Eu me descobri envolvido em algo que se pode chamar de evento histórico mundial. Pode-se dizer que foi um grande evento político e intelectual do nosso tempo, até mesmo um evento moral. Não a fatwa, mas a batalha contra o Islã radical, da qual essa foi apenas uma refrega. Têm sido levantados certos argumentos, até por pessoas de orientação liberal, que me parecem muito perigosos. Argumentos que são basicamente de relativismo cultural: nós temos que deixá-los fazer isso porque é a cultura deles. Minha visão é: não. Circuncisão de mulheres – isso é uma coisa ruim. Matar pessoas porque você não gosta das ideias delas – isso é uma coisa ruim. Nós temos que ser capazes de ter um sentido de certo e errado que não se dilua nesse tipo de argumento relativista. Se não tivermos, teremos deixado de viver num universo moral.
Em entrevista ao “New York Times”, concedida no mês passado mas publicada ontem, Salman Rushdie tocou com lucidez nos pontos que tornam “Joseph Anton” (Companhia das Letras, tradução de José Rubens Siqueira e Donaldson M. Garschagen, 616 páginas, R$ 54,50) – seu livro de memórias sobre a década que passou escondido sob o codinome inspirado em Joseph Conrad e Anton Tchekhov – ao mesmo tempo fundamental e vulnerável.
O livro é fundamental por trazer o depoimento pungente – escrito na terceira pessoa, em recurso semelhante ao que Cristovão Tezza empregou em “O filho eterno” – de quem esteve num lugar que ninguém, em sã consciência, sequer sonha visitar: o de um escritor de ficção condenado à morte por um chefe de Estado estrangeiro com base em um livro, “Os versos satânicos”, que poucos de seus perseguidores leram e que não diz nada do que eles alegam que diz. Não creio que haja na história da literatura exemplo mais cru de kafkianismo aplicado. Num mundo em que o poder da ficção parece abalado por todo tipo de kriptonita, trata-se provavelmente da grande trama “literária” – se forçarmos o adjetivo a abarcar as construções políticas e sociais em torno da literatura – pela qual nosso tempo será conhecido.
O que torna “Joseph Anton” vulnerável a críticas vindas do outro lado do balcão que separa “Ocidente” e “Oriente” – entendidos aqui como territórios ideológicos e não geográficos – está enraizado na mesma radicalidade da experiência individual da qual brota sua força. É possível concordar com algumas das observações que o escritor Pankaj Mishra enumera longamente (em inglês) no “Guardian”: Rushdie não aparece em seu melhor ângulo quando expõe traços negativos de suas ex-mulheres nem quando, transformado em celebridade, mostra algum deslumbramento no convívio com poderosos e “perdoa” Tony Blair pela invasão do Iraque com base no apoio que recebeu do ex-primeiro-ministro britânico para sua própria causa.
No trecho de entrevista selecionado acima, esse ponto cego na lucidez política de Rushdie pode ser localizado na referência a “matar pessoas porque você não gosta das ideias delas”, como se tal prática fosse exclusiva do islamismo radical e jamais, sob outros disfarces e justificativas, compartilhada por potências ocidentais.
Quer dizer que a visão de mundo do homem não é inatacável? Com certeza não, mas seria razoável esperar algo diferente de quem, no espaço de um telefonema, como é descrito de modo brilhante no prólogo do livro, viu-se transformado em alvo virtual de uma multidão de fanáticos religiosos e teve sua vida destroçada? A solidão de Rushdie é inconcebível. “Joseph Anton” não é um tratado de ciência política, mas o relato literário dessa solidão. Cobrar dele um tom olímpico que excluísse por completo o acerto de contas com quem lhe negou apoio nos momentos mais difíceis – como John le Carré, que sai diminuído do livro – é simplesmente injusto.
Da mesma forma, não me parece ter cabimento a insinuação feita por Mishra de que Rushdie foi corresponsável pela onda de “islamofobia” que cresceu no Ocidente nesse período, traduzida com especial acidez nos escritos de seu amigo Christopher Hitchens. Sem a oportunista e criminosa fatwa do aiatolá Khomeini, “Os versos satânicos” seria apenas um romance vagamente polêmico, mas menor, do autor de “Os filhos da meia-noite”. Rushdie entrou nessa escalada de intolerância no papel de bode – e pagou um preço tão alto que o fato de ter conseguido manter a sanidade já seria digno de nota. Que tenha reunido forças para escrever sobre o pesadelo, às vezes até em tom de comédia, é admirável.
No fim das contas parece natural que, como o próprio Rushdie passa perto de reconhecer na declaração acima, o “evento histórico mundial” em que se viu envolvido tenha ido além de sua própria capacidade de dar conta dele. Os recentes desdobramentos envolvendo um filmete calhorda sobre Maomé, numa espécie de affair “Os versos satânicos” revisitado como péssima farsa, são um dos sinais de que o jogo ficou mais complexo. Quer dizer que também a democracia e a liberdade de expressão, e não só a teocracia e a censura, podem ser usadas para o mal? (Sobre isso, vale a pena ler a análise do vizinho Caio Blinder.)
O que resiste a qualquer consideração matizada é o motivo que está no coração de “Joseph Anton”. Trata-se de um motivo justo e impermeável a toda negociação relativista: quem condena um artista a morrer por sua obra, qualquer obra, é o inimigo. Ponto. O resto a gente vê depois.
5 Comentários
Excelente texto, Sérgio.
Valeu, Arthur. Um abraço.
Primoroso texto – e muito pertinente nesses tempos tão (paradoxalmente) sombrios.
…”como se tal prática fosse exclusiva do islamismo radical e jamais, sob outros disfarces e justificativas, compartilhada por potências ocidentais. Até em Veja vemos colunistas antiamericanos. O cara pra ser “legal” tem que falar mal dos países ocidentais. Comparar os países ocidentais com estes terroristas insanos, é muita má-fé ou incompetência.
Chamar o colunista de antiamericano e dizer que ele “compara países ocidentais com estes terroristas” significa, no mínimo, que você não leu o artigo direito (deixemos de lado outras hipóteses). Tento apenas não ser cego, dá trabalho, mas recomendo.
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