Oficina literária de melhor custo/benefício eu não conheço: comprar num sebo (os preços, na Estante Virtual, começam em R$ 5) um exemplar do livro de contos “A face horrível”, do escritor mineiro Ivan Ângelo (Nova Fronteira, 1986), e ir direto às três últimas histórias, chamadas “Dénouement”, “Entrevero do autor com seu conto” e “Final”.
As três histórias são, de certa forma, uma só. Eis a oficina.
Convém explicar. Como a maior parte dos contos de “A face horrível” foi publicada pela primeira vez na juventude do autor, em 1961, num livro chamado “Duas faces” (em parceria com Silviano Santiago), Ivan Ângelo avisa num curto prefácio que deu uma retocada em todos eles, coisa leve.
O caso de “Dénouement” é o único em que a intervenção do autor maduro foi radical – e, felizmente, feita para todo mundo ver. Primeiro lemos a história como ela foi escrita em 1959. Depois, no “Entrevero…”, o mesmo conto é dissecado impiedosamente, entremeado de anotações críticas em itálico. Por fim, em “Final”, lá está a mesma (?) história, agora em sua versão moderna, sem dúvida superior.
Para quem escreve ou quer escrever ficção a sério, uma delícia de exercício. Talvez a única desvantagem na comparação com as oficinas literárias que andam na moda seja a improbabilidade de se comer alguém dessa forma.
17 Comentários
Li, quando adolescente, um livro do Ivan Ângelo que me provocou uma sensação estranhíssima. Intitulava-se, creio, A casa de vidro. Nunca mais vi esse livro, nem nas livrarias nem em sebos. Talvez fosse hora de relê-lo.
Eis um comentário realmente instigante! Gosto quando alguém abre o livro da eternidade e me sugere uma página remota, e não a última.
Não seria bom se os colunistas literários/musicais/plásticos/teatrais, na falta de uma novidade “da semana”, indicassem uma obra perdida nas dobras do tempo? O mundo seria melhor se o crítico de um jornalão ou revistona resolvesse recomendar um livro esgotado, de vez em quando…
Ivan Ângelo publicou “A Festa” em tempos difíceis de censura & ditadura. Era um livro bastante sofisticado na forma e ao mesmo tempo de leitura – digamos – fácil porque arrebatadora, irresitível, impossível largar no meio para – no final – remontar e ressignificar os blocos anteriores retomados nos capítulos finais, “Antes da festa” e “Depois da festa”. Era meio romance-painel (mesmo com menos de 200 páginas) e meio livro de contos que depois se agrupavam. Um dos grandes livros brasileiros do século XX. “A Casa de Vidro” e “A Face Horrível” era ótimos, mas os poucos (uns dois talvez) posteriores não me deixaram nenhuma lembrança, acho que não eram tão bons. Mas quem escreveu os três citados já merece respeito absoluto. Os contos de “A Face Horrível” eram excelentes mesmo conforme já está demonstrado no texto do Sérgio.
Já estou indo atrás. Obrigada pela dica, não conhecia esse livro.
Concordo com o Daniel. O revigorante frescor do passado que vem com os livros que já lemos e ainda respiram em algum desvão de nosso imaginário.
não acredito em obra definitiva. só se for para os outros. tendo oportunidade, o autor sempre dará um ou outro retoque.
O autor tem todo o direito de mudar de opinião e resgatar algum trecho previamente descartado, eliminar ou acrescentar outros.
contudo, no mexer e remexer do texto, existe o perigo iminente do assoreamento de boas idéias. um texto é resultado de suas versões e revisões, camadas que, no papel, serão praticamente inexumáveis.
Em formato digital, teremos sempre à disposição algum track changes, como aquela opção do ms-word.
A tecnologia tb possibilita aos autores a facilidade de compartilharem, generosamente , o passo a passo do nascimento de suas obras (inclusive com enfoque didático).
Stephen Hero e Portrait of the Artist as a Young Man tb são exemplos de rascunho e arte-final à disposição para leituras comparativas.
bemveja: o santos dumont número 8 tb, da concepção até a sua execução (o ulysses de JJ, não a toa, foi certa fonte de inspiração).
agora, tento dar um passo à frente com o romance madame augustyna de varsóvia, cujo processo de criação abro na internet a todos os interessados.
o objetivo é experimentar que valores agregados (não apenas em termos de referências externas) a rede oferece.
sintam-se convidados (vc e tds os amigos do TP) a visitarem minha escrivaninha virtual em http://madameaugustyna.vox.com/.
façam comentários, enviem sugestões. as boas idéias são sempre muito bem vindas.
????
Sérgio, seu comentário final sobre “comer alguém dessa forma” era realmente necessário?
Claro que absolutamente necessário, Clara. Onde você quer que encaixemos o nosso porco chauvinismo nesse caso? Oras, sempre por entre as pernas…
Clara: “realmente necessário” é uma dupla advérbio-adjetivo de escassa aplicação por aqui. Era “realmente necessário” lembrar esse livro do Ivan Ângelo? Mas de modo algum eu abriria mão do tal comentário, que além de divertido me parece verdadeiro. A propósito, não sei se isso ajuda na digestão, mas o verbo “comer” está usado aí no seu sentido mais moderno possível, com sujeito unissex. Um abraço.
C.Soares, perfeito, os trechos sublinhados (Chopin etc) serão transformados em links?
Daniel Brazil, aí começaria uma aventura tal qual Indiana Jones e… pois quem sair a busca de tal incunábulo esteja preparado para uma corrida de aventura pela geografia de sebos e bibliotecas públicas. Alías, dependendo do crítico e do trabalho apresentado no Jornal penso que até as grandes bibliotecas particulares incensadas pelos comentaristas e repórteres seriam seriamente ameaçadas pela “Busca do Livro Perdido”. Alías tem um filme ambientado na china feudal, milenar, que tange esta idéia “A Escritura Sagrada” (na trad. do Brasil).
isso mesmo, Bemveja. serão categorias diferentes de links, tais como referências, personagens, lugares, etc. personagens, por exemplo, deverão ter uma área especial com resumos de suas características psicológicas, físicas, etc. os locais onde a história acontece (Brasil, Europa) deverão ser linkados com google maps, earth, mais outras referências históricas que estou coletando. fora outros recursos que serão integrados para permitir uma visão acompanhada do ciclo de vida do romance e uma maior interatividade com a história. e espero por seus comentários e sugestões.:-)
O filme que falei é:
Em Busca da Escritura Sagrada (Mo him wong, 1996)
Sergio, sei que esta postagem é um pouco idosa, mas hoje, num universo de milhoes e milhjares de escritores, vim a conhecer o Ivan Angelo. Adorei o livro que li – Pode me beijar se quiser. Sou fâ de livros infanto-juvenis.
A proposito, ja fis uma oficina literaria e não comi ninguém (era oficina virtual).