Um curioso artigo de Jennifer Vanderbes na revista The Atlantic (aqui, em inglês), intitulado “O argumento evolutivo em favor da ficção de qualidade”, ganha de saída minha simpatia. Como se sabe, vivemos tempos difíceis para a tal ficção de qualidade, um tempo em que alguns de seus ex-aliados se atarefam em graves demonstrações teóricas de que a ficção está esgotada, fetichizada, transformada em mercadoria, e de qualquer modo a ideia de qualidade nunca passou de miragem ideológica, certo?
Num quadro tão hostil, qualquer palavra endereçada no sentido contrário é bem-vinda para quem se recusa, talvez por pura teimosia, a abandonar a ideia de que a literatura expressa algo de vital sobre o mundo e a experiência humana que nenhuma outra linguagem pode expressar. Seja lá o que for esse algo. Convenhamos: parece melhor que a encomenda uma defesa darwinista do poder da contação de histórias que começa ao redor de uma fogueira do Pleistosceno, 45 mil anos atrás, como se vê na ilustração acima, de Viktor M. Vasnetsov, que acompanha o artigo.
Na verdade, o que Vanderbes faz, de um ponto de vista da psicologia evolutiva, não é muito diferente de outras defesas do papel estruturante das narrativas na forma como os seres humanos se relacionam consigo mesmos, com os outros e com o mundo. Entre aqueles bibliófilos que se recusam a assinar o atestado de óbito da literatura, muitos vêm dizendo coisas parecidas nos últimos anos.
Por exemplo: que ao ouvir histórias sobre como pessoas parecidas conosco – ou muito diferentes de nós – se comportaram em tal e tal situação, adquirimos uma sabedoria que, não sendo advinda da experiência, pode aprimorar experiências futuras. Tornando-as, digamos, menos perigosas, caso a história verse sobre a caça ao mamute e contenha uma nota triste e edificante sobre como um jovem afoito fez besteira e morreu pisoteado.
Isso para não mencionar o papel que as histórias transmitidas oralmente cumpriram ao fixar na memória coletiva o conhecimento acumulado por gerações sobre fatos da natureza ou da mitologia. Ou a capacidade única que as narrativas têm de desenvolver em nós a empatia, a compreensão do outro, do diferente, sem a qual só existiria a barbárie sobre a terra. Etc.
O único ponto menos batido em que Vanderbes toca é também, provavelmente, o mais polêmico: a suposta vantagem reprodutiva de que teriam passado a gozar os melhores contadores de história da pré-história. Tietes ao redor da fogueira, de queixo caído e coração palpitante diante da primeira metáfora a ser enunciada no planeta, exigem do leitor uma boa vontade maior do que ele talvez esteja disposto a ter.
Ou não? Na parte mais suculenta do artigo, Vanderbes garante que “uma variação que aumente a prole em apenas 1% pode se espalhar por 99,9% da população em 4 mil gerações”. Um por cento? Pensando bem, uma vantagem competitiva tão modesta talvez possa ser concedida àquele parlapatão de 45 mil anos atrás junto à sua concorrida fogueira, precursora da Flip.
Com seu tom de especulação leve, quase leviana, a melhor defesa da fabulação que o simpático artigo acaba por lograr é, acredito, involuntária. Ele também só quer contar uma boa história.
6 Comentários
A pré-história é uma tremenda história, por Sérgio Rodrigues - Defender
Apesar de nao ter lido todo artigo, esta tese me parece bem plausivel, alias a questao reprodutiva seria apenas mais umas das “vantagens” do contador de historias, me ocorre neste momento que quase todos os lideres sao bom narradores, caracteristica esta, deve ter muita influencia positiva a favor dos lideres tribais pre- historicos.
Sérgio,
Li, dias atrás, um interessante artigo na Folha de S. Paulo sobre esse mesmo tema: a influência da evolução na aptidão humana de inventar e propagar narrativas. Infelizmente, não me lembro da data exata em que o artigo foi publicado, mas, acredito, deve estar disponível no site do jornal.
Acho que vale a consulta.
Vale.
Um artigo inteligente. Houve um tempo em que os melhores contadores de histórias tiveram vantagens: na política, relações de trabalho, religião, nas guerras e nas lorotas lendárias, mentirosas. Por esse motivo algumas histórias são reescritas; nem sempre as histórias contadas eram inocentes. Os meios de contar histórias mudou, hoje, muitos contadores de histórias usam um enredo mentiroso no ar por maldade para denegrir a imagem das pessoas e joga-las em um buraco profundo; ainda bem que hoje,os crédulos, são poucos.
Sérgio,
Este seu ótimo artigo me remete imediatamente a uma palestravproferida pelo Karl Popper em 1977 entitulada “Natural Selection and the Emergence of Mind”, eu deixo link no final-assumindo que seja do seu interesse. Ele termina o papo assim:
“If there is anything in this interpretation, then the process of variation followed by selection which Darwin discovered does not merely offer an explanation of biological evolution in mechanical terms, or in what has been slightingly and mistakenly described as mechanical terms, but it actually throws light on downward causation; on the creation of works of art and of science; and on the evolution of the freedom to create them. It is thus the entire range of phenomena connected with the evolution of life and of mind, and also of the products of the human mind, that are illuminated by the great and inspiring idea that we owe to Darwin.”
A propósito, as especulações são a base da ciência e a autora defende uma hipotese derivada de uma teoria postulada pelo Richard Dawkins. Segundo o Dawkins, a capacidade de imaginar e postular diferente cenarios de uma caçada é foi papel determinante para evolução da especie humana. Estas tentativas e erros imaginarios preservaram o homem situações perigosas etc etc.
Assim como o Dawkins ficou reduzidovao ateu militante. Levianamente atribuimos ideas do Huxley, conhecido como o “buldogue do Darwin”, seu amigo e maior defensor como se do Darwin fosse. Aliás, quem é que se lembra que o Darwin escreveu o livro “The Expression of the Emotions in Man and Animals”?
Eu proveito a deixa para discordar mais uma vez de você. Existe sim diferença epistemologica entre história e estória e eu acho que este brasileirismo veio bem a calhar. Como lembra bem o Karl popper é preciso diferenciar aqueles que querem apenas contar a sua estória e estes não estão a serviço da historia do ponto ee vista academico. Assim como não devemos assertivamente enterrar a fição é um error reduzir, eg Ultimate attribution error, a História aos comtadores de estória revisionistas. Talvez o que todos devemos enteder é que no ponto de vista da história uma “história bem contada” expressa exatamente o oposto daquilo o que parece. Quem sabe quem defende o fim da ficção aceite tranquilamente a uma história contada de form linear e através de um frame? Bom mas agora eu é que estou sendo leviano.
Abs
http://www.informationphilosopher.com/solutions/philosophers/popper/natural_selection_and_the_emergence_of_mind.html
“… defesa darwinista do poder da contação de história ao redor da fogueira do Pleistosceno…”
Não sei em que tipo de fogueira C.S.Lewis está ao redor enquanto nos conta as crônicas de Nárnia, mas a Bíblia sendo “O Livro” (queiramos nós, ou não), jamais será superada por nenhum argumento evolutivo. A Literatura não morrerá jamais, porque a barbárie não pode encontrar seu lugar definitivo. Que venham as ficções, as boas histórias, ao redor de fogueiras, pois as boas histórias de ficção deverão ser sempre para melhorar o ser humano.
Gostaria de sugerir, um não ficção, do C.S.Lewis: Surpreendido com a Alegria. Uma lufada de vento fresco em meio ao calor da fogueira…