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‘A visita cruel do tempo’: caminho novo ou fim da linha?

29/02/2012

Não é uma crítica à sua capacidade de envolver o leitor nos dramas dos personagens – capacidade incontestável, diga-se logo – reconhecer que, pelo menos para quem escreve, o domínio técnico é o que mais chama a atenção em “A visita cruel do tempo”, da escritora americana Jennifer Egan (Intrínseca, tradução de Fernanda Abreu, 336 páginas, R$ 29,90). É preciso ser um monstro para manter tensionada de forma tão impecável a corda de um romance – ou coleção de contos interligados, impossível decidir – em que cada segmento é narrado por uma voz mais virtuosística que a outra, avançando e recuando na cronologia para cobrir cinco décadas e tendo como sombrio motivo de fundo uma reflexão sobre os estragos provocados pela truculenta passagem do tempo na vida dos personagens e da própria cultura americana, que adquire aqui os tons crepusculares de um império que se sabe decadente.

Seria um erro tentar resumir a intrincada trama de “A visita cruel do tempo” numa resenha, mas convém situar os marcos temporais que estão em suas extremidades. O mais recuado fica nos anos 1970 em que o quarentão Lou, produtor musical de sucesso, cheirador e sedutor de menininhas, aparece ao longo de dois capítulos-contos num safári na África (provavelmente a história menos bem-sucedida do livro) e esbarrando, por meio de uma nova conquista amorosa adolescente, com uma turma de jovens punks de São Francisco, já no limiar dos 1980. Dessa galera fazem parte Bennie, destinado a se tornar discípulo de Lou e surfar a indústria musical até ser tragado pelo tsunami digital, e Scotty, um guitarrista brilhante, maluco e fracassado que se tornará um improvável ídolo dos bebês – o novo público-alvo do pop, numa piada que só pode ser chamada de genial – no futuro agridoce em que o livro termina, em algum momento depois de 2020. (Spoiler? Não, não chegamos nem perto disso.)

Entre uma ponta e outra, entre a tragédia e a comédia rasgada, a sátira de costumes e o drama psicológico, a narração se alterna entre a primeira, a terceira e até uma exibicionista – levemente gratuita, mas está valendo – segunda pessoa. Personagens vêm e vão, deixam o elenco de apoio numa história para ocupar o centro da cena em outra sem que o leitor se perca no meio do furdunço. Tão estruturante é o papel das elipses – e tão meticulosamente consciente de seus truques é o livro – que o conto-capítulo mais experimental, todo em linguagem de PowerPoint, perto do fim, só poderia ter como tema as pausas que um garoto coleciona, mede e analisa no meio de canções pop. Até que ponto se pode esticar um silêncio sem que ele deixe de ser visto como pausa para ser o fim da história? – parece perguntar Egan.

Se eu destaco o domínio técnico da autora antes de qualquer outra qualidade do livro, isso se deve ao fato de que o escopo do que ela consegue dizer com essa estrutura complicada, cheia de fios, vazios e alçapões, vai adquirindo ao longo da leitura uma amplitude crescente e espantosa de gincana, como naqueles velhos desafios televisivos de enfiar 25 pessoas num Fusca. É apropriado que, ao faturar o prêmio Pulitzer de 2011, “A visita cruel do tempo” tenha derrotado um certo “Liberdade”, de Jonathan Franzen, que também é um livro gincaneiro, mas bem menos engenhoso.

Tecnicamente, o maior trunfo de Egan é ser uma contista segura. Tão hábil em espaços pequenos quanto seus conterrâneos Raymond Carver e Amy Hempel, ela nunca abre mão do olhar afiado para dores individuais como as de Sasha, a cleptomaníaca (minha preferida), ou Dolly, a superdivulgadora nova-iorquina caída em desgraça. Só num segundo momento vem a capacidade não intrusiva de situar essa gente num agônico painel histórico, social e cultural. Não se trata, como vi sugerido por aí, de um livro obcecado por bandas, discos, estilos musicais: sem chegar a ser um tema fetichista, essa indústria funciona como microcosmo para os impactos exercidos pela marcha da tecnologia sobre vida, arte, linguagem e comunicação interpessoal.

Entre tantos fios, a questão da linguagem chega ao fim do livro em posição de destaque. Aqui, infelizmente, a boa tradução de Fernanda Abreu não consegue impedir que a experiência de ler “A visita…” em português fique muito aquém da de encará-lo no original. A radicalização das abreviações da comunicação online promovida por Egan se perde por completo: up gOs th bldg vira “lá vai o prédio subindo”, o que é difícil de defender. Mais compreensível, embora também frustrante, é a opção de traduzir o título A visit from the goon squad driblando o desafio de transpor para nossa língua a metáfora do tempo contida na gíria goon (capanga, segurança, sujeito truculento contratado para bater, intimidar e matar).

Engraçado, inteligente, sensível, ridiculamente bem escrito, “A visita…” é o melhor livro americano que leio em um bom tempo, mas deixa um travo meio esquisito. Não é fácil decidir por quê. Acredito que tenha algo a ver com certa ansiedade, aquele sorriso congelado na cara do anfitrião hiperativo, excessivamente preocupado em agradar. É como se Jennifer Egan – que andou declarando dívidas contraídas com as ditas alta e baixa culturas, com Marcel Proust, a série “Os Sopranos” e o filme “Pulp fiction” – tivesse canalizado seu inconformismo com a suposta desimportância da literatura no mundo atual para a confecção de um improvável produto pop-literário perfeito. Em seus próprios termos, funcionou brilhantemente (vai virar série da HBO!), mas é difícil dizer se sua ânsia totalizadora tem o charme de uma picada nova ou do fim do caminho.

17 Comentários

  • Xroeder 29/02/2012em14:09

    O que eu mais curti no livro foi a maneira que ela orquestrou as pequenas epifanias das personagens, e como elas eram sumariamente diminuídas quando o capítulo “não era delas”. Exemplo: a Sasha no primeiro capítulo e a Sasha no segundo. Abraço!

  • Régis 29/02/2012em16:01

    Vc leu em inglês ou português? Grato
    Os dois. Abs

  • Esporão 29/02/2012em16:50

    Não li, nunca vou ler.
    não gostei, nunca vou gostar.
    Cultura pop= lixo

  • SIMNES 01/03/2012em08:35

    Não sei se é culpa da tradução, mas achei que o livro pecou em alguns pontos. Narrando em terceira pessoa, a linguagem é de Jennifer Egan; narrando em primeira pessoa, a linguagem é de Jennifer Egan; narrando em segunda pessoa, a linguagem é de Jennifer Egan. Não vi grandes diferenças entre as partes do ‘lado a’ e o ‘lado b’ – foi um recurso mal utilizado, quase inútil. Na verdade, o livro tenta ser estruturalmente interessante, mas não muda tanto assim o “tom”, salvo no capítulo do Power Point, que é brilhante.
    O capítulo do safari é mesmo o mais fraco. Como o elo deste conto com os demais é frágil, ela tentou estabelecer ligações fazendo uma antecipação do futuro, que não funcionou e pareceu forçação de barra. Gostaria que a autora tivesse apostado mais na história do Bosco, ainda mais quando vivemos na época dos reality shows e de suas implicações éticas.
    Acredito que o livro funcione melhor como leitura se for encarado como um livro de contos, até porque a estruturação dele é fragmentada demais, principalmente no início, quando você ainda não tem tanta ligações com os personagens. O Alex, p.ex., que é secundário no primeiro capítulo, só reaparece no último e se torna fundamental para o desfecho da trama. Acho que o Ivan Angelo, no “A Festa”, conseguiu transpor melhor essa questão do “romance”/”livro de contos”.

  • Stefano 01/03/2012em09:20

    Me desanimei a ler depois que li isso, sobre a tradução, no blog do Prosa & Verso:

    “Pulitzer?

    Comecei a ler “A visita cruel do tempo”, de Jennifer Egan, Prêmio Pulitzer, mas já larguei na quinta página: a tradução de Fernanda Abreu (será a cantora?) é estilisticamente muito ruim. Por exemplo, “havia” aparece quatro vezes num parágrafo curto, em abuso agressivo do tempo composto. O mais-que-perfeito privilegiaria a variedade de palavras e garantiria uma fluência decente. Estava gostando do panorama, mas parei de ler para não me influenciar com a má escrita. Tem cara de coisa feita aos borbotões. Se ler, será em inglês. A tradução de um Pulitzer deveria merecer mais cuidado de uma editora como a Intrínseca, que ganha corpo com vários lançamentos interessantes. As traduções de Beth Vieira e Vera Ribeiro para os livros de Lionel Schriver, por exemplo, da mesma editora, são ótimas e fluentes.”

    Não procede. Em linhas gerais, a tradução de Fernanda Abreu é boa e cuidadosa. Acho acertada, no contexto, a opção por evitar o mais-que-perfeito. Abs.

  • Astier 01/03/2012em10:12

    viu? Rubem Fonseca falando intermináveis 10 minutos em portugal? http://www.youtube.com/watch?v=QqjLOOs8h5k

  • Arthur 01/03/2012em10:51

    Eu terminei de ler o livro ontem, mais ou menos na hora marcada da publicação dessa tua resenha. Como eu não a havia visto?

    Gostei demais do livro e (ainda que isso não tenha muita importância, uma vez que temos de nos habituar opiniões divergentes e que o que acho mesmo importante é a troca de opiniões entre dois leitores que realmente leram o livro) curti que você tenha gostado do livro.

    Eu já tinha visto o capítulo em Powerpoint no site da autora, mas não tinha entendido bulhufas (fora os sustos que levei com a música tocando do nada). Depois de começar o livro, não me lembrava mais dele. Quando cheguei a ele, me surpreendi com o quão bom ele consegue ser. Você está se encaminhando para o final do livro, adorando tudo o que a autora fez até o momento e, de repente, tem uma “pausa” nos longos parágrafos, várias páginas que serão lidas num instante e que encaminharão o leitor para o fim.

    Depois de lê-lo, conferi as opiniões no Tournament of Books e me tive plena consciência daquilo que perguntavam direto na Copa de Literatura: “Qual livro que te empolga?”. Tendo lido os finalistas no ToB eu senti a ansiedade de ver dois livros de que gostei se batendo (aliás, vi várias semelhanças entre ambos): um livro que eu já havia lido há bastante tempo e outro, o ganhador, que abandonei brevemente em alguns momentos, mas cuja leitura foi bastante prazerosa. 9×8, o placar! Isso não se deu com a CdLB. Além disso, o ganhador desta não tem ido muito bem no quesito “leve abandono”: acho que O Livro dos Mandarins tem de ser lido de uma vez só. Há quase um mês que não consigo voltar pras 70 páginas finais. Só 70 e eu não me animo! Achei interessante em certos aspectos (formais, principalmente), mas, empolgar mesmo, só O Filho da Mãe do Bernardo Carvalho empolgou. E perdeu, com apenas 2 votos, que sequer foram justificados. Uma pena.

  • Claudio Faria 01/03/2012em11:09

    Gostei muito do livro. Li em dois dias e, assim como você, o considerei “o melhor livro americano que leio em um bom tempo”. Mas, também como você, senti um “travo meio esquisito. Não é fácil decidir por quê”.

    Seria o impacto do novo (e seria tããão novo assim??)? O aque sei é que espero pela publicação do romance anterior da Egan que também é muito elogiado.

    Outra coisa: enfim experimentalismo com conteúdo; enfima a concepção de pop sem que isso seja necessariamente um despejar de referências forçadas à música, artistas, filmes.

    Enfim, um livro diferente e que consegue ser ótimo. Por mais “técnica” que a escrita de Egan tenha sido, a arte também esteve presente.

  • Assis Utsch 15/03/2012em11:56

    A Visita Cruel do Tempo é vencedor do Pulitzer e é também ganhador de outros três prêmios importantes nos EUA, além de muitos elogios rasgados por parte de importantes jornais americanos. É um texto engenhoso, cujas histórias e personagens se entrelaçam de modo criativo.
    Mas a versão portuguesa do livro não transmite de imediato todo o valor que o texto original contém. Como leitor, tive a sensação de que algo essencial tenha se escapado, pois o livro que li não me revelou toda essa grandeza. Se bem que aqui um indigesto Budapeste ganhou o Jabuti e recebeu elogios. Bem, Chico Buarque tem um vasto e precioso currículo musical, além de outras credenciais relevantes, inclusive uma bastante importante nos meios culturais brasileiros, que é o fato de pertencer a uma constelação que orbita no lado esquerdo do Universo, se é que o Universo tem algum lado.
    Apesar da experiência da tradutora Fernanda Abreu, tem-se algumas estranhezas, como a manutenção de muitas palavras em inglês, estrangeirismos que ainda não se incorporaram ao nosso português subserviente, ainda que sejam expressões consagradas no original. É certo que nossa língua tem recebido um número excessivo de anglicismos, tudo graças à globalização, à tecnologia, à dominação e subordinação cultural. De qualquer maneira é sempre desconfortável deparar-se com estrangeirismos gratuitos, quando todos dizem que o português é uma língua riquíssima. A tradução contém também muitos modismos linguísticos; parece que expressões idiomáticas do original, os idiotismos, como também as gírias, nem sempre resultaram na melhor versão. Como sabemos, hoje as traduções são feitas com o auxílio do tradutor eletrônico, a partir de pequenos trechos da obra. Mas as traduções de gírias, modismos linguísticos e os idiotismos costumam ficar sem sentido. É nesse momento que o tradutor entra para dar sentido ao texto. Os melhores tradutores conhecem muito bem as duas línguas, especialmente, aquela que recebe o texto, para que se possa encontrar as melhores expressões ou o melhor sentido na tradução. Mas se o tradutor não dominar a língua dos contemporâneos nem a dos clássicos, a versão pode perder muito em qualidade. Ademais, a urgência nas traduções, no afã de aproveitar o melhor momento para lançamento do livro costuma comprometer essa qualidade. Outro problema das traduções é que a maior parte das gírias e também os modismos linguísticos costumam ter vida curta e, com o tempo perdem o sentido. Então é melhor manter o texto mais próximo do vernáculo. Por exemplo, ninguém reconhece mais aquele palavreado que Roberto Carlos e Erasmo Carlos usavam nos anos 1960 / 70; nós hoje acharíamos ridículo dizer: “É uma brasa, mora!”. E na tradução essa situação fica ainda pior. Como a autora voltou àqueles anos e àquele meio, com seus personagens, para contar sua brilhante história, esses aspectos talvez tenham afetado o texto. Apesar da imaginação da escritora Jennifer Egan, a linguagem é instável, oscilante, às vezes maçante.

  • Augusto Machado Paim 07/06/2012em18:53

    Sérgio, permita-me discordar em dois pontos:

    1) tecnicamente, o livro não é perfeito. Ele é perfeito como ideia, como conjunto e nas relações entre os capítulos. Me faz admirar muito a autora como uma inteligência superior. Mas textualmente há vários problemas – e não creio que podemos creditar todos eles à tradução. Um livro, para virar um clássico, precisa apresentar menos vacilos nas frases e nas ideias pontuais contidas nelas.

    2) o capítulo em segunda pessoa não é “levemente gratuito”. Na verdade, considero esse o capítulo mais rebuscado de todo o livro, em termos de técnica e de sensibilidade. Aquela virada de foco narrativo no fim, associada ao conteúdo narrado, é brilhante! E só funciona nessa história… (Se pararmos para pensar bem, esse capítulo não é em segunda pessoa, mas sim em terceira. Concorda?)

    Abraços.

  • Maria Paula A. Becato 06/07/2012em13:47

    palavras do crítico: “mas deixa um travo meio esquisito”. Ele não sabe bem porque; eu sei: simplesmente porque é um livro chato; uma história pouco interessante (o mundo sabe das coisas da Califórnia nos anos 80 e o que foi feito daquela turma quando envelheceu: ficaram todos muito bem enquadradinhos)contada de maneira pretensiosamente criativa. Sinceramente, acreditei na premiação com o Pulltzer mas decepcionei-me pensando que perdi meu tempo com essa leitura.

  • clara lopez 30/08/2012em10:52

    Oh, dúvida cruel – compro ou não compro? leio ou não vale a pena? li todos os comentários, li sua bela resenha, e ainda não sei… 🙂 vou acabar pagando pra ver, acho… imprimi o texto da Black box e ainda estou apanhando muito pra entender, meu inglês não está dando pra esse gasto todo, acho que vou esperar a editora colocar a tradução à venda, amanhã, acho. grande abraço, clara

  • José Frid 15/09/2012em18:31

    Acabei de ler o livro e gostei, mas também senti o tal “travo meio esquisito” que, na minha opinião, é causado pelo seu final insatisfatório, que não dá aquela vontade “de quero mais”. No meu entendimento, isso ocorre porque a autora abusa da “pausa literária”. O livro vai num crescente até o décimo capítulo, aquele na segunda pessoa, que termina num afogamento, ou seja, como final de capítulo de novela: não perca o próximo capítulo! São dez bons capítulos, ou contos. Entretanto, o capítulo seguinte introduz o tio da Sasha, personagem patético, em sua busca-não busca pela sobrinha. Isso causa uma pausa no enredo, uma queda no livro. Depois vem o famoso capítulo em power point, que é curioso, mas causa mais pausa no livro, trazendo para a vida real a discussão tratada no próprio capítulo (qual o tamanho suportável para uma pausa na música?): qual o tamanho possível de uma pausa no enredo de um livro? Depois dessa pausa imensa, o último capítulo já começa comprometido, o se agrava com seu próprio texto, passado num futuro distante, com “apontadores” para bebês, “consoles” e cantor idoso em crise, escrito sem a maestria dos outros capítulo, fazendo o livro terminar mal, em baixa. Como todo romance moderno, muitos fios soltos foram deixados no enredo, o que leva o leitor a imaginar o seu desenvolvimento e entrelaçamento futuro. Parece que essa foi realmente a intenção da autora, que em entrevista disse que já está escrevendo novas estórias para os personagens do livro. Serial Killer!