Achei surpreendentemente fascinante este ensaio da revista “Boston Review” (em inglês, acesso gratuito), em que Vivian Gornick, a partir dos diários deixados por Sofia Tolstoi (que acabam de ganhar nova edição em inglês) e por seu marido Leon (cuja morte completa cem anos mês que vem), imagina-os como personagens de Dostoievski. A surpresa vem do fato de minha reação habitual ser de desinteresse – ou de interesse moderado, o que dá no mesmo – diante de informações biográficas de escritores e artistas em geral. Só a obra importa, certo? Por que, então, fui sentir tal encanto horrorizado diante da história de um casal inseparável até a morte numa rotina pontuada por ímpetos de assassinato e suicídio, atolado na infelicidade e na humilhação que provocava em ambos, nas palavras de Gornick, “a discrepância entre o que se esperava do amor conjugal e o que ele de fato mostrara ser”? Talvez o trunfo da ensaísta seja a sacada que entrego já no título deste post, e que nega ou pelo menos complica todos os modelos certinhos demais de arte e vida que tantos autores e leitores de biografias cultivam: se Dostoievski escrevia a vida conjugal de Tolstoi, a vida de quem Tolstoi escrevia? Traduzo um trecho do ensaio como aperitivo:
Na novela “A sonata Kreutzer”, de Leon Tolstoi, o tempo é a década de 1880; o lugar, um trem que corta alguma região da Rússia; a situação, um homem de meia-idade com olhos brilhantes que conta a um estranho a história real de por que assassinou sua mulher. Esse relato é, em essência, uma diatribe contra a imoralidade do casamento como ele o concebe.
Homens como ele (da classe dos proprietários de terras), argumenta, são criados para levar vidas vadias de apetites bestiais – bebida, jogo, prostitutas – das quais precisam ser salvos. Mulheres como a esposa do narrador são criadas para explorar a fraqueza por trás desses apetites, porque precisam se casar. Cada um faz uso instrumental do outro. Por mais que o mascaremos com a alegação de que é uma união baseada no amor e na pureza, o casamento é na verdade um contrato entre uma puta e um cliente. “Se examinarmos a vida de nossas classes abastadas como ela é”, clama ele, “ora, é apenas um bordel.”
(…)
Ler “A sonata Kreutzer” depois de ler os diários de Sofia e Leon Tolstoi é compreender simultaneamente duas coisas: a primeira é que o enredo (com exceção do assassinato) é praticamente uma transcrição da vida cotidiana dentro do casamento dos Tolstoi; a segunda, que esse casamento é algo que poderia ter sido escrito com mais facilidade por Dostoievski do que por Tolstoi. Na literatura de Tolstoi temos personagens que, aprisionados ao mesmo tempo por uma limitação íntima e pela força das circunstâncias exteriores, situam-se numa paisagem de eu-e-o-mundo que se alarga e se aprofunda de forma constante. Em Dostoievski temos os mesmos personagens vivendo tão completamente dentro de suas próprias mentes que o mundo se estreita em algo claustrofóbico e surreal. Os Tolstoi, na vida real, não conseguiam viver o “Tolstoi” dentro deles. Equipados com todos os privilégios do mundo exterior para ter uma vida aberta e expansiva, foram, mesmo assim, levados a viver como se Dostoievski os estivesse imaginando. O “felizes para sempre” do casamento os tinha derrotado.
2 Comentários
“Imortalidade” do casamento ou imoralidade?
Imoralidade, Marcus, já corrigi o deslize. Obrigado pelo toque.