Edições do tipo “baú do fulano”, que raspam as gavetas de defuntos ilustres para faturar uns cobres a mais, não costumam ter muita serventia – a menos que você seja um fã roxo, do tipo que compraria no eBay um lenço de papel usado por fulano, caso em que o “baú do fulano” é uma delícia. Mas toda regra tem exceção.
A julgar por esse artigo de Steve Almond na revista eletrônica “Salon” (em inglês, acesso livre), o livro Armageddon in retrospect, coletânea póstuma de escritos de Kurt Vonnegut, dá ao leitor o raro vislumbre do momento em que um grande escritor encontra sua voz – mais especificamente a voz inconfundível, mordaz e cara-de-pau que conduz “Matadouro 5”. É nas cartas escritas para a família quando estava na Europa, lutando na Segunda Guerra, que Vonnegut soa mais parecido com o narrador de sua futura obra-prima, e não nos primeiros contos realistas e sérios que produziu após voltar para casa, determinado a se tornar escritor profissional.
Não deixa de ser uma lição para jovens (ou nem tão jovens) escritores que estejam à procura desse tesouro fugidio chamado “voz própria”: depois de muito procurar, experimente ficar distraído.
15 Comentários
sobre o conselho: perfeito!
Sérgio, eu estou adorando. 🙂
Cássia, eu devia ter imaginado que você estava à minha frente nessa, hehe.
Aula 1000 da oficina literária do titio Sérgio…rsrsrs.
1000 não, Tibor: 1002. Conta direito, menino.
1002? Deixa ver… vou contar tudinho de novo… 1,2,3,4,5…
Esse lance de “voz própria”…sei não, Sérgio, sei não….
A relutância de Cezar Santos é a de muita gente. A “voz” é um tema controverso. Críticos contemporâneos movidos a cientificismo ou estudos culturais costumam descartá-lo, mas escritores, sentindo o drama na pele, tendem a levá-lo a sério. Voz é sinônimo de estilo? Não, aí é que está. Acaba sendo um outro nome para a boa e velha qualidade – talvez por isso a crítica cultural, que anda alérgica a essa palavra, a esnobe. Há um livro muito interessante do crítico A. Alvarez sobre isso, comentado aqui na primeira infância do Todoprosa, chamado justamente “A voz do escritor”.
Dizem que Vonnegut escrevia contos para financiar seus romances.
É mesmo verdade que ele atribuia maior valor aos romances que aos contos ?
Por que, exceto alguns poucos talentos, como Borges, costumam glorificar o romance, em detrimento do conto ?
Para quem perdeu a “voz própria”, recomendo gargarejo com chá de romã. É infalível.
Eu saí da leitura do livro do Alvarez ainda sem saber direito o que é essa “voz” 🙁
Acho que isso aconteceu porque você leu o livro com os olhos em vez de auscutá-lo com os ouvidos…
Obrigado pelo seu diagnóstico, Homem Rouco. Sinto-me muitíssimo mais reconfortado agora, se bem que não me aproximei um milímetro a mais da resolução do problema que expus acima.
¬¬
Valu grande Sérigo.
Depois de Timequake, Vonnengut se tornou um ícone da inconoclastia. Diverti-me tanto com ele como com Douglas Adams.
E quanto ao material postumo, normalmente me mantenho longe dele por diversos motivos, dentre eles os casos de constante “achismo” de obras em baus como no caso do falecido Lennon. Vez ou outra a Yoko acha uma música em um baú dele que estava gaurdado em algum lugar que, pamem, ela ainda não havia procurado.
Mas vou dar uma crédito para essa postuma de Vonnengut… o velho merece e todos nós também.
Abraços Sérgio.
Julio, é verdade, sim. No prefácio de “Mundo Louco”, coletânea de contos, ele explica que aqueles contos tinham sido escritos para pagar as contas e também torná-lo conhecido. Os contos não se encaixam muito no contexto geral da obra de Vonnegut e são muito mais, como dizer, comerciais.