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A verdadeira máquina de escrever é o cérebro

02/04/2012


Descubro sem surpresa, mas com algum pesar, que já existe alguém na internet declarando seu ódio a máquinas de escrever como peças de decoração moderninha – um tumblr dedicado à trollagem dos modismos do design chamado, significativamente, Fuck Your Noguchi Coffee Table.

Não, é claro que isso não quer dizer muito. Tente imaginar qualquer coisa no universo que não mereça declarações de ódio em algum lugar da internet e você se verá em apuros. Mas achei curioso, porque não fazia ideia disso e nunca vi nada parecido nas casas que frequento, descobrir que uma paixão que alimento há anos vai, em alguma parte do mundo, entrando no terreno do clichê.

Há dois anos e meio, quando rolou a notícia de que Cormac McCarthy estava leiloando sua velha Olivetti, saí do armário aqui no blog como amante e pequeno colecionador de máquinas de escrever. Na verdade, tenho só três peças, todas de valor afetivo, que na época apresentei assim:

Tenho em casa um modesto museu da máquina de escrever. Além da portátil Hermes 2000 que já comprei velhinha nos anos 1980, num antiquário, mas ainda cheguei a usar, conservo a pesada Remington que herdei de meu pai, na qual batuquei meus primeiros contos adolescentes, e desde o início deste ano a estrela da companhia: uma restauradíssima Olivetti Lexikon 80, maravilha dos anos 1950 que, naquele clima de balanço universal da virada do milênio, foi eleita por um júri internacional de design a melhor máquina de escrever de todos os tempos. Mas não é essa glória mundana, ou não só ela, que a conduziu ao lugar de maior destaque no centro da sala: ao mesmo tempo sólida e macia, a Lexikon 80 era a máquina de linha na redação do velho “Jornal do Brasil” quando lá cheguei, em 1984, e na maior parte dos anos em que permaneci na casa, até ser desalojada pelo computador. Meus dedos nunca conheceram uma melhor.

Hoje, como eu disse, meu interesse é basicamente museológico. Não que minhas máquinas de escrever estejam inativas: meus filhos gostam de brincar com elas, intrigados com uma engenhoca que tem teclado pesado mas em compensação exibe o fantástico avanço tecnológico de, como observou minha filha quando tinha 7 anos, não precisar de impressora.

De lá para cá, uma mudança de apartamento terminou por desalojar a Lexikon do centro da sala para um canto obscuro do escritório (para a foto acima, ela foi dar um passeio na varanda, em busca de luz, mas já voltou ao seu nicho). Descobri que a ideia não era, nunca tinha sido exibir essas engenhocas às visitas. A ideia é simplesmente tê-las, poder olhar para elas de vez em quando, recordar como se escrevia profissionalmente até outro dia mesmo.

E tendo a exata noção, saudosista ma non troppo, do quanto o computador facilitou a vida de quem escreve.

Há uma semana, um artigo de John Naughton no “Observer” (em inglês) perguntava já no título: “O Microsoft Word afetou o modo como trabalhamos?”. As respostas que ele arrisca são vagas e decepcionantes, mas isso não torna a pergunta menos provocadora.

Eu diria que sim, é evidente que afetou, como toda ferramenta: ficou tudo mais suave, fácil, confortável, veloz e ao mesmo tempo mais etéreo, imaterial – inclusive na ausência de rastros deixados pelo texto em seu processo de se fazer, o que transformou em curiosidade de época um elogio como “ele tem lauda limpa”, empregado nas redações quando se queria dizer que alguém entregava ao editor textos corretos e pouco rasurados.

Mesmo assim, não convém superestimar o papel do computador, que no fim das contas permitiu apenas fazer aquilo que as máquinas de escrever adorariam nos proporcionar, mas não conseguiam. A tecla Del era o x, e em casos mais extremos era possível até mover blocos – com tesoura e cola.

Isso se deve, em parte, ao fato de que a verdadeira máquina de escrever é o cérebro, o resto é só parafernália.

Claro que não se trata de fazer pouco dos instrumentos. No entanto, a julgar pela reação maravilhada de Nietzsche, um pioneiro tecnológico em seu tempo, à sua primeira máquina de escrever, comentada longamente por Nicholas Carr em “A geração superficial”, o salto da caneta tinteiro para aquela traquitana cheia de teclas e bracinhos que se enroscavam foi muito mais dramático do que desta para o processador de texto.

7 Comentários

  • Marcelo ac 02/04/2012em18:34

    Aprendi a datilografar numa escola de datilografia, em 1977,com uma senhora que usava candidamente um avental branco de professora primária. A tabuinha que ficava escondendo o teclado dos meus olhos curiosos, balançava com os meus dedos à medida que eu avançava nas lições que a minha mestre me propunha. Aquelas tardes invariavelmente ensolaradas naquela escola muito digna de uma rua conhecida de São Paulo, nunca mais sairam da minha cabeça, assim como a disposição completa do abecedário nas horas de sufoco das agências de propaganda em que trabalhava:asdfg…
    A máquina era a legendária Olivetti Lexikon 80, aí do texto do Sérgio,que nunca mais eu também encontrei em canto algum do mundo, a não ser as Olivetti portáteis comum das agências em que costumava trabalhar. Quando não tinha uma do meu gosto, eu levava a minha própria para a agência, uma Olympia branca, lindíssima, que o meu pai tinha me dado mas que pesava uma enormidade para os meus delicados tendões do braço. Quando enfim chegaram os computadores meu corpo e meus erros de datilografia agradeceram enormemente a invenção deles, apesar das saudades dos primeiros tempos de aprendizado. Agora só me falta mesmo aprender a escrever!

  • Marcelo ac 03/04/2012em07:08

    Anos depois eu aprenderia com um compositor de música erudita, conhecido internacionalmente, que todo artista deve ter um respeito incondicional pelo seu instrumento de trabalho. Acho que é por isso que os músicos guardam com tanto carinho seus intrumentos musicais naquelas caixas de veludo, às vezes acondicionados com tanto respeito que chega a dar inveja – às vezes são flanelas que os envolvem, às vezes xales indianos, às vezes paninhos de lã irlandeses e por aí vai. Foi assim que aprendi a guardar, até com uma certa arrogância, minhas canetas, todas importadas, acondicionadas nos seus devidos estojos e envoltas em flanelinhas de ótica. Pode ser tolice para uns, babaquice para outros, mas o cuidado com o que você escreve começa desde o momento que voce dá início a todo o ritual, e é assim mesmo que a coisa deve ser encarada, como um ritual, delicado e cuidadoso. Literatura nunca foi uma coisa vulgar, não pode ser, ela não tem essa raiz, pelo menos para mim.

  • J.Paulo 04/04/2012em00:45

    Sérgio, você ainda arrisca algumas ‘marteladas’ na máquina de escrever quando está escrevendo algo a sério? Meu problema com as máquinas de escrever foi que pra mim algo delas apresentou-se-me bem anacrônico: justamente o barulho do seu uso. Contraditório é o fato de eu ter instalado no notebook um programa que justamente simula o barulho típico delas. (Mas dê um desconto, porque nesse caso eu tenho o recurso de definir o volume, haha.) Um abraço, Sérgio.

    PS.: Incrível, parece que nada escapa aos olhos desse pessoal “descolado” na sua incansável missão de ser diferente, cool. Nem as tuas velhas máquinas datilográficas, Sérgio.

    • sergiorodrigues 04/04/2012em16:53

      Arrisco não, J.Paulo. O problema nem é o barulho, mas a falta de agilidade para a edição. Confesso que sou viciado no Word. Um abraço.

  • gilberto 15/10/2014em15:32

    Tenho uma dessas aí Olivetti Lexikon 80 para vender. Se alguém se interessar é só mandar um email.

    • Marcelo 21/01/2016em23:22

      Tenho interesse na Lexicon. Manda fotos no meu email (prof.salmeron@gmail.com) e uma ideia de preço. Obrigado.

    • Sérgio Rodrigues 22/01/2016em16:43

      Não está à venda.