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‘A garota na teia de aranha’: há vida após a morte?

12/09/2015

a garota na teia de aranhaCom mais de 80 milhões de exemplares vendidos e uma adaptação hollywoodiana de sucesso, a trilogia de suspense e ação Millennium, do escritor e jornalista sueco Stieg Larsson, ganha agora um quarto volume: “A garota na teia de aranha” (Companhia das Letras, tradução de Guilherme Braga e Fernanda Sarmatz Akesson, 472 páginas, RS 44,90). Se a notícia é boa ou má para sua legião de fãs, eis um mistério que, como nos bons thrillers, só a leitura atenta do livro pode resolver.

Ocorre que Larsson não escreveu o quarto romance da série nem poderia tê-lo feito: morto aos 50 anos, vítima de um ataque cardíaco, não teve tempo sequer de ver o primeiro título, “Os homens que não amavam as mulheres”, ser publicado em 2005. A continuação da saga do jornalista investigativo Mikael Blomkvist e de sua aliada sociopata, a jovem hacker pós-punk Lisbeth Salander, é assinada por David Lagercrantz, também sueco e também dono de uma carreira equilibrada entre o jornalismo e a literatura.

A fidelidade de Lagercrantz ao universo de Larsson é meticulosa. O idealista Blomkvist, sócio da revista Millennium, continua determinado a usar seus talentos de repórter para defender os oprimidos e atacar o que, às vezes de forma panfletária, vê como os grandes males do mundo: banditismo financeiro, radicalismo de extrema-direita e corrupção estatal. Quanto a Salander, sua condição de estrela da companhia é confirmada já na capa do novo romance pela chamada “Lisbeth está de volta”.

Lagercrantz, que não é bobo, tira o máximo proveito do fato de lhe ter caído no colo uma das personagens literárias de maior apelo pop deste século e a introduz em cena aos poucos, esticando a corda do suspense até que a moça emburrada, sempre vestida de preto e pronta a fazer justiça com as próprias mãos, ponha realmente em ação sua figura tatuada e crivada de piercings. A essa altura “A garota na teia…” já vai quase pelo meio – e começa a melhorar.

Ocorre que Lagercrantz, por mais que se dedique ao papel de ventríloquo, não é Larsson. Principalmente quando o foco narrativo começa a se multiplicar por personagens secundários, à moda do criador da série, sua mão é mais pesada, os clichês mais frequentes, e os diálogos resvalam com frequência para o artificialismo didático.

A recapitulação do passado para justificar as ações presentes retarda a decolagem do romance e expõe o autor a uma crítica básica das oficinas literárias: sobretudo na primeira metade do livro, ele conta mais do que mostra, isto é, dedica-se a explicar como as coisas são em vez de apresentar cenas vivas e deixar que o leitor tire suas conclusões. Isso se deve em parte à necessidade de dialogar com o legado do antecessor, mas também às exigências da trama intrincada que bolou.

A intriga de “A garota na teia…” começa a se armar quando um brilhante cientista sueco que pesquisa inteligência artificial, pai de um menino autista, descobre um esquema de venda de segredos industriais com ramificações na poderosa NSA, a agência de espionagem digital dos EUA. Como diz o simpático inspetor de polícia Jan Bublanski, mais uma herança larssoniana, trata-se de “um mundo em que para se manter saudável você precisa ser paranoico”. Este não é o único elemento de atualidade do livro: a crise da Millennium, representante da velha mídia sustentada por publicidade num mercado em que as redes sociais cada vez mais ditam as regras, também lhe confere uma crispada contemporaneidade.

O que não é sinônimo de verossimilhança. Como em todas as histórias seriais que criam leitores viciados, a dose da droga tem que ser cada vez mais forte para fazer efeito. Lisbeth Salander chega ao fim do livro parecida com uma super-heroína indestrutível, e portanto menos humana. O fato de ter invadido sozinha o servidor da NSA e exposto seus segredos ainda se engole, pois sua genialidade com computadores é um pressuposto da história. Mais estranho é que os EUA decidam fazer vista grossa para isso. Edward Snowden teve menos sorte.

Ainda que tenha implicações éticas discutíveis, a prática de manter vivos personagens célebres de autores mortos é consolidada no mercado editorial. O nome do escritor americano Robert Ludlum, criador do famoso espião Jason Bourne, aparece na capa de mais best-sellers escritos por “colaboradores” após sua morte, em 2001, do que antes dessa data. Até um escritor de grande prestígio crítico como o irlandês John Banville entrou na dança ano passado ao lançar, sob o pseudônimo Benjamin Black, um romance narrado pelo lendário Philip Marlowe, detetive criado pelo escritor americano Raymond Chandler, morto há mais de meio século.

Tratando-se de personagens que ainda não caíram em domínio público, basta que os herdeiros dos direitos autorais autorizem a brincadeira para que tudo se passe dentro da legalidade. No caso da série Millennium, porém, existe um elemento complicador: a viúva de Larsson, que a Justiça sueca privou de herança por não ter sido oficialmente casada com ele, condenou a empreitada como uma apelação comercial. O virtuoso Mikael Blomkvist, alter ego do autor, certamente assinaria embaixo.

Texto publicado na edição de VEJA que está nas bancas.

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