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A era do crítico gente boa

06/08/2012

Resenhistas não deveriam ser máquinas de recomendar, mas nós acabamos por nos conformar com esse papel, em parte porque o espírito de solicitude comunitária do Twitter estimula isso. Nossa vantagem sobre os algoritmos da Amazon e da Barnes & Noble e sobre o amadorismo (parte dele bastante bom e útil) de sites como GoodReads é que nós somos profissionais com opiniões nuançadas, informadas. Somos pagos para ser céticos, até mesmo belicosos, de modo que nosso entusiasmo vale mais quando é merecido. Os resenhistas de hoje tendem a mitificar os velhos arranca-rabos televisivos entre William F. Buckley e Gore Vidal ou Noam Chomsky (os vídeos estão no YouTube), mas não estão dispostos a se engajar eles mesmos nesse tipo de combate intelectual. Elogiam a beligerância de Norman Mailer e Pauline Kael, mas quase sempre à distância. Mailer e Kael são como aqueles amigos rebeldes da escola: objetos de adoração, mas não de imitação. Afinal, é tudo tão perigoso, alguém pode acabar se machucando.

Em vez disso, gentileza enjoativa e entusiasmo cego são os sentimentos dominantes. Como se espelhasse a cultura à sua volta, a crítica dura virou sinônimo de ofensa; tudo é pessoal – a afeição de alguém por um livro é intercambiável com seus sentimentos sobre o autor em pessoa. Os críticos babam antecipadamente por livros que ainda não leram; declaram <3 pelo escritor fulano, tagueando o endereço de Twitter do autor para que ele ou ela saibam disso também; exaurem-se em jorros de elogios em letras maiúsculas, porque é assim que você turbina sua contagem de seguidores e reafirma seu lugar na comunidade trocadora de tapinhas nas costas que é a web literária. E, claro, os críticos, em sua maioria freelancers famintos por trabalho, querem ser queridos por fãs e leitores também, e para se conectar com eles precisam se tornar um deles.

Não é nada lisonjeiro o retrato que o crítico Jacob Silverman faz da chamada “web literária” neste artigo (em inglês) para a revista eletrônica americana “Slate”. É possível que exagere um pouco: pelo menos no Brasil, eu diria que a tendência à “gentileza enjoativa” e ao “entusiasmo cego” que é parte evidente da rede-socialização do mundo tem como contraponto um recrudescimento da maledicência enjoativa e da detonação cega que a internet, contraditoriamente, também parece estimular – ou no mínimo tornar mais visível. No entanto, como Silverman está falando apenas de círculos literários mais profissionalizados, é possível que o fenômeno que aponta seja mesmo dominante: estaria começando a era do crítico gente boa, esse oxímoro ambulante?

6 Comentários

  • Guilherme Sobota 06/08/2012em19:51

    O debate é interessante, mas já diria John Updike, nas suas dicas de resenha: “Better to praise and share than blame and ban.”

  • Francisco 06/08/2012em20:46

    As próprias parceria que muitas editoras firmam com blogs especializados em resenhas, para me referir a um grupo mais “amador” da crítica, já visa a estimular a indicação dos títulos, sob forma de comentários positivos. Ignorar a motivação mercadológica da literatura, também, é uma resistência vã aos novos tempos. Talvez a crítica só esteja se adequando à realidade… E como o passado sempre supera o presente dos céticos pouco adaptáveis, aquele discurso de que a crítica está em crise – ou, pior, morta – já se encontra, devidamente, em processo de cristalização.

  • Francisco 06/08/2012em20:47

    *parcerias

  • Arthur Tertuliano 06/08/2012em21:58

    Algo a se pensar, Sérgio. E que me incomoda constantemente.

  • saraiva 08/08/2012em08:49

    Convenhamos, Sérgio, os únicos que não entram nessas categorias – ‘gente boa’ e ‘maledicentes’ – são os que não escrevem na web (olha eu mal dizendo…). Abraço.

  • Lucas 09/08/2012em13:36

    A gênese do “crítico gente boa” é semelhante a das “tias” na literatura, fenômeno apontado pelo Alcir Pécora em declaração mal-recebida há alguns meses, não é?