração bateu mais forte e ela disse que sim, sim, sins, tô indo.
O estruturalista leu os poemas trocadilhescos de três versos e os minicontos mais ou menos confessionais da blogueira e achou tudo uma merda, mas disfarçou e disse, sorriso amarelo, que a culpa era dele mesmo, dinossauro chato. A blogueira folheou os livros de páginas manchadas do estruturalista e quase morreu de tédio, pensando, se literatura é isso, tô fora. Diante dele, porém, preferiu bancar a burrinha dizendo que parecia tudo muito bonito e complexo e importante, mas além da sua compreensão.
Um ano depois, enquanto o estruturalista definhava numa cama de hospital, linfoma não-Hodgkin, a blogueira ficou ao seu lado dia e noite, num convívio íntimo com a morte que durou cinco semanas e a levou a repensar a vida inteira com um misto de vergonha do passado e ânsia de futuro. Na madrugada em que o estruturalista morreu e ela se acabou de chorar, estava madura a decisão de trocar o blog pela faculdade de enfermagem.
Publicado em 20/8/2007. Republicado a pedidos.
22 Comentários
Vc é parente do Lourenço Mutarelli?
Taí, mais uma pérola desse seu grande repertório, Sérgio.
Um dia quero ser um blogueiro estruturalista! rss
grande!
Fabuloso!
A sedução do blog é efêmera como um orgasmo.
Eu li e reli e reli e cada vez gosto mais. Ganhei meu dia!
ótimo conto. sou novo por aqui, andei lendo uns posts antigos, mas já virou rotina o seu blog.
como disse o henrique, você realmente é parecido com o lourenço mutarelli…
abraços!
Parece quase familiar…
Obrigado a todos pelas mensagens bacanas. Quanto à alegada semelhança com Lourenço Mutarelli – que não é meu parente -, só posso dizer que não é a primeira vez que ouço isso. Mas sempre recomendo olhar melhor.
Abraços.
Claudio, a semelhança que julgaram ver é fisionômica, não literária. Será que isso também acontece com autores de uma mesma geração?
Sobre o artigo de Adriana Lisboa: achei correto em linhas gerais, mas comete o pecado de responder a uma provocação que não existe. “Todos os escritores brasileiros querem ser Joyce”, diz o escritor estreante. Puxa. Melhor seria deixar morrer o assunto.
Numa área em que o debate já anda fraco, a falsa polêmica é ainda mais debilitante.
Um abraço.
Qq semelhança, se a houver, talvez se explique pelo fato de serem jovens autores de uma mesma geração, não? Aliás, por tocar no assunto da atual geração de escritores, Sérgio, o que vc achou do artigo da Adriana Lisboa no Prosa & Verso do último sábado? (Na minha modesta opinião, uma tautologia se comparado ao primeiro parágrafo do mesmo artigo).
Pensei que a semelhança fosse no estilo (ainda não li ou conheço o Mutarelli). Passemos a página.
Sobre a polêmica (ou, como concordo, falsa): o assunto já nasceu morto, mas fica nesse exemplo (apesar de achar que a intenção de Adriana tenha sido a melhor das possíveis) um reforço ao “teorema de Moutinho” (com o qual concordo), citado ao final do artigo.
Tristes trópicos…
Saint, está por aí?
Esse conto me lembrou o debate sci-fi sobre a primeira onda, segunda onda, terceira onda, marola… né não?
Sérgio, não conhecia esse. Achei um dos mais interessantes! Tem mais nesse baú virtual?
Simples e delicado. Cute, minha priminha diria.
O meu familiar foi bom, não tinha nada a ver com Lourenço Mutarelli!
Tem aos montes, Eric. Abraços a todos.
Eu não li o que a Adriana Lisboa escreveu n’O Globo (cortaram meu acesso online, por mais que eu tenha me cadastrado 500 vezes). Se entendi direito, ela respondeu a uma provocação que dizia “Todos os escritores brasileiros querem ser Joyce”, é isso? Na segunda Flip, acho, ela deu uma excelente resposta a uma outra provocação do tipo. Não me lembro exatamente o que ela disse, mas foi uma saída elegantíssima e esperta sobre “novos autores quererem ser Guimarães Rosa ou Clarice Lispector”. Ou sobre o “fantasma” de GR e CL para a nova geração. Ou algo do gênero. E lembro de ter gostado muito da moça por isso. Abs
Sérgio, você viu a notícia sobre o Milan Kundera?
http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2008/10/14/escritor_tcheco_kundera_nega_que_denunciou_espiao_ocidental-585946833.asp
Um abraço
Vi a notícia, Nilton, obrigado. De qq maneira, é bom ler esse tipo de coisa para comprovar que me interessa cada vez menos. Como as fofocas familiares da família Hemingway.
Abraço.
Sérgio,
Você não acha que está na hora de transformar o Sobrescritos num ponte de papel colado? Ou seja, reúna e publique.
Obrigado pelo interesse, Fernando. Há conversas em andamento nesse sentido, mas ainda não é a hora. Acredito que ano que vem, sim.
Sensacional! Eduardo e Mônica é a trilha ideal e perfeitamente escolhida para esta história.
Excelente crônica!