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A polêmica Mann-Schoenberg ou a morte do escritor-deus

05/11/2012

É imperdível este artigo que Enrique Vila-Matas publicou no “Babelia” em fevereiro deste ano – e que eu quase perdi. Resgatei-o por acaso, e como não se trata de matéria que envelheça tão facilmente, compartilho aqui o relato mordaz sobre a polêmica entre dois gigantes das artes do século 20, o escritor alemão Thomas Mann e o compositor austríaco Arnold Schoenberg, com o auxílio luxuoso de Theodor Adorno no papel de intermediário. Segue um breve resumo da confusão, que espero que funcione como isca e não como substituto da leitura do texto em espanhol.

Ao escrever, já em seu exílio americano, o romance “Doutor Fausto”, que lançaria em 1947, Mann sentiu que esbarrava nos limites de seus conhecimentos musicais. Estes não eram pequenos, mas ele precisava dar ao personagem do compositor Adrian Leverkühn a capacidade de voos mais altos, fazer dele um revolucionário pensador da música. Em seu socorro veio um solícito Adorno, compatriota mais jovem – apresentado como “adulador, quase servil, admirador ardente” de Mann – que tratou de lhe fornecer competentes resumos das teorias de Schoenberg, o criador do dodecafonismo.

Pois bem: o escritor teria enxertado então em seu romance esses resumos, sem mudar quase nada – algo que ocorreu, é bom frisar, algumas décadas antes de surgir a ideia do direito ao sampleamento universal. O próprio Adorno não parece ter se incomodado com isso, mas Schoenberg não achou graça nenhuma. Começou então uma rumorosa polêmica que terminaria por garantir ao compositor um crédito nas edições futuras de “Doutor Fausto”, e a Mann uma ferida no vasto ego. Eis a conclusão de Vila-Matas:

Às vezes, quando penso em todo esse velho assunto da polêmica sobre aquele plágio, acredito me dar conta de que, enquanto Mann se propunha em seu romance a situar o momento em que se deu a ruptura entre arte e beleza (ou, melhor dizendo, o fim da Grande Arte, com a emergência do gosto popular ou, o que vinha a dar no mesmo, o fim do mundo que olhava para Deus e não para o homem), o próprio Mann, com seu doloroso episódio de luta com o vizinho californiano Schoenberg, ilustrou à perfeição – na vida real, o que é mais assombroso – o fim dos romancistas todo-poderosos, aqueles que, como Deus em um tempo que hoje só existe na memória, acreditavam ser tudo propriedade sua, inclusive as partituras musicais do vizinho, que o mordomo sabia resumir com perfeição.

3 Comentários

  • Rafael 05/11/2012em14:57

    Sérgio,
    Acabei de ler o artigo do Vila-Matas e gostaria de agradecê-lo pela sugestão.
    Confesso que nunca fui um admirador do Thomas Mann, um grande escritor, sem dúvida, “o maior escritor dos escritores de segunda ordem”, como bem o caracterizou Otto Maria Caupeaux num dos ensaios mais cáusticos que já escreveu.
    Apesar disso, registro meu profundo respeito pela sua ambição literária, que, sendo tão desmedida em seus horizontes, só poderia ser mesmo falhada em sua execução.
    Pergunto-me que calamidade se abateu sobre nós, a ponto de desistirmos dos grandes projetos?
    Ao contrário do Lemuel Gulliver, abandonamos Brobdingnag, o país dos gigantes, para aportamos em Lilipute! E, pior ainda, caímos na mesma tentação que induzira Alice a morder o bolinho que faz irremediavelmente diminuto quem o experimenta.
    Um viva ao Thomas, que não cedeu ao impulso de abandonar a tarefa apenas porque ela se afigurava superior aos seus dons intelectuais! Antes ceder ao pecadilho de plagiar um gigante como Schoenberg do que posar de inteligente com uma citação da Wikipédia.
    Vale.

  • Roberto Kenard 07/11/2012em00:08

    Meu caro, o Enrique Vila-Matas teria feito melhor se tivesse ficado calado. Agiu como jornalistas que querem fazer polêmica às custas de polêmicas alheias, a partir de frases de efeitos. Uma tolice, convenhamos. Ele escreve, por exemplo: “o próprio Mann, com seu doloroso episódio de luta com o vizinho californiano Schoenberg, ilustrou à perfeição – na vida real, o que é mais assombroso – o fim dos romancistas todo-poderosos, aqueles que, como Deus em um tempo que hoje só existe na memória, acreditavam ser tudo propriedade sua, inclusive as partituras musicais do vizinho, que o mordomo sabia resumir com perfeição.” Pois se dava justo o contrário: não era o fim dos romancistas todo-poderosos, mas o início de uma visão moderníssima, qual seja, a de que nada era propriedade de ninguém, e tudo servia ao propósito criativo do ficcionista. Algo mais moderno? O artigo é fruto de uma infinita ignorância. Nada mais.

  • André Tezza 08/11/2012em17:24

    Sérgio, salve! Conheço uma versão diferente desta história, nas mãos do ótimo Alex Ross, em O Resto é Ruído. Antes da criação de Dr. Fausto, Schoenberg procurou o prestígio de Mann (que já tinha o Nobel) para tentar publicar o ensaio “Programa de quatro pontos para os judeus”. Segundo Ross, é um ensaio limítrofe do totalitarismo, e que Mann o teria respondido comentando a “tendência fascista” e a “propensão ao totalitarismo” do documento. É este o pano de fundo anterior ao surgimento do Dr. Fausto. Adrian Leverkühn é inspirado deliberadamente em Schoenberg (assim como o diabo é inspirado em Adorno – algo que divertia tanto Mann quanto Adorno). Nesta perspectiva, a questão do plágio é secundária, porque o livro, em parte, é uma crítica a Schoenberg. Nas palavras de Ross (p.48): “A adoração fanática da arte moderna revela sua semelhança com o fascismo político: ambos almejam uma utópica reforma do mundo. É compreensível a irritação de Schoenberg diante de tal enredo, que conferia um toque patológico aos feitos de que mais se orgulhava”. Em um trecho bastante divertido, Ross comenta (p.47): “Em certo dia de 1948 ou 1949, o Brentwood Country Mart, um complexo de lojas num bairro elegante de Los Angeles, Califórnia, foi palco de um pequeno distúrbio no qual se entreouviam ecos da mais espetacular reviravolta da música no século XX. Marta Feuchtwanger, mulher do romancista exilado Lion Feuchtwanger, estava examinando uma grapefruit na seção de frutas e hortaliças, quando ouviu uma voz gritar em alemão do final do corredor. Ela se virou e viu avançar em sua direção Arnold Schoenberg, o pioneiro da música atonal e codificador da composição dodecafônica, com sua careca e seus olhos injetados. Décadas mais tarde, em conversa com o escritor Lawrence Weschler, Feuchtwanger ainda se lembrava de cada detalhe do encontro, incluindo o peso da grapefruit em sua mão. “Lies, Frau Marta, Lies!”, berrava Schoenberg. “A senhora precisa saber, eu nunca tive sífilis!”.