O interessante artigo de Flora Süssekind publicado na última edição do Prosa & Verso, sob o título “A crítica como papel de bala”, investe contra o “conservadorismo” e o “beletrismo” que sua autora julga hegemônicos no atual cenário da crítica literária brasileira – ou talvez devêssemos chamá-lo de ambiente de recepção de livros, pois o pensamento crítico anda mesmo um tanto anêmico. Esse ambiente, argumenta ela, vive um momento de certa efervescência com seus festivais, prêmios, oficinas, blogs e resenhas breves, eminentemente jornalísticas, mas falta-lhe o tutano de um pensamento articulado e independente que resgate a “dimensão social” da literatura. O curioso é que, num caso clássico de ponto cego, Sussekind parece sincera ao deixar de perceber que o grande elemento faltante nesse ambiente, a crítica universitária de fôlego que ela própria representa, retirou-se do debate porque quis.
Como bom exemplo do pensamento literário hoje dominante na universidade, inclusive no estilo árido e calibrado para afugentar leigos, Süssekind, reconheça-se logo, está de mal com a literatura contemporânea. Brigou com ela. Os exemplos de novidade estética que aplaude em seu artigo incluem, ao lado do poeta Carlito Azevedo e seu notável “Monodrama”, uma diretora de teatro, um músico e um artista plástico, expondo com candura essa malquerença ao propor quase como uma via de mão única, de fora para dentro das letras, o trânsito de fronteira entre linguagens que é sem dúvida o território artisticamente mais fértil do mundo contemporâneo. É uma pena que a autora de estudos literários clássicos – embora difíceis de ler – como “Cinematógrafo de letras” e “O Brasil não fica longe daqui” encare de forma tão pouco generosa a tarefa de separar o joio do trigo na literatura brasileira de hoje.
A birra não é só dela. Embora mais sofisticada que a maioria de seus pares, Süssekind é produto de um meio que, há pelo menos quatro décadas, vem assistindo à progressiva hegemonia dos chamados estudos culturais. Parte do tsunami politicamente correto, tal predominância transformou em truísmo a idéia de que a literatura como a conhecemos é apenas um instrumento de dominação de classe. Em movimento análogo ao de certas feministas confusas no auge do radicalismo dos anos 1960-70, que viram no próprio ato sexual um emblema de invasão e revoltaram-se contra a anatomia, o passo seguinte foi condenar a literatura e seus circuitos internos – gêneros, técnicas, modos de aferição de valor e, claro, os famigerados autores canônicos – como um complô ancestral de “machos heterossexuais brancos”. De tal ponto de vista, afirmar a especificidade do literário, do jogo que desde Homero gerações de escribas se dedicam a levar adiante a partir dos lances precedentes – um jogo que parece longe de terminar – é o suficiente para embasar denúncias de um artifício “demarcatório” e, claro, conservador.
Beletrista, ofensa suprema, seria aquele que, no atarefado comércio que a esfera literária sempre estabeleceu com outros saberes, saindo mais forte das múltiplas contaminações, reafirma no fim das contas o que a literatura tem de irredutível à política, à antropologia, à psicanálise ou a qualquer outro discurso. Eis o mérito de Wilson Martins, cujos elogios fúnebres, inclusive uma notinha de minha autoria, foram o estopim do artigo de Süssekind: o homem era careta demais para caber no figurino de paradigma da crítica, concordo, mas nunca desistiu do que há de propriamente literário na literatura. Se ao morrer andou sendo saudado por aí como um gigante, em evidente exagero, isso parece se dever menos à sua estatura do que ao cenário liliputiano construído ao seu redor.
Experimente-se, no raciocínio de Süssekind, trocar a idéia de conservadorismo pela de resistência, sutilmente distinta, e teremos um quadro mais condizente com a realidade. A literatura que se faz hoje – e seria um despautério dizer que vivemos no Brasil uma época de ouro, mas o momento é de febril e promissora atividade – tem sido obrigada a lidar com um novo inimigo, que veio se somar àquela velha lista de predadores na qual se incluem desde uma população pouco letrada até a brutal dificuldade intrínseca de produzir algo que preste. Grande parte da universidade, em geral com as ferramentas da indiferença e do silêncio, tem jogado contra.
No lugar do discurso informado que tenta arquitetar o novo levando em conta a tradição, visto como comprometido na raiz, essa crítica passou a valorizar dois novos modelos textuais para a literatura contemporânea, ambos virginais. De um lado, em rendição incondicional à antropologia, o das “vozes” dos despossuídos literários: mulheres, negros, gays, favelados. Do outro, pelo qual parece se inclinar Süssekind, o da “transgressão” que “rompe com tudo o que está aí”, em geral sem ter lido uma fração minimamente aceitável de “tudo o que está aí” – e aqui a rendição do crítico se dá frente ao mito de corte religioso da pureza refundadora. Escrever “mal”, ser incapaz de construir um personagem, reinventar a pólvora modernista, aborrecer o leitor desavisado, tudo isso é considerado preferível a ser mais um a perpetuar aquele jogo ideológico chamado literatura.
Trata-se de uma tomada de partido estético que, a princípio, é tão respeitável quanto qualquer outra. Resta ver aonde nos conduz. A trama se adensa – e neste ponto cabe apontar um traço de desespero no artigo de Sussekind, facilmente enquadrável na categoria de “disputa por posições” que ela busca denunciar – quando se leva em conta que as novidades mais instigantes dos últimos anos no campo das letras não partiram de “despossuídos” nem de “refundadores”, mas de escritores imersos até o último fio de cabelo em cultura literária, como Roberto Bolaño, W.G. Sebald, Enrique Vila-Matas, Pierre Michon e David Foster Wallace. Conservadores ou heróis da resistência? E como explicar uma coisa dessas?
Simples: a literatura, condenada à morte por tantos catedráticos, não morreu. Continua sendo escrita e lida, boa e ruim, mais ou menos experimental, hibridizando-se com o ensaio, o jornalismo e outros discursos, exibindo alguns rasgos brilhantes de novidade em meio às doses costumeiras de mesmice. Sua velha aura de prestígio e nobreza foi para o vinagre no mundo inteiro, paciência, mas o leitor, esquecido leitor, não a desertou de todo. Bem ou mal, ela tem tido força suficiente para movimentar a tal roda de festivais, prêmios, blogs, oficinas etc. que Süssekind menospreza. Só o que não vem aparecendo com muita frequência na arena, lamentavelmente, é a boa crítica universitária, vítima de escolhas que, conscientes ou não, ameaçam encurralá-la num beco sem saída de autismo e irrelevância. Está fazendo falta.
Publicado na edição de hoje do caderno Prosa & Verso do “Globo”, em resposta a um artigo de sábado passado.
35 Comentários
Ótimo artigo, Sérgio. Obrigado. Estou divulgando geral. Extremamente necessário.
Caro Sergio, nem saberia elaborar suficientemente o quanto estou de acordo com seu artigo. Parabéns e um abraço.
sérgio, parabéns pelo artigo. e pelo blog em seu conjunto.
Excelente resposta, Sérgio. Parabéns!
Abraço
qualquer pessoa que tenha passado pela faculdade de letras sabe que a crítica universitária é autista e irrelevante. os professores são em sua maioria recalcados e se isolam no mundo universitário para viver a ficção que a literatura, hoje, tenha mais importância que a novela das 20h.
Escrevi lá no twitter e repito aqui: na minha opinião os dois têm razão. A críitica universitária é esquizofrênica e o nível da literatura brasileira atual é rasante.
Sérgio… ela pensa assim: “falta-lhe o tutano de um pensamento articulado e independente que resgate a “dimensão social” da literatura “? Não sabia. Gostei disso.
Mas, olha, vou ser sincera, seu texto foi muito Sussekindiano e quase pedindo perdão por ter amaciado o Wilsinho. Puxa vida, Sérgio!
Vou ser muito sincera, Sérgio, não fiz Língua Portuguesa, então posso falar. Para mim, literatura é para libertar as pessoas. Sim, para que elas descubram a vida. Verdade. Olha, Sérgio, sendo bem simplista, literatura não é para falar da literatura…
E para ser bem prática gosto muito de ler a Bíblia em 1 Corintios 1.de 18 a 31, e ver que já muito antes a “coisa ” pegava…
Ah, eu já ia brincar um pouquinho com seu texto ( por sinal literaturíssimo), pois gosto muito disso, mas Jesus me sinalizou que tenho que ter cuidado com a soberba. Pois é, rapadura é doce mas não é cocada não.
Ótimo texto.
Resposta necessária àquela negação da produção literária contemporânea.
Um abraço,
Dado
Gostei muito do seu artigo e concordo com sua opinião de que a academia afasta o leitor comum, conversando entre pares. Mas discordo quando você elege como vilão os Estudos Culturais. Acho que a questão é mais complexa, e os Estudos Culturais tem sim uma capacidade de reunir num debate de literatura, professores que detestam literatura, mas os vínculos que produziram com outros campos trazem para a discussão excelentes argumentos que elevam a literatura. Se por um lado podem afastar o leitor, muitos críticos que trazem à baila outros argumentos não exclusivos do campo literário instigam o leitor à leitura de grandes obras literárias.
Legal, Sérgio, vc fez a ressalva necessária ao artigo da Flora.
Parabéns
Acho engraçado o articulista dizer que “a crítica universitária de fôlego”, representada pela Flora Süssekind, retirou-se do debate porque quis. Pelo contrário. Foi justamente sua presença que está motivando essa polemicazinha. Ela se deve porque o sr., em sua notinha condescente sobre Wilson Martins, cutucou a onça da crítica universitária com vara curta. E é pena que alguns cometários elogiosos a sua “resposta” parta de pessoas que não tiveram a capaci-dade de ler os artigos dos autores envolvidos ou, vai ver, não entederam patavina. Caso contrário, perceberiam quanta contradição há em dizer que seu ponto em comum com o crítico Wilson Martins é seu viés “de dentro” da literatura e agora admitir que “o trânsito de fronteira entre linguagens é, sem dúvida, o território artisticamente mais fértil do mundo”. Incrível. Debate sem pé nem cabeça. Mas que revela muito sobre a nossa pobreza cultural. Será que ninguém entendeu o “estilo” da Flora? Não perceberam que ela não está de mal com a literatura e sim com certo discurso crítico feito para agradar a leigos e troianos? Ao articulista faria bem um pouco de humildade e reconhecer suas próprias limitações.O que, aliás, faço aqui. Não faço parte de nenhuma panela, seja universitária, seja jornalís-tica. Podem me charmar de “leitor”, muito pobre por sinal.
Se a crítica universitária é autista e irrelevante, que se pode dizer dessa crítica praticada via internet? No mínimo, incapaz de separar o tal joio do tal trigo.
Teodoro, veja isso: Adorei e concordo:
http://www.affonsoromano.com.br/blog/
É noite de sábado e, o que vou escrever aqui pode ser que seja efeito decorrente de um sanduiche com guarana que comi e bebi a guisa de Jantar.
…bacterias voam sobre a chapa do chapeiro.
…dizem que existem insetos que se adaptaram aquelas chapas quentes…
Pois bem, só posso dizer ao Grande Sérgio que eu gostei do seu texto. Não entendi muito, (ou quase nada) o texto da Flora. De modo que não posso dizer qual dos dois —nesta arena de gladiadores das letras —- se saiu melhor.
Reafirmo que já vai tarde por aqui no Norte e talvez a mao nao acompanhe os neurotransmissores.
Se estiver por la, em Parati, pode ser acabamos nos conhecendo face to face!
abss
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Por favor, queiram discutir mais baixo. Estou lendo.
a literatura nacional anda mal. a crítica idem.
As tiradas sobre a aridez do testo de Sussekind foram boas e justas.
O texto dela parece calculado para pesar. É bem verdade que um pensamento complexo nem sempre cabe num texto fácil.
Mas tentar é importante. Você provou em seu texto que é possível, Sérgio.
Quanto ao mérito do debate, penso que o artigo de Flora veio a calhar e alimenta um diálogo importante entre a crítica acadêmica e a crítica jornalística.
A virulência, contudo, caiu-lhe mal, em prejuízo das boas advertências que ela faz. Especialmente, quando erra o alvo e ataca um bom exemplo de ultrapassagem possível da crítica jornalística em direção à crítica literária. Ousadia, aliás, que, espera-se ,os representantes da crítica acadêmica animem-se a empreender.
Como comentei lá no twitter, excelente.
Interessante que no artigo de Süssekind ela fala de um saudosismo do tempo em que a crítica literária era relevante. Não estaria ela, com seu texto, também exercitando esse saudosismo, procurando relevância para seu estilo de crítica literária?
….estava.
mae dinah me ligou e afiancou.
Essencialmente correto o comentario, Sérgio. E comparar a fluência de teu texto com a de Flora Sussekind é até covardia!
Mas é possível aprender com a leitura de ambos, pois algumas lebres são levantadas e não totalmente respondidas.
Por exemplo: A crítica acadêmica se retirou do debate ou foi alijada dos meios de comunicação, dos jornais diários? Ou ambas as alternativas?
Sérgio, belo texto e excelente diagnóstico. Quando li o texto de Flora, a partir de uma referência no e-mail do Blog da Flip, fiquei imaginando quais seriam seus argumentos. Vejo que a expectativa foi cumprida na melhor forma possível. De fato, o clima nos institutos de Letras me parece o de uma “retirada”: a propósito de não se falar somente em literatura, não se fala praticamente em literatura. E isso está, concordo, estritamente ligado aos Estudos Culturais. Acho, contudo, que não há, nem de longe, inconsciência nos pressupostos ou nas conclusões dessa corrente. É tomada de posição, mesmo. Agora, pode haver inconsciência dos alunos, dos estudantes… E talvez esse, mais que as oficinas literárias, seja um “adestramento” — do qual, entretanto, não nos fala Süssekind.
Claro, não entendo da “coisa”, mas o tipo de crítica da Flora, é chata. Ela fala mal dos que fazem crítica e fala de um jeito fechado, quase oculto. Bem vindos os Sérgios Rodrigues, Afonsos Romanos e Rascunhos que iluminam ….
Textos que são “recados” só para a “nata”, são inúteis. Só servem para algo que nós, os da camada inferior, somos os únicos que não sabemos para quê. E se percebemos algo, já sabemos que é “sem gosto”, “sem sabor”, sem “aquele tóc”: “Hum… que texto! Vou ler outra vez… é muito gostoso de ler… ”
É isso.
Eu conheço muita gente “BOA”, que só lê livros indicados pela crítica como bons e acham excelentes. Ninguém tem coragem de ir contra a mentirada armada e dizer: NÃO GOSTO. PORCARIA. PERDEÇÃO DE TEMPO.
Querem ser da camada intelectual da “nata”, mas na verdade, nem sabem porquê dizem que é bom. Mas, “os de fora” sabem. Sabem que “esses natentos” querem ficar lá “na nata”( se trocar o n por m, é interessante rsrs)…
Prefiro ser resto do leita que fica na panela. Quando raspamos é uma delícia. A nata muitas vezes é bem enjoativa, gordurenta. Mas a raspinha de uma panela de leite fervido… hum…
Bem, pelo observado aqui o Sergio, Afonso e Rascunho, estão mais para “raspinha famosa” que “nata” que ninguém mais aguenta( sõ não tem coragem de assumir…)
Bem, me fiz entender? Sim? Ki bom!
Que comédia involuntária a Flora Süssekind encena ao esbravejar, num texto em que pupula toda espécie de adjetivos, de qualificativos e de vitupérios, contra a truculência preventiva, propositadamente categórica, emocionalizada, nada especulativa.
É a primeira vez que leio um artigo redigido em tom crescentemente exacerbado, agressivo que se volta contra o tom crescentemente exacerbado, agressivo dos outros.
O que me faz lembrar a velha história do macaco que criou gosto em fiscalizar o rabo alheio ao mesmo tempo em que negligencia o próprio rabo.
Este é o mesmo Rafael? Bom dia!
Concordo bastante com seu texto Sérgio, mas acho meio injusto você reduzir o problema, que é mais amplo, à hegemonia dos “estudos culturais”. Em primeiro lugar porque os departamentos de letras ainda têm suas cadeiras de literatura clássica. Aristóteles ainda faz parte, de maneira elogiosa até, da bibliografia básica. Eu acho que alguma parte da culpa está naquilo que o Renato Mezan abordou num artigo ontem na Folha (e acadêmicos como Ismail Xavier vêm alertando há tempos): o produtivismo da academia e a falência do ensaio como modelo de reflexão nas ciencias humanas. Claro que a moçada dos estudos culturais – como há algum tempo aconteceu com a análise do discurso, lembra? – está mais ativa. Entretanto, o problema talvez seja mais estrutural.
TOTALMENTE DE ACORDO CONTIGO: Escrever “mal”, ser incapaz de construir um personagem, reinventar a pólvora modernista, aborrecer o leitor desavisado, tudo isso é considerado preferível a ser mais um a perpetuar aquele jogo ideológico chamado literatura. É UMA PENA!
Para escrever uma boa resenha | Todoprosa - VEJA.com
Bravíssimo Sérgio Rodrigues!
Sobre o artigo de Italo Moriconi no ‘Prosa’ | Todoprosa - VEJA.com
Eita! nem me lembrava mais disso…hehe!
Você profetizou esta hein? A crítica universitária encurralada. E vai ficar mesmo.
Literatura e universidade, a história de um divórcio | Todoprosa - VEJA.com