Escrevo (…) estas coisas por ter a impressão de que em algum lugar, quem sabe no campo da literatura ou das artes, resta-nos um caminho capaz de invalidar as já referidas desvantagens. Eu mesmo quero chamar de volta, pelo menos ao campo literário, esse mundo de sombras que estamos prestes a perder. No santuário da Literatura, eu projetaria um beiral amplo, pintaria as paredes de cores sombrias, enfurnaria nas trevas tudo que se destacasse em demasia e eliminaria enfeites desnecessários. Não é preciso uma rua inteira de casas semelhantes, mas que mal faria se existisse ao menos uma construção com essas características? E agora vamos apagar as luzes elétricas para ver como fica.
Eu nunca tinha lido o escritor japonês Junichiro Tanizaki (1886-1965) quando o encontrei no papel de personagem – e talvez um pouco mais do que isso – do bom “O sol se põe em São Paulo”, de Bernardo Carvalho (leia trecho aqui). Mas o ensaio “Em louvor da sombra”, que acaba de sair (Companhia das Letras, tradução de Leiko Gotoda, 72 páginas, R$ 27), me deu a certeza de estar dormindo no ponto. O livrinho, escrito em 1933, é um delicioso – e, paradoxalmente, luminoso – elogio das sombras, valorizadas na cultura oriental de uma forma que o Ocidente, com sua inclinação pelo brilho e pelas transparências, nunca compreendeu nem compreenderá.
Bem diferente da escuridão do “Elogio da sombra” de Jorge Luis Borges, que é reveladora por levar o poeta cego a mergulhar em sua própria alma, a de Tanizaki é uma sombra matizada, suave, que se manifesta até no tom da pele de seu povo. Enquanto ele escreve, porém, a paisagem, sobretudo nas grandes cidades, vai perdendo para sempre parte de sua escuridão na esteira do progresso tecnológico importado. O que leva o escritor a imaginar a cena acima, que soa até estapafúrdia, por parecer invertida, para uma sensibilidade ocidental: a literatura como santuário de obscuridade contra a luz cegante de tudo. Uma delícia. De Tanizaki, a mesma editora já lançou no Brasil os romances “Amor insensato”, “A chave”, “Há quem prefira urtigas” e “Voragem”. “Diário de um velho louco” e “As irmãs Makioka” saíram pela Estação Liberdade.
12 Comentários
Espetacular Sérgio, muito bom mesmo.
A escuridão é linda… as pessoas que associam a escuridão, a penumbra e os tons de cinza com algo ruim estão perdendo na verdade algo maravilhoso…
Peraí . Se escuridão fosse linda Deus não teria dito ” — HAJA LUZ! ”
Eu já tive a oportunidade de ver em um bloco de carvão, ôco, com apenas uma abertura a escuridão. não é nada agradável.
Há Quem Prefira Urtigas é um dos mais delicados relatos sobre o fim de um casamento que já li.
Sérgio, tinha que rolar um post com as leituras de férias.. ou conseguiu tirar férias delas?
Voragem é maravilhoso. Tanizaki é um dos grandes escritores japoneses de todos os tempos. Gosto muito.
Bem-vinda de volta, Sérgio… por que o post anterior não foi sobre literatura…
Agradeço as boas-vindas gerais, que facilitam – sério – a volta ao batente. Quanto às leituras, Jonas, foram tão preguiçosas e despreocupadas que não tenho comentário nenhum a fazer. Do contrário não seriam bem férias. Abraços a todos.
Talvez Saramago tenha tido a mesma inspiração ao escrever o Ensaio sobre a Cegueira. Os personagens ficam cegos de luz, a cegueira é uma imensidão branca. Será que ele leu Tanizaki?
Ótimo trecho, Sérgio. Só conhecia o Tanizaki ficcionista.
Simone de Beauvoir, no seu livro sobre a velhice, lá pelos idos de 1960, já chamava a atenção para a excepcional qualidade de Tanizaki, principalmente pelo seu “Diário de um Velho Louco”.
Salve, Sergio! acabei de ler “O sol se põe em São Paulo”, do Bernardo Carvalho, que gostei muito, e fiquei muito curiosa a respeito do Tanizaki. obrigadíssima pela dica! bjão
Diário de um velho louco é muito bom. Aquilo é o meu ideal de velhice, doido, cabeça dura, cheio de manias mas ainda capaz de se enfiar em aventuras fetichistas, hehehe
Diário de um velho louco é muito bom. Aquilo é o meu ideal de velhice, doido, cabeça dura, cheio de manias mas ainda capaz de se enfiar em aventuras fetichistas, hehehe