A recente aparição de Franz Kafka neste blog, embora talvez motivada por interesses menores (de um crítico inglês, não meus, como se pode conferir aqui embaixo), teve pelo menos um efeito divertido: o leitor Eric Novello explorou num comentário certa ambigüidade semântica característica do português brasileiro para declarar:
Nunca mais verei a barata do Kafka da mesma forma!
Claro que a piada seria inviável se Gregor Samsa tivesse virado um besouro. Acontece que virou – e agora estou falando sério. A discussão sobre qual bicho é aquele da novela “A metamorfose” não é brincadeira.
No primeiro parágrafo do livro, em que o Samsa insetificado faz sua brusca entrada em cena, Kafka é vago. O original fala em ungeheueren Ungeziefer, que quem conhece alemão – não é o meu caso – garante ser algo como “monstruoso inseto repulsivo”.
Em outros pontos da narrativa, porém, ligeiras pistas morfológicas parecem indicar que Kafka se refere a um inseto da família dos coleópteros, sem maiores detalhes além de suas dimensões avantajadas de monstro. Essa família inclui diversos tipos de besouro, joaninhas e vagalumes. Baratas não.
Para se ter uma idéia da gravidade dessa questão líterário-zoológica, ninguém menos que Vladimir Nabokov, admirador de “A metamorfose”, lhe deu atenção num ensaio-conferência sobre o livro (em inglês, acesso livre). Segundo o autor de “Lolita”, há na novela de Kafka apenas um personagem que chama Samsa de Mistkäfer, isto é, besourão, escaravelho, rola-bosta: a velha empregada da família. Mas Nabokov observa que a mulher provavelmente está tentando ser “simpática” – a realidade seria mais repugnante:
Ele não é, tecnicamente, um escaravelho. É apenas um beetle grande. (Devo acrescentar que nem Gregor nem Kafka enxergavam o bicho muito claramente.)
Vale ressaltar que a palavra beetle, genérico de besouro em inglês, é usada de modo informal também para baratas – embora estas sejam de família diferente. Não sei se o mesmo ocorre em alemão. Será que a lenda da barata começou com um erro de tradução?
De todo modo, é evidente que uma certa indeterminação estava nos planos de Kafka. E talvez fosse inevitável que a barata, por sua liderança incontestável entre os bichos escrotos deste mundo, terminasse por pousar nessa obra-prima para nunca mais sair.
28 Comentários
beetle em alemão vira kaefer, e barata, kakerlake. kaefer nao pode ser kaefer mas tampouco kafka diz que o inseto e’ um kaefer. quando li o livro me pareceu claro de que se tratava de uma barata, mais pelas insinuacoes ao longo do texto de que por uma assertiva taxativa.
Obrigado, dona de casa gorda. Isso deve afastar a hipótese de um erro de tradução do próprio texto kafkiano, ainda que não daquilo que o cerca – resenhas, comentários e disse-me-disse.
Permita-me apenas observar que, quando leu o livro, você provavelmente já tinha ouvido falar mil vezes que encontraria uma barata ali, e apenas confirmou essa expectativa. A lenda da barata é poderosa. Me desculpe se eu estiver enganado.
É um barato essa barata!
Não é possível, as baratas estão me perseguindo esta semana… Até aqui!
Acho que se eu tivesse visualizado Gregor Samsa como uma barata, não teria conseguido avançar na leitura – como, aliás, aconteceu com A Paixão Segundo G.H. Eu pesadelava com barata todas as noites, até que decidi parar. A imagem mental que faço do bicho kafkiano é de um monstro indeterminado, escuro e gosmento, saído de algum episódio do Jaspion… (É, cada um tem as referências que merece.)
Agora vamos mudar de assunto? 🙂
Sérgio Santana tem um conto, já bem velho, sobre um personagem chamado Gregório Barata. A alusão, no caso, fortalece a idéia de que sempre se pensa no inseto kafkaiano como barata.
http://en.wikipedia.org/wiki/The_Metamorphis#Lost_in_translation
Lembro-me que uma vez li, em algum lugar que agora me é tão vago quanto a barta, que o inseto em questão era um hexápode uma espécie de carapaça nas costas (isso parece que constava no texto alemão original), daí a associação com a barata ou com uma espécie de besouro.
Mas particularmente prefiro crer que não era nem um e nem outro. Prefiro crer que era algo bem mais aterrador do que isso. Imaginem um ser humano transmutado em um inseto gigante, bem ali na sua frente… Não importa se era uma barata ou um besouro gigante, por si só já seria algo muito, muito ruim de ser ver. Imagina então depois descrevê-lo?
Acho que a possibilidade de imaginar e visualizar esse inseto deve ficar por conta de cada um.
Sergio, quando li, e memo hoje, imagino um besouro, e asqueroso por ser humano também, como diz o Mr. WRITER. Mas acredito que a maioria das pessoas não tem muito nojo de besouros que associam a joaninhas, mas se você gritar barata numa sala, veja a correria! Tem gente que é capaz de subir paredes só de pensar nelas!
Barata tem a questão do esgoto… eu que gosto de mato nunca senti nojo de nenhum tipo de besouro, nunca achei besouro repugnante. Se me diz que ele virou um inseto repugnante, asqueroso, eu penso em barata, não penso em besouro. Mas um besouro do tamanho de um homem aí pode ser. Acho que o Kafka não queria especificar, certo? Ele faz umas alusões mas não define qual o inseto. Então, eu imagino barata…
Lembrei que li a pouco tempo atrás a versão em quadrinhos do livro, do artista gráfico Peter Kuper. Ele consegue não definir bem o que é o bicho, mas claro que parece muito uma barata. Lembrei disso porque li, no artigo da wikipedia indicado acima, “However, “a monstrous vermin” sounds unwieldy in English and in Kafka’s letter to his publisher of 25 October 1915, in which he discusses his concern about the cover illustration for the first edition, he uses the term “Insekt”, saying “The insect itself is not to be drawn. It is not even to be seen from a distance.”
Acho que o Kafka não teria concordado com a versão em quadrinhos então, hein?
Concordo c/ Mr Writer. Há uma cena que ilustra bem este terror: a porta do quarto fica aberta, e a mãe o entrevê NA PAREDE!
Neste momento, convenhamos, tanto faz se é besouro, barata ou formiga.
Antonio Candido (que sabe alemão) chama esse tal de “Ungeziefer” de sevandija: “nome comum a todos os parasitos e vermes imundos”, segundo o Houaiss. Bate bem com o significado do alemão, não?; mas ficaria bem na tradução?
Vamos ver, Eugenio: “… viu que se transformara, em sua cama, numa monstruosa sevandija”. Hmm, não, acho que não.
A proposta de Kafka era explícita, não deixar claro que bicho que era (só pra aguçar a imaginação). Tanto que proibiu, enquanto vivo, que se ilustrassem capas ou livros com baratas, besouros e afins. Sevandija é o mais próximo, mas o “ungeziefer Ungeheuer” já povoa, como barata, o imaginário popular (ouça-se o João Penca e seus Miquinhos Amestrados).
Sérgio, agora me veio uma imagem daquele único carro que a Volks emplacou nos EUA. Erro de tradução ou não Kafka era um gênio da industria de automóveis. Ainda estou no ritmo de fazer piadas.
Duas observações:
A primeira: O inseto da adaptação de Kuper é desenhado de um jeito meio vago, mas tem uma cabeça projetada além do corpo que lembra mais um inseto, mesmo, já que as baratas mais comuns à distância parecem ter a cabeça e o corpo num único traçado. Na verdade, o inseto desenhado por Kuper é um híbrido. Lembra uma barata, mas poderia ser um cascudo, também. Já o do Crumb na sua adaptação é uma barata mesmo.
A segunda: Peterso, a música da barata de Kafka era dos Inimigos do Rei, não do João Penca.
Minha opinião pessoal sem embasamento algum? Parece que Kafka sempre quis deixar a bola picando quando o assunto era a definição desse inseto. Talvez nem fosse um inseto existente, mas um inventado misturando indiscriminadamente o que ele sabia sobre insetos (que eu não sei se era muito ou pouco). Tanto que as ranhuras que ele descreve no ventre do bicho não parecem muito com as de uma barata de verdade.
Abraço.
Verdade, Hefestus.
Hefestus, já que estamos descendo a detalhes, o Nabokov, que era entomologista, aponta um interessante: Gregor Samsa pisca os olhinhos, é um inseto com pálpebras. É evidente que aquilo é um delírio sem compromisso com a zoologia, e nesse sentido tentar definir a espécie é uma bobagem. Bobagem divertida, claro.
Só um reparo: o Samsa que o Crumb desenha é claramente – claramente até demais – um besouro.
A barata apesar de ser um bicho escroto é poderosa. É mais forte que o homem. Por exemplo, se houver uma guerra nuclear no mundo, as baratas sobreviverão, juntamente com outros insetos escrotos. Enquanto o ser humano será pulverizado da face da terra.
Será que Kafka já sabia que a barata era poderosa ?
Mais um que acredita na lenda da sobrevivência das baratas ao holocausto nuclear…
[off topic] Nao sei se eh barata, mas estou mesmo interessado no processo: hoje ha eleicao para a cadeira 23. Estou indignado com o candidato Paulo Hirano, autor de um livro apenas e que apresentou a candidatura para o preenchimento da vaga. Torco – e convoco a todos aqui que torcam juntos comigo – por Felisberto Silva, autor de mais de 400 livros!
Um adendo literário ou não: Um advogado que eu conheci dizia “Após uma guerra nuclear, sobreviverão os canalhas e as baratas. Portanto estamos todos salvos”.
Sempre senti falta dessa nos livros de citação
A barata mais polêmica da história!
(e agora é que realmente não verei mais a barata do Kafka da mesma forma… nem a Lolita)
Que bom que encontrei VC.!
Não importa que bicho era. O que importa é a narração perfeita de um sofrimento incomensurável, uma alucinação poderosa que se apossou do pobre homem. Magistralmente mostra uma mente atormentada e pode até ser que misturou características de diversos bichos, coisa natural em mentes conturbadas. Muito triste e patético mas pode acometer o ser humano;qdo. a mente entra em tal estado de exaltação fica muito difícil reverter o quadro. Mas hoje, com recursos modernos, até pode acontecer. Kafka contou, em detalhes, um grave caso de esquizofrenia, na época, ainda irreversível. O livro deixou-me sem chão.
Hehehe… além de admirador do grande Eric (do escritor Eric novello), tbm imagino q Gregor tenha se transformado em besouro, pelo menos foi a sensação que tive, da versão traduzida que li, mas é bem a critério de quem lê, acho q era essa mesma a intensão de KFK. Mas para tornar a controvérsia ainda maior (não, não… – maior não, mais confusa, eu diria) escrevi o meu começo para história, inspirado em uma matéria antiga de um jornal…
Confira: sandrocodax.blogspot.com/2006/07/griloceraptors.html
Bem, para aqueles preguiçosos em acessar o endereço, segue o texto:
…Certa manhã depois de despertar de sonhos perturbadores, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado. Deitado sobre a própria couraça, ergueu a cabeça e viu seu ventre marrom, de uma acentuada convexidade, com fundas saliências; suas esquálidas pernas (se comparadas ao corpo) agitavam-se frenéticas, aos seus olhos.
“O que aconteceu comigo?”, ele se perguntou.
Seus olhos voltaram-se então para fora: viu o tempo nublado, podia ouvir as gotas de chuva caindo renitentes. Pensou em dormir mais um pouco, no entanto, teve medo: e se voltasse a ter sonhos perturbadores; e também, sabia da necessidade que tinha, de labutar mais um dia pela dura subsistência (ou seria sub-existência? Bem, isso ele não sabia, só sabia da dura batalha). Além do mais, era melhor despertar de vez mesmo, pois queria se livrar logo do estranho e intranqüilo sonho que tivera (um pesadelo, isso sim!); um sonho muito real, que lhe arrepiou, só de lembrar. Imagina que insanidade aquele sonho: em que ele, por um momento (ainda sonhando) imaginara ter despertado, metamorfoseado em um humano, e onde sofrera muito devido ao grande constrangimento que passara junto àquela família humana: o espanto, a confusão, a repulsa!
Por sorte, fora apenas um sonho ruim. Agora ele já se encontrava desperto de verdade, e já se via em sua real forma: a de um inseto.
Dado adicional sobre ungeziefer:
É o termo que muitos nazistas usavam para se referir aos judeus.
Teria tido kafka, que era judeu, uma antevisão desse povo sendo tratado como insetos ou vermes repugnantes?
O século XX foi kafkiano apesar de Kafka ou por causa de Kafka?
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