Ela deu um meio sorriso de olhos baixos, como se tentasse ler desígnios superiores nos volteios dos pedaços de limão esmagados no fundo do copo, e disse que a maior ofensa que se costuma fazer às de sua espécie é supor como móvel de sua busca sem fim uma ilusão vizinha da loucura ou da imbecilidade – a de que os homens que dedicam a vida a simular outras vidas por escrito são mais gostosos ou tesudos, mais misteriosos ou desafiadores do que os mortais comuns. O meio sorriso virou uma gargalhada seca, tão áspera e alta que metade do bar se voltou na nossa direção, inclusive todos os garçons. Ela aproveitou para erguer o copo vazio com a mão esquerda e bater nele com a unha comprida do indicador direito, esmalte carmim, três pancadinhas que tilintaram longamente dentro do segundo de silêncio instaurado por seu riso. O garçom mais próximo assentiu com a cabeça e fez meia-volta. Se houver alguma relação, ela prosseguiu, é bem o contrário, escritores tendem a ser piores de cama do que a média dos homens: mais broxas, mais ejaculadores precoces, além de mais inseguros, mais ciumentos, mentirosos, desleais, descuidados, caspentos, fedidos, barrigudos, egoístas, frios, estúpidos, babacas… Tudo aquilo que os homens em geral costumam ser, escritores têm tendência a ser um pouco mais. Eu posso dizer, ela disse, porque já fiz muita pesquisa de campo, qualitativa e quantitativa, e no entanto… Me fixou com seus olhos negros e acrescentou: Não pense que é por masoquismo que eu prefiro dormir com escritores. Muito longe disso. Fiquei aguardando ela me dizer por que, então, preferia dormir com escritores, mas o silêncio se prolongou. O garçom veio com a nova caipirinha. Ela retirou o canudo do copo, depositou-o sobre o guardanapo e tomou um gole longo. Aproveitei para observá-la: brincos em forma de serpente chegando quase aos ombros nus, sutiã corajosamente ausente. Tinha idade para ter conhecido a poesia marginal, calculei, tateando metáforas bêbadas: se existe algo como uma mão encarregada de passar o bastão entre as gerações literárias, então ela usa esmalte escarlate e está diante de mim bem agora. Apesar de sentir uma ponta de curiosidade, decidi não perguntar por que ela preferia dormir com escritores. Me intrigava mais naquele momento o fato de escritores toparem dormir com ela. Seria, talvez, porque assim se sentiam escritores na plenitude da palavra – escretores, excretores – essa condição fugidia e enganadora, vaidosa e mesquinha, que ao contrário do que se pensa é infinitamente mais fácil assumir perante o mundo do que na própria alma? Aí ela vinha e assinava embaixo: és escritor, sim; por que outro motivo eu estaria aqui fazendo o papel de tinteiro para a tua pena? Foi então que o teto do bar despencou sobre nossas cabeças. Com o corpo subitamente envolto num filme de suor gelado, joguei uma nota de vinte sobre a mesa e me levantei. Sabia que, ao proceder assim, puxava mais para baixo a nota dos escritores na pesquisa dela, mas não tinha escolha. Se corresse, talvez conseguisse chegar ao banheiro antes de vomitar.
Publicado em 16/6/2008. Republicado a pedidos.
11 Comentários
Excelente texto, Sérgio. Muito bem escrito e prende a atenção do início ao fim.
excelente.
M A R A V I L H O S O !!!!!!!! Muito bom, mesmo! Esse “Tinha idade para ter conhecido a poesia marginal…” é excelente, uma forma bastante original e poética de dizer a idade de alguém, ainda mais quando se trata de mulheres, sempre tão avessas quanto à revelação das “primaveras”.
Sutil. Refinado.Definitivo.
…isso dá saudade do Nareba e seus surtos psicóticos. ai
que falta que ele faz.
Isso tá virando sessão da tarde ou vale a pena ver de novo…rsrs… já li esse miniconto e achei legal. Acho que precisamos coisas novas. Do Nareba seria uma boa.
Tibor,
Segundo fontes fidedignas que consultei, o bravo Nareba está trabalhando numa continuação apócrifa do livro Elza, a Garota. Dizem que ele está inspirado pelo ilustre precedente de Guerra e Paz, cuja segunda parte foi redigida por um obscuro escritor que nutria um ciúme doentio pelo sucesso angariado por Tchecov. Nareba, como sabemos, possuiu uma erudição invulgar. Minhas fontes asseveram que Nareba disse em alta voz, batendo no peito: “Pois, sim! Ninguém melhor que eu conhece história da frustrada revolta da vacina, célebre episódio ocorrido sob a ditadura de Médici. Meu rigor histórico com certeza ofuscará o livro do Fernando Molica!”
É isso mesmo, Tibor. Você deve ter lido em junho de 2008, data da primeira publicação, como está dito ali em cima. Mas a julgar pelos comentários do Nilton, do Isaac, do José Rubens e do Carlos Eduardo, a quem agradeço pelas palavras bacanas, para muita gente “A pesquisadora” é novidade, o que me parece justificar sua reedição. Obrigado também ao Rafael pelas notícias do sumido Nareba. Abraços a todos.
Gosto de reler coisas interessantes. Acho encantador como a interação com o texto pode se modificar, ou como novos detalhes podem ser observados, novas perspectivas…
Esse deve ter me escapado da leitura na época da primeira publicação. Excepcional. Esses escritores também são um bocado lascivos não? Seja por mulheres ou por palavras…
” Sutiã corajosamente ausente”.
Que maneira delicada e sutil em observar q ela não tinha condições para estar sem sutiã.
Maravilha de conto, espero q continues a reeditar outros destes quilate!