Descubro sem surpresa, mas com algum pesar, que já existe alguém na internet declarando seu ódio a máquinas de escrever como peças de decoração moderninha – um tumblr dedicado à trollagem dos modismos do design chamado, significativamente, Fuck Your Noguchi Coffee Table.
Não, é claro que isso não quer dizer muito. Tente imaginar qualquer coisa no universo que não mereça declarações de ódio em algum lugar da internet e você se verá em apuros. Mas achei curioso, porque não fazia ideia disso e nunca vi nada parecido nas casas que frequento, descobrir que uma paixão que alimento há anos vai, em alguma parte do mundo, entrando no terreno do clichê.
Há dois anos e meio, quando rolou a notícia de que Cormac McCarthy estava leiloando sua velha Olivetti, saí do armário aqui no blog como amante e pequeno colecionador de máquinas de escrever. Na verdade, tenho só três peças, todas de valor afetivo, que na época apresentei assim:
Tenho em casa um modesto museu da máquina de escrever. Além da portátil Hermes 2000 que já comprei velhinha nos anos 1980, num antiquário, mas ainda cheguei a usar, conservo a pesada Remington que herdei de meu pai, na qual batuquei meus primeiros contos adolescentes, e desde o início deste ano a estrela da companhia: uma restauradíssima Olivetti Lexikon 80, maravilha dos anos 1950 que, naquele clima de balanço universal da virada do milênio, foi eleita por um júri internacional de design a melhor máquina de escrever de todos os tempos. Mas não é essa glória mundana, ou não só ela, que a conduziu ao lugar de maior destaque no centro da sala: ao mesmo tempo sólida e macia, a Lexikon 80 era a máquina de linha na redação do velho “Jornal do Brasil” quando lá cheguei, em 1984, e na maior parte dos anos em que permaneci na casa, até ser desalojada pelo computador. Meus dedos nunca conheceram uma melhor.
Hoje, como eu disse, meu interesse é basicamente museológico. Não que minhas máquinas de escrever estejam inativas: meus filhos gostam de brincar com elas, intrigados com uma engenhoca que tem teclado pesado mas em compensação exibe o fantástico avanço tecnológico de, como observou minha filha quando tinha 7 anos, não precisar de impressora.
De lá para cá, uma mudança de apartamento terminou por desalojar a Lexikon do centro da sala para um canto obscuro do escritório (para a foto acima, ela foi dar um passeio na varanda, em busca de luz, mas já voltou ao seu nicho). Descobri que a ideia não era, nunca tinha sido exibir essas engenhocas às visitas. A ideia é simplesmente tê-las, poder olhar para elas de vez em quando, recordar como se escrevia profissionalmente até outro dia mesmo.
E tendo a exata noção, saudosista ma non troppo, do quanto o computador facilitou a vida de quem escreve.
Há uma semana, um artigo de John Naughton no “Observer” (em inglês) perguntava já no título: “O Microsoft Word afetou o modo como trabalhamos?”. As respostas que ele arrisca são vagas e decepcionantes, mas isso não torna a pergunta menos provocadora.
Eu diria que sim, é evidente que afetou, como toda ferramenta: ficou tudo mais suave, fácil, confortável, veloz e ao mesmo tempo mais etéreo, imaterial – inclusive na ausência de rastros deixados pelo texto em seu processo de se fazer, o que transformou em curiosidade de época um elogio como “ele tem lauda limpa”, empregado nas redações quando se queria dizer que alguém entregava ao editor textos corretos e pouco rasurados.
Mesmo assim, não convém superestimar o papel do computador, que no fim das contas permitiu apenas fazer aquilo que as máquinas de escrever adorariam nos proporcionar, mas não conseguiam. A tecla Del era o x, e em casos mais extremos era possível até mover blocos – com tesoura e cola.
Isso se deve, em parte, ao fato de que a verdadeira máquina de escrever é o cérebro, o resto é só parafernália.
Claro que não se trata de fazer pouco dos instrumentos. No entanto, a julgar pela reação maravilhada de Nietzsche, um pioneiro tecnológico em seu tempo, à sua primeira máquina de escrever, comentada longamente por Nicholas Carr em “A geração superficial”, o salto da caneta tinteiro para aquela traquitana cheia de teclas e bracinhos que se enroscavam foi muito mais dramático do que desta para o processador de texto.
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Aprendi a datilografar numa escola de datilografia, em 1977,com uma senhora que usava candidamente um avental branco de professora primária. A tabuinha que ficava escondendo o teclado dos meus olhos curiosos, balançava com os meus dedos à medida que eu avançava nas lições que a minha mestre me propunha. Aquelas tardes invariavelmente ensolaradas naquela escola muito digna de uma rua conhecida de São Paulo, nunca mais sairam da minha cabeça, assim como a disposição completa do abecedário nas horas de sufoco das agências de propaganda em que trabalhava:asdfg…
A máquina era a legendária Olivetti Lexikon 80, aí do texto do Sérgio,que nunca mais eu também encontrei em canto algum do mundo, a não ser as Olivetti portáteis comum das agências em que costumava trabalhar. Quando não tinha uma do meu gosto, eu levava a minha própria para a agência, uma Olympia branca, lindíssima, que o meu pai tinha me dado mas que pesava uma enormidade para os meus delicados tendões do braço. Quando enfim chegaram os computadores meu corpo e meus erros de datilografia agradeceram enormemente a invenção deles, apesar das saudades dos primeiros tempos de aprendizado. Agora só me falta mesmo aprender a escrever!
Anos depois eu aprenderia com um compositor de música erudita, conhecido internacionalmente, que todo artista deve ter um respeito incondicional pelo seu instrumento de trabalho. Acho que é por isso que os músicos guardam com tanto carinho seus intrumentos musicais naquelas caixas de veludo, às vezes acondicionados com tanto respeito que chega a dar inveja – às vezes são flanelas que os envolvem, às vezes xales indianos, às vezes paninhos de lã irlandeses e por aí vai. Foi assim que aprendi a guardar, até com uma certa arrogância, minhas canetas, todas importadas, acondicionadas nos seus devidos estojos e envoltas em flanelinhas de ótica. Pode ser tolice para uns, babaquice para outros, mas o cuidado com o que você escreve começa desde o momento que voce dá início a todo o ritual, e é assim mesmo que a coisa deve ser encarada, como um ritual, delicado e cuidadoso. Literatura nunca foi uma coisa vulgar, não pode ser, ela não tem essa raiz, pelo menos para mim.
Sérgio, você ainda arrisca algumas ‘marteladas’ na máquina de escrever quando está escrevendo algo a sério? Meu problema com as máquinas de escrever foi que pra mim algo delas apresentou-se-me bem anacrônico: justamente o barulho do seu uso. Contraditório é o fato de eu ter instalado no notebook um programa que justamente simula o barulho típico delas. (Mas dê um desconto, porque nesse caso eu tenho o recurso de definir o volume, haha.) Um abraço, Sérgio.
PS.: Incrível, parece que nada escapa aos olhos desse pessoal “descolado” na sua incansável missão de ser diferente, cool. Nem as tuas velhas máquinas datilográficas, Sérgio.
Arrisco não, J.Paulo. O problema nem é o barulho, mas a falta de agilidade para a edição. Confesso que sou viciado no Word. Um abraço.
Tenho uma dessas aí Olivetti Lexikon 80 para vender. Se alguém se interessar é só mandar um email.
Tenho interesse na Lexicon. Manda fotos no meu email (prof.salmeron@gmail.com) e uma ideia de preço. Obrigado.
Não está à venda.