De toda a fanfarra pelo aniversário de 50 anos da publicação de On the road (“Pé na estrada”, na tradução de Eduardo Bueno para a L&PM), de Jack Kerouac, a parte realmente interessante do ponto de vista literário é a publicação do manuscrito original, não editado, com pontuação esparsa e dando aos personagens seus nomes verdadeiros. On the road: the original scroll, que acaba de sair nos EUA, reproduz o livro exatamente como, segundo a lenda, ele foi batucado freneticamente à máquina num único rolo de papel, ao longo de três semanas e tendo como combustível um caminhão de anfetamina – parece que a parte química não foi bem assim, mas lenda é lenda.
É uma história antiga a suposta superioridade da versão bruta, escrita em 1951, sobre a que acabou publicada em 1957, depois de penteada e domesticada por Kerouac sob a orientação de seus editores, com alguns cortes e a adição de incontáveis pontos, vírgulas e floreios “literários”. Um ano depois, quando o livro já era um sucesso arrasador, o poeta Allen Ginsberg lamentou num artigo o que teria sido um crime de lesa-literatura.
É claro que o mito da pureza de um texto incendiário conspurcada por editores caretas combina tão bem com o papo beat que convém desconfiar. Mas, em resenha publicada esta semana no “New York Times”, Luc Sante dá razão a Ginsberg, dizendo que o original, em sua crueza, é “mais autenticamente literário”. E num artigo para a revista “Vanity Fair”, Joyce Johnson usa o ponto de vista privilegiado de quem tinha um envolvimento amoroso com Kerouac na época do lançamento de On the road para dizer que ele sofria em silêncio com o sucesso de um livro que já não via como inteiramente seu.
31 Comentários
O livro mais superestimado da história, fácil.
Prá época tudo bem, parecia “o bicho”.
Hoje seria ridículo.
Li nos meus 16, 17 anos e porque o Marcos Prado insistiu . Prum adolescente até que vai mas prum adulto é perda de tempo.
Esse papo de que editores conspurcam a genialidade do criador (o que pode ou não ser verdade) tem um equivalente no cinema, quando o produtor é tido como o demônio a sacanear as divinas criações do diretor.
Existe um livro chamado, em português, “O gênio do sistema”, onde esse mito é, digamos, destruído, mesmo que em parte. E entre os exemplos analisados, tem o de “Rebecca, a mulher inesquecível”, de Hitchcock, onde o produtor, acho que David O. Selznick, deu uma guaribada aqui, um alcochambrada acolá, eliminou cenas, regravou outras tantas, e o filme saiu uma beleza.
Dizem que até Hitch achou melhor o resultado final.
Sugiro o Viajante Solitário de Kerouac. Autêntico.
Não foi sobre “On the road” que Truman Capote declarou: “isso não é escrever, isso é datilografar”?
Exatamente, anrafel.
Se em determinada época, um leitor tem uma experiência prazeirosa com um certo livro, por que mais tarde ele o renega? Li On the road há vinte anos, e tenho até hoje a surrada edição em paperback comprada em Londres. Meu filho de dezessete anos acaba de o ler. Pude ver nele o entusiasmo que eu mesmo senti. Assim, guardo o mesmo respeito pelo livro, embora não tenha vontade de o reler. Livros são também marcos importantes na vida dos leitores e essas reavaliações maduras me parecem inúteis e ingratas. Kerouac escreveu também um livro muito curioso chamado Pic, uma novela eu acho, narrada por um menino americano da Carolina do Sul. Às vezes é preciso ler em voz alta para entender o inglês do garoto. Será que alguém aqui neste espaço já leu este livro? E, concluindo, o Capote era conhecido pela sua língua ferina e seu pedantismo. Pode ter dito isso por pura inveja ou porque não captou a verve de uma geração que encontrou em Kerouac um grande intérprete (com todas as imperfeições).
Bom comentário, Areias, concordo com você quanto a haver alguns autores que fazem parte de uma história geracional, eu também li Kerouac bem jovem e não tenho vontade de retomá-lo de jeito nenhum, sobretudo depois que resolvi revisitar O apanhador no campo de centeio, também parte de minha formação e leitura obrigatória de uma certa geração, e foi um desastre completo.
Um abraço,
Clara
Areias,
assino embaixo do que tu disse…
esse lance de renegar leituras antigas, principalmente da adolescência, é uma das coisas mais tristes.
Leitura é fruição, prazer mesmo.
Então não entendo porque renegar uma leitura que proporcionou esse prazer.
Claro que se pode reavaliar certos conceitos, até analisar sob outros aspectos, mas nunca renegar o que foi importante. E o argumento mais brandido é que o tal livro “envelheceu mal”…. como se livro fosse vinho…
Acho que a obra que mais sofre esse preconceito é o “Apanhador no campo de centeio”, do Salinger.
Hoje virou moda falar mal do bichim…rsssss…… Gente que adorou o livro hoje faz um ar blasé ao se referir a ele.
Vá entender o ser humano!
Bom, na minha adolescência eu lia as “sacanagens” do Harold Robins, lí tambem autores de esquerda – e naqueles anos ler autor de esquerda éra quase crime lesa pátria.
Os tempos mudam, eu mudei e mudei muito. Certamente envelheci e isso muda tudo.
“Apanhador nos campos de centeio”? Lindo, fantástico, maravilhoso – nos anos 70 e prá quem tinha 15, 16 anos nos anos 70.
Não é ser blasé repudiar o que se leu no passado, é aprender com o tempo, é aprender com o que se leu depois.
Só prá se ter uma idéia, naqueles anos se pedia anistia ampla, geral e irrestrita e se acreditava em PT, já hoje…
Capote, escritor, não é pra ser levado a serio quando opina sobre outro escritor, eu acho. Que jovens (e adultos) do mundo todo tenham curtido as leituras de The Catcher in the Rye y On the Road, isso é pra ser levado a serio, sem importar o que digam as “autoridades literárias”. (Vale dizer, também, que não me imagino nenhum crítico literário do New York Times o da New Yorker, nem um catedrático de literatura norte-americana, falando mal desses dois autores.)
Não li o ON THE ROAD quando devia, ou seja, perto dos 20 anos de idade. Fui tentar ler no ano passado, já beirando os 50, e não rolou. Mas não vou falar mal. Quanto ao APANHADOR, vou deixar pra reler só lá pelos 70 anos, pra não correr o risco de não gostar dele agora, já que foi tão bom lê-lo na adolescência.
Lembrei de uma opinião de Capote sobre o livro, sem obrigatoriamente endossá-la. E não há dúvida quanto ao seu pedantismo. Iconoclastia por iconoclastia, o que diria dele Henry Mencken?
Não é nem repudiar prazeirosas leituras passadas, mas ter a consciência de que o passar do tempo reduz o impacto. Percebe-se diferentemente aos 40 o que foi lido aos 20, assim como uma coisa foi ter 20 anos em 60, outra é tê-los agora.
Li Cassandra Rios, li muito os bolsilivros da Monterrey, cujo capista, Benício, foi assunto de post aqui, e não me arrependo de nada. Tudo isso faz parte da minha história de leitor e deu sua contribuição para o que verdadeiramente interessa: a conquista do prazer pela leitura.
A propósito, o que diria Mencken de “On the road”?
meu amigo, eu não vou mentir não. comprei esse livro há uns três anos, quando tinha 20 anos, e a única coisa boa nele é o prefácio do Eduardo Bueno. do romance mesmo, não gostei não. dos beats, meu preferido é o John Fante, que, afinal de contas, era muito mais do que um “beat”. basta ver seu miudinho “1933 foi um ano ruim”…
PS: Ô Sérgio, eu fiz uma lista de livros de autores estadunidenses para ler, um “Curso básico de literatura estadunidense”, e você, como um crítico dos bons, bem que poderia me indicar uns livros por lá, hem?
Mencken lendo “On teh Road”? Seria hilário.
Vonegutt uma vez comentou numa entrevista que “On de Road” parecia um grito de mudo para um surdo ouvir.
Brancaleone… nunca acreditei em PT.
Até já votei em Lula (naquela eleição contra o Collor, lembra?), mas nunca acreditei na turma… a velhacaria estava na cara, mesmo naqueles tempos, e só não via (ou não vê) quem não quer.
Voltando à literatura, que é o que interessa aqui, realmente, a gente muda, e os livros continuam sendo o que foram. Então concordamos que se o livro era bom, ele continua bom. Nossa percepção é que mudou. O triste é quem nem sempre pra melhor, porque a perda de uma certa ingenuidade, de uma capacidade genuína de maravilhamento, pode ser ruim em muitos casos.
Anrafel,
subcrevo o que vc disse.
E a propósito, devemos regular pela mesma faixa etária, porque eu também me formei como leitor com os livros de bolso, principalmente os de faroeste ( que eram escrito por um brasileiro… rsss..sabia? um médico descendente de japa que é recordista mundial em autoria de livros, um tal de Inoui, se não me engano) e a Brigite Montfort, “a espiã nua que abalou Paris”…
Eu achava uma delícia aquilo.
Alguém citou John Fante? Deus do céu..
Mudando de assunto: alguém aí sabe se essa caixinha de quatro volumes do Guerra e Paz que a L&PM acabou de lançar é tradução direta? Eu imagino que não, mas é sempre bom ter certeza..
“(Vale dizer, também, que não me imagino nenhum crítico literário do New York Times o da New Yorker, nem um catedrático de literatura norte-americana, falando mal desses dois autores.)”
Não se trata de imaginar. Trata-se de ler.
Morei em New York, leio o New York Times, leio a New Yorker e tive aulas de literatura norte-americana. E sei como os americanos consideram Salinger e Kerouac. Mas nao é preciso todo isso para sabê-lo. Basta saber um pouquinho para como funciona a cabeça dalgumas pessoas.
“Esses caras viraram populares né? Entao nao gosto mais.” Sim, simples assim. Os snobs sao muito simples…
Tem pessoas muito chatas comentando sempre neste blog, entao, como eu nao quero ter que ser chato também, ADIÓS!
Tb li o On the Road entre 15 e 20 anos de idade, não lerei essa versão unedited, thank you very much, mas aprecio bastante a iniciativa. Em retrospecto, lembro que achei engraçado o frenesi dos personagens, mas trata-se de literatura infanto-juvenil.
Mais importante que a literatura, talvez o maior legado da geração tenha sido o de involutariamente inaugurar a puerilização como estilo de vida – e portanto de arte – movimento que se acentuaria fortemente nas décadas seguintes, principalmente no cinema e na TV. Se assim for, talvez não seja exagero vê-los como inovadores, como precursores de nossa época, em que tantos adotam um vacilante narcisismo epicurista como estética ideal das próprias vidas.
F. C. Johns,
A geração beat não foi tão inovadora assim. Um século e meio antes, a geração de Lord Byron já seguia uma filosofia de vida semelhante, em que a juvenilidade era divinizada. Décadas depois, vieram os poetas malditos franceses.
A diferença é apenas de estofo intelectual, significativamente mais empobrezida com a revolução das massas.
César Santos, não dá para esquecer aqueles livrinhos de faroeste, de guerra (HoraH) e policiais (FBI).
“A espiã nua que abalou Paris” era Giselle. Brigitte Montfort era sua filha, nascida, segundo insiinuação do autor, de um romance com o líder maquis Jean Moulin. É mole?
Nem tanto ao céu…
Acho os beats realmente supervalorizados como movimento. Na atitude, como já comentaram acima, se equivalem a outras tantas ondas de juventude ultra-romântica e ultra-hormonal. Na literatura, bem, um belo sintoma da contracultura do século. É claro que Capote se assustaria, aquele alegre aristocrata.
Mas não dá pra negar a energia, ou como disse o Bemveja, o frenesi que o livro carrega. E como ele consegue transmitir claramente o estado mental dos personagens, irreversivelmente perdidos mas ansiosos por sentido e redenção, talvez o próprio espírito daquela época.
Enfim, pode não dizer nada pra vc hoje. Mas não dá pra fechar os olhos, nenhum ícone é assim tão casual.
Anrafel,
pois é… a memória me trai e eu confundo Brigitte com Giselle…rsssss…
De qualquer forma, eu ficava fascinado com aquelas histórias, que faziam a criança-adolescente que eu era “viajar” pela velha Europa, em aventuras meio rocambolescas. Maravilha essa tal literatura, né?
Ha algumas semanas li uma dessas notinhas sobre os 50 anos do “on the road” e pensei, porque não? Dedo passando pela minha pequena biblioteca, alguns Fante depois e perto dos Bukowski, cheguei nos kerouac. La estava o on the road, de tão boas lembranças, vinte anos atrás. Pra que a tentação de ler de novo? Não, deixei ele lá, quietinho com a poeira e parte da adolescencia. Peguei “os subterrâneos”. Botei um charlie parker pra ouvir, abri um vinho e li numa sentada. GRANDE KEROUAC! Na primeira vez, há muito tempo, o livrinho ja havia descido redondo, com seus parágrafos longos e fraseado jazzistico. Dessa vez, perto dos meus cinquenta, achei de um frescor e integridade que andam em falta naquilo que andam publicando.
Pra mim, os subterraneos passou a ser o “Revolver”: pode não ter a fama do “Sgt Peppers”, mas pra mim, é melhor…
substimados ou não, quem nunca leu o apanhador e pé na estrada perdeu alguma coisa, vocês não acham não?
Neo,
assino embaixo..
É isso ai, quem não os leu perdeu. Aliás, está perdendo.
literatura para mim sempre teve a ver muito com vida. acho que poucos escritores superam a vida levada por kerouac. poucos. há alguns que se deliciaram com uma vida interior fascinante, como proust ou muitos outros, mas kerouac soube aproveitar sua juventude e, com isso, realizar seu romance de geração que, a meu ver, é um dos mais belos libelos sobre vida e literatura. on the road não envelheceu. o espírito do tempo envelheceu. eu, infelizmente, envelheci. mas ainda prefiro “aqueles que jamais bocejam” e que nunca “dizem coisas banais”. botes contra a corrente, enfim.