E assim como o casamento entre Kafka e os pós-graduados parece ter certo grau de necessidade, o casamento entre Kafka e a internet tem o ar disfuncional e pesadelar de uma união arranjada entre duas partes que se ignoram. O próprio Kafka sentia uma repulsa visceral à vida doméstica a dois, desviando o olhar dos trajes de dormir de seus pais dobrados sobre a cama; mas quão pior do que isso será o que temos aqui, o aburguesamento do nada? Acabamos por ser os conselheiros matrimoniais, sentados do outro lado do vidro que nos permite ver sem sermos vistos, observando a replicação incessante e assexuada de blog após ensaio após atualização, uma ordem simbólica dando lugar à seguinte enquanto a longa sombra de Kafka filtra-se sinistramente pelo vidro da tela que você está encarando no momento. Em sua “Carta ao meu pai”, Kafka escreveu: “Casar, começar uma família, aceitar todas as crianças que vierem e ajudá-las nesse mundo inseguro é o melhor que um homem pode fazer”. E assim descobre-se que esses temas espúrios são seus únicos temas. E se os precursores de Kafka são Zenão, Lewis Carroll, Lord Dunsany, então seus sucessores são estes: os cookies não comestíveis que mastigam eles mesmos o espaço virtual enquanto você pula de infoquadro em infoquadro, absorvendo nesse processo em seus corpos de verme toda a informação necessária para relatar às autoridades onde você vive, aonde vai, o que olha e o que compra.
Retomando seu diário no dia 6 de abril de 1917, depois de uma folga de cinco meses dedicada à ficção, Kafka escreveu um fragmento de 150 palavras que mais tarde incorporaria àquela que, para mim, é a mais perturbadora de suas obras curtas, “O caçador Gracchus”. Condenado a vagar pela terra sem trégua, aprisionado num limbo que coexiste com o mundo dos vivos, “eu estou”, diz Gracchus, “sempre na grande escadaria que leva até o alto. Nesse lance de escadas infinitamente largo, ora para cima, ora para baixo, ora para a direita, ora para a esquerda, sempre em movimento”. Eu o vejo lá, aprisionado em sua pose distintamente kafkiana de fluida inanição – e eu vejo você lá também, espiando o mundo do lado de cá, sua mão se mexendo ora para cima, ora para baixo, ora para a direita, ora para a esquerda, sempre em movimento enquanto você mesmo permanece estático.
O fragmento acima faz parte de um imperdível “ensaio digital” (em inglês) que acaba de ser publicado na web pelo escritor inglês Will Self (foto), chamado Kafka’s wound (“A ferida de Kafka”). Texto estranho, de um escritor estranho sobre outro escritor estranho, o longo ensaio às vezes beira o incompreensível em sua técnica de associação de ideias. “Não consigo me impedir de ligar uma ideia à outra com base apenas em sua contiguidade no tempo, no espaço, em minha própria mente”, avisa Self logo no início. Seu método – pois é evidente que há um, embora o autor dê a impressão de ter escancarado as tais portas da percepção ao concebê-lo – não é surrrealista como o alerta acima pode sugerir. Está mais para expressionista: consiste basicamente em tratar uma vasta erudição histórica e literária e um bom punhado de insights idiossincráticos em pé de igualdade, recombinando-os ludicamente para fazer de Kafka nosso cicerone numa galeria subterrânea que leva da Primeira Guerra Mundial ao mundo digital contemporâneo. Enquanto isso, o percurso vai sendo comentado, à direita da mancha textual, por ícones que abrem – com uma elegância gráfica raramente vista no mundo da hipermídia – citações, vídeos, fotografias e trilhas sonoras. Boa viagem.
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