Documentos policiais recém-desencavados provam algo que há muito se murmurava por aí: há em “A sangue frio”, clássico absoluto do jornalismo literário (ou do romance de não-ficção, como o autor o chamou) publicado em 1966 por Truman Capote (foto), imprecisões factuais que vão além dos pormenores irrelevantes que até hoje tinham sido apontados.
O livro reconstitui o assassinato brutal, ocorrido sete anos antes, de uma família de fazendeiros do Kansas por dois ex-presidiários. Sabe-se desde o início quem cometeu os crimes e ainda que eles serão apanhados pela polícia, mas mesmo assim a arte de Capote agarra o leitor pelo colarinho até o ponto final.
Quem não leu “A sangue frio” pode ter uma ideia do clima que cerca a história assistindo ao bom filme “Capote” (2005), de Bennett Miller, cujo trailer segue abaixo. O filme se interessa pelas circunstâncias da apuração jornalística conduzida por um intelectual citadino, sofisticado e homossexual (em interpretação memorável de Philip Seymor Hoffman), tão integrado à paisagem do interior do Kansas quanto um norueguês em Tóquio.
httpv://www.youtube.com/watch?v=-rWX7AFoOyI
Nem é preciso dizer que, para conhecer o romance, nada substitui sua leitura, que recomendo efusivamente. Trata-se de uma obra-prima. Há no mercado uma edição de 2003 da Companhia das Letras, com tradução de Sergio Flaksman, pela coleção Jornalismo Literário.
O que está errado no livro? Basicamente, como contou Kevin Helliker (em inglês) há alguns dias no Wall Street Journal, o Kansas Bureau of Investigation (KBI) parece ter sido bem menos competente e profissional do que Capote sugere. Sobretudo Alvin Dewey Jr., o policial que liderou a investigação – e que colaborou com o autor em suas pesquisas – aparece no livro sob luzes mais favoráveis do que as que agora se acendem. A gratidão de Capote o teria levado ainda a cavar para a mulher do policial um contrato em Hollywood como consultora da versão cinematográfica da obra.
Certo. É saudável que jornalistas e historiadores reescrevam o tempo todo, fazendo correções sem fim, os relatos canônicos do jornalismo e da história. A questão é: detalhes desse tipo diminuem de alguma forma uma obra literária?
As opiniões se dividem, mas fico decididamente com a turma do não. O que as novas revelações abalam, a meu ver, é sobretudo o marketing de lançamento do livro, para o qual o próprio Capote contribuiu ao anunciá-lo como “imaculadamente factual”. Não o livro em si.
A grandeza de “Os sertões” não encolheu um milímetro quando as certezas “científicas” oitocentistas com que Euclides da Cunha atulhou o livro caíram no ridículo. Os fatos que me desculpem, mas a literatura – mesmo aquela que se apoia nos ombros deles para levantar voo – não lhes deve satisfação.
13 Comentários
Esse livro é bom mesmo!
Concordo com você. Esse livro do Capote é uma obra de arte, e ponto. Mesmo que não tenha sido 100% fiel ao acontecido, ainda assim é uma história incrível e brilhantemente escrita. A arte nem sempre precisa ser fiel à realidade.
Cocordo integralmente com você, Sérgio. “Os Sertões” é soberbo e, à despeito das ditas incorreções científicas, não perdeu nada de sua magnitude. E, convenhamos, literatura é mais, muito mais do que simples transcrição de fatos.
Bem, nada de novo sob o sol. É interessante observar como a habilidade de expressar-se com palavras, o dom que distingue os escritores do comum dos mortais, parece andar pari passu com a inabilidade de ser fiel à realidade. Os escritores, mestres do verossímil, estão sempre travando fera batalha contra a verdade.
Vale
Bem lembrado! A literatura não deve satisfação aos fatos. Quem deve é a reportagem jornalística.
Eu diria que documentos desse tipo em nada abalam a porção “romance” de “A sangue frio”. Mas a porção “de não ficção”, sim. Podem não mudar o modo como o livro é lido nos cursos de Letras (bom, talvez nos curso de Letras dos EUA ele seja lido), mas mudam como é lido nos cursos de Jornalismo.
“a sangue frio” é um livro soberbo (aliás como praticamente tudo que o genial capote escreveu, o filme também é muito bom, ficar indo atrás de verdades ou fatos acurados não leva a nada e é perda de tempo para quem tem prazer em uma excelente leitura feita em ótimos livros, aliás o livro em questão já se basta glau hoppe
Não sei se falo besteira, mas me parece que se um texto é de “fatos”, não é literatura.
Uma coisa é a boa intenção do Euclides outra é a desconstrução proposital dos fatos etc. Euclides provou que dá para fazer arte a partir da realidade sem exclui-la Ao contrário do articulista, officeboy do politicamente, o Capote foi mais uma fraude da esquerda engajada.
João, o argumento do qual você parte é defensável e poderia render boa discussão. É uma pena que se mostre tão incapaz de defendê-lo.
Resenha: A Sangue Frio | Claquete de Papel
Li o livro é como sou amante da literatura muito gostei.
Mas é intolerável que o Capote jogou um capote no fato dos assassinos matarem não por não ter dinheiro na casa, mas por ciúmes um do outro, pois eram homossexuais e um não queria que o outro tivesse relação com a menina da família (estrupo). Por que escondeu isso? Levei tanto tempo para descobrir esse encobrimento! Imperdoável, esse Capote!
Prezado Sérgio Rodrigues, não há hífen em “sangue frio”?
Dicionários e vocabulários ortográficos dizem que sim, Vitor, mas todas as edições brasileiras do livro de Capote que eu conheço o dispensaram. A língua real parece entender “sangue frio” como locução e não palavra composta: substantivo seguido de adjetivo, só. Compreendo a resistência, pois também não vejo muito sentido nesse hífen. Se não existe a palavra composta cabeça-quente, por que deveria existir sangue-frio? Um abraço.