…a TV americana dos primeiros tempos fazia uma apologia hipócrita de valores cuja realidade tornara-se atenuada num período dominado por grandes corporações, entrincheiramento burocrático, aventureirismo além-fronteiras, conflito racial, bombardeios secretos, assassinatos, escutas telefônicas etc. Não se trata de nenhum acidente que a ficção pós-moderna tenha ajustado sua mira irônica sobre o banal, o ingênuo, o sentimental, o simplista e o conservador, pois essas eram precisamente as características que a TV dos anos 60 parecia celebrar como distintamente americanas.
A ironia rebelde da melhor ficção pós-moderna não era apenas plausível como arte; parecia ter plena utilidade social em sua capacidade de fazer o que os críticos da contracultura definiram como uma “negação crítica que deixasse evidente para todos que o mundo não é o que parece ser”. A sombria paródia dos hospícios feita por Kesey sugeria que os árbitros de nossa sanidade eram frequentemente mais malucos que seus pacientes; Pynchon reorientou nossa visão da paranoia, promovendo-a de desvio psicológico marginal a fibra principal no tecido corporativo-burocrático; DeLillo expôs a imagem, o signo, a informação e a tecnologia como agentes do caos espiritual e não da ordem social. As doentias investigações de Burroughs sobre o torpor americano detonavam a hipocrisia; a denúncia de Gaddis do papel deformador do capital abstrato detonava a hipocrisia; as repulsivas farsas políticas de Coover detonavam a hipocrisia.
A ironia da arte e da cultura do pós-guerra começou da mesma maneira que a rebelião jovem. Era algo difícil, doloroso, mas produtivo – o soturno diagnóstico de uma doença longamente negada. As premissas por trás daquela primeira ironia pós-moderna, por outro lado, ainda eram francamente idealistas: supunha-se que a etiologia e o diagnóstico apontassem para a cura, que a exposição do cativeiro conduziria à liberdade.
Então como foi que a ironia, a irreverência e a rebeldia se tornaram debilitantes, em vez de libertadoras, na cultura sobre a qual a vanguarda de hoje tenta escrever? Uma pista pode ser encontrada no fato de que a ironia ainda está aí, maior do que nunca, depois de trinta anos como modo dominante de expressão dos artistas antenados. Não é um recurso retórico que envelheça bem.
Traduzi um texto de David Foster Wallace sobre o uso da ironia pela televisão e as dificuldades que isso impõe à ficção contemporânea, que teve um pequeno trecho (não idêntico a esse acima, embora haja uma interseção) publicado no número 6 da revista “Serrote”, que acaba de sair. [Atualizado em 27/11: o ensaio integral, E unibus pluram, foi publicado na coletânea “A supposedly fun thing I’ll never do again”, que não foi lançada no Brasil.]
4 Comentários
Trata-se do ensaio “E Unibus Pluram: Television and U.S. Fiction”?
Sim, Leandro. Não na íntegra, mas um naco – recorte autorizado, naturalmente.
A supposedly fun thing I’ll never do again”
É isso… enquanto a Tv brinca de ficção, a ficção mata aqui fora.É hora da Verdade nua e crua, ou Brasil não será a Nação Esperança para as Nações. E a Verdade só vem acompanhada da humildade.
Parece paradoxo, mas a humildade precisa da “ironia”. Quer fato mais irônico que um Rei nascer numa Manjedoura? Quer fato mais irônico que Um Rei Salvador morrer calado se entregando a um beijo do amigo(?)? Mas tem que ser uma ironia com humildade de verdade, senão entra soberba e todo soberbo é exposto. Brasil está sendo confrontado com a Soberba. E veremos muita soberba exposta. É a hora e a vez dos humildes. Deus abate soberbo e exalta os humildes. Isso é fato.