Essa apostasia se insinua no abismo largo que separa o fim de um romance do início do próximo. Não se trata de um bloqueio, não é uma longa noite, mas uma questão de profunda indiferença. A felicidade está em algum outro lugar. Passam-se os meses e lá vem uma virada, um realinhamento. Começa com um cutucão. Um detalhe, uma frase ou uma sentença pode dar início a esse retorno. Não precisa ser brilhante. Basta exalar um certo calor imaginativo.
Em belo artigo no “Guardian” (em inglês, aqui), Ian McEwan fala sobre a crise de fé que costuma acometê-lo toda vez que termina um romance. Crise de fé na ficção, entenda-se. Por que perder tempo com narrativas inventadas se o mundo da ciência e da história está cheio de livros mais, digamos, relevantes para a compreensão do mundo em que vivemos? McEwan conta que a fé lhe volta sempre de forma meio fortuita, nunca a partir do plano geral de uma obra grandiosa e sim da leitura de uma frase solta, uma imagem bem sacada, um achado feliz – miudezas, os “divinos detalhes” de que falava Nabokov.
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O desejo de escrever para o grande público está firmemente enraizado no peito de cada ser humano. Do competente recém-formado que toma de assalto os portões das revistas literárias ao colegial cru que em vão tenta emplacar suas primeiras composições toscas nos jornais locais, todo o público inteligente busca hoje a chance de se expressar por meio da palavra impressa, ansiando ver seus pensamentos e ideais se cristalizarem permanentemente no meio mágico da letra de forma. No entanto, enquanto umas poucas pessoas de talento excepcional acabam conseguindo se firmar no mundo profissional das letras, elevando-se a celebridades por meio da ampla difusão de sua arte, ideais ou opiniões, a vasta maioria, a menos que seja auxiliada em sua educação por certas vantagens especiais, está condenada a confinar sua expressão à esfera necessariamente restrita da conversação banal.
O trecho acima foi escrito no último quarto do século XIX pelo escritor H.P. Lovecraft, então vice-presidente da National Amateur Press Association (NAPA), uma das primeiras associações americanas de jornalistas amadores – precursores do espírito dos blogs. Pode não parecer, mas a ideia do autor era incentivar e não desencorajar a expressão dos amadores. Desde que eles se mostrassem realmente bons, é claro. Mais (em inglês) aqui.
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Como disse Alberto Moravia, “a proporção entre letrados e iletrados é constante, mas hoje em dia os iletrados sabem ler”.
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E os tecnófilos japoneses, quem diria, relutam em aderir ao livro digital: 72% dizem que nunca deram – e não querem dar – uma chance aos leitores eletrônicos, número que supera com folga os 66% dos bibliófilos franceses. Se o Japão continuar assim, um dia até o Brasil pode alcançá-lo nessa corrida. Leia a reportagem completa (em inglês) aqui.
5 Comentários
É pena que o tradutor do google é muito ruim, mas deu para pescar algo que cabe aqui
“ciência, matemática, direito, história, e todo o resto – você pode levar com você e colocar em uso quando você voltar mais uma vez para a fé verdadeira.”
Poxa, fiquei com água na boca pra ler esse texto do Ian. Adoro os livros dele. Mas infelizmente meu inglês não é bom o suficiente. Bem que vc podia traduzir né Sérgio hehe.
Isso nos dá esperança de um próximo romance? Tomara.
Ian é “o” cara.
Tem o texto traduzido aqui: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1235423-apostasia-ficcional-caminhos-da-fe-verdadeira.shtml
Agora tem, Gabriel. Valeu o link.