Nossa época é essencialmente trágica, por isso nos recusamos a vê-la tragicamente. O cataclismo já aconteceu e nos encontramos em meio às ruínas, começando a construir novos pequenos habitats, a adquirir novas pequenas esperanças. É trabalho difícil: não temos mais pela frente um caminho aberto para o futuro, mas contornamos ou passamos por cima dos obstáculos. Precisamos viver, não importa quantos tenham sido os céus que desabaram.
Era esta mais ou menos a posição de Constance Chatterley.
Para marcar a volta da sumida seção Começos Inesquecíveis, nada como um começo do tipo epigramático, que prega já na porta de entrada da narrativa uma frase que nem parece ter autor, de tão entranhada numa certa sabedoria coletiva – à moda daquela famosa abertura de Leon Tolstoi em “Ana Karenina”, uma dos campeãs de audiência do gênero: “Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”. É esse o caso do começo de “O amante de Lady Chatterley” (Penguin/Companhia das Letras, 2010, tradução de Sergio Flaksman), o sexualmente escandaloso romance publicado em 1928 por D.H. Lawrence (1885-1930). “Nossa época é essencialmente trágica, por isso nos recusamos a vê-la tragicamente” é uma frase marcada pelo horror da Primeira Guerra Mundial. O que não impede Doris Lessing, no texto que serve de introdução a essa edição, de ver nela “um ligeiro sorriso torto”.
6 Comentários
Que bom que voltou, adoro essa seção. 😉
Começar é sempre bem complicado, e acho que não se aplica somente à primeira frase ou paragrafo. O começo precisa pegar o leitor pela mão, e seduzi-lo a seguir em frente. Isso me angustia bastante, porque fico ansioso pela continuidade da leitura, muitas vezes querendo gritar: Ei! Siga em frente! Você não pode perder os acontecimentos da página 73! 🙂
Aproveito para convidar (de novo) para o meu reality show literário virtual, feito no site e revista A Capa. São os bastidores da criação do meu novo livro, “Obsessão”.
http://acapa.virgula.uol.com.br/blogs/Default.aspx?nome=mundo-de-treppi&codsubcat=95
Muito legal mesmo, Sérgio! Adoro começos.
Os sonoros: “Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria, que o pároco da Sé, José Miguéis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia.”(Crime do Padre Amaro).
Os estranhos: “‘… Item, é minha última vontade que o caixão em que o meu corpo houver de ser enterrado, seja fabricado em casa de Joaquim Soares, à Rua da Alfândega.”(Verba Testamentária)
E os xodozinhos: “All children, except one, grow up.” (Peter Pan) ” Mr and Mrs Dursley, of number four, Privet Drive, were proud to say that they were perfectly normal, thank you very much.”(Harry Potter).
Se existe dois começos inesquecíveis, os mesmos estão em dois livros. Gênesis capítulo 1 e Evangelho de João capítulo1. Em Gênesis 1 lemos que “No princípio criou Deus os céus e a terra. A terra era sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava sobre a face das águas. E disse Deus, haja Luz. E houve Luz.Viu Deus que a Luz era boa e fez separacao entre a Luz e as trevas.”
Em João 1 lemos que “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por meio dEle. NEle estava a Vida, e a Vida era a Luz dos homens. A Luz resplandece nas trevas, e as trevas náo prevaleceram sobre elas~”
É interessante observarmos que a Luz aqui nada tem a ver com os luminares ( sol e lua) que só foram feitos no quarto dia. Luz aqui é Jesus que já existia com Deus.
Amo esses dois comecos inesqueciveis.
Corrigindo
… e as trevas náo prevaleceram sobre ela ( a Luz)
Ai, que coisa horrivel! “ExisteM dois”…
Este começo lembra o de “Trópico de Câncer”, de Henry Miller, que leu Lawrence à época e até começou um ensaio (jamais concluído) sobre sua obra. Juntando Lawrence com o também publicado na mesma época “Viagem ao fim da Noite”, Miller reescreveu todo seu livro. O seu começo de Trópico de Câncer merece estar nesta seção.