Pouco perguntam sobre literatura ao israelense Amós Oz, 72 anos, embora ele seja um baita escritor. Oz costuma falar muito mais de política, o que é compreensível. Desde 1967, quando começou a se pronunciar publicamente a favor da criação do Estado palestino, ele vem sendo a face progressista mais constante de Israel, alguém com quem o diálogo é possível mesmo nos momentos de maior recrudescimento do conflito israelense-palestino. Seu mais recente feito político foi presentear com um exemplar autografado de seu livro de memórias o líder palestino Marwhan Barghouti, preso em Israel sob acusação de terrorismo. Isso reavivou um velho hábito da direita israelense: enviar-lhe cartas com ameaças de morte.
Apesar de crítico da política israelense, Oz é um intransigente defensor do Estado de Israel, alguém que, filho de imigrantes sionistas oriundos da Europa oriental, viveu a história de sua criação como parte da infância e morou por décadas – inclusive depois de casado – num kibbutz. E que, quando saiu de lá, se mudou para uma casa no deserto de Negev.
Oz está no Brasil para duas palestras sobre o tema “Literatura e guerra: perspectivas israelenses”, num dos eventos comemorativos do aniversário de 25 anos da Companhia das Letras, hoje no Rio de Janeiro e quarta-feira em São Paulo. Nesta entrevista ao Todoprosa, concedida hoje à tarde no hotel Copacabana Palace, ele fala de política, claro, mas também de literatura. E das duas juntas.
Quais são os riscos e as oportunidades apresentados pela chamada Primavera Árabe para a paz no Oriente Médio?
– Em primeiro lugar, eu não tenho certeza de que haja mesmo uma Primavera Árabe. Talvez o que venhamos a testemunhar seja um Inverno Islâmico, pelo menos em alguns países. No entanto, eu acho que é um erro falar de todo o mundo árabe como uma só entidade. As pessoas pensam que a história tende a se repetir, e porque o bloco soviético desabou assim, as ditaduras do mundo árabe desabarão do mesmo jeito, dando lugar à democracia. Mas a democracia só deita raízes onde há uma classe média forte e pelo menos o núcleo de uma sociedade civil. Em alguns países árabes, praticamente não há classe média, a sociedade civil é inexistente. Neles a democracia não tem chance. Em outros países a chance existe, mas é uma chance, não uma certeza. Ditadores podem ser substituídos por fanáticos religiosos.
O senhor costuma dizer que o conflito israelense-palestino é um conflito entre o certo e o certo. Esta também é uma definição possível de ficção literária, não? É preciso encontrar razões opostas para personagens que estão em conflito, e todas humanamente válidas.
– Sim, pelo menos da literatura que eu amo, da literatura que eu leio e escrevo. Não se trata de heróis e vilões. Não se encontra em nenhum dos meus livros um episódio de herói contra vilão, o que há é sempre um embate trágico entre o certo e o certo, algumas vezes entre o errado e o errado. Mas escrevo sobre pessoas complexas, com motivações complexas, que fazem coisas complexas umas com as outras. Acho profundamente enfadonhas, tanto como leitor quanto como escritor, as histórias de mocinho e bandido.
Esse exercício de imaginação do outro é algo que busca conscientemente ao escrever?
– É como ganho a vida. Levanto-me todos os dias às cinco da manhã, dou uma caminhada de quarenta minutos no deserto, depois tomo uma xícara de café, sento-me à escrivaninha e começo a me perguntar o que eu faria se fosse ele, o que eu faria se fosse ela, o que eu sentiria, o que pensaria. Considero a curiosidade uma virtude moral. Uma pessoa curiosa é melhor do que uma pessoa não curiosa, porque a curiosidade implica certa empatia, a capacidade de sentir como o outro sente. É por isso que a literatura é um dos antídotos contra o fanatismo. O humor é outro antídoto. Ler boa literatura é também um maravilhoso substituto para as viagens. Quando você compra uma passagem e viaja a outro país, normalmente vê monumentos, museus, sítios históricos, paisagens. Mas quando você lê um romance de outro país, é convidado a entrar na casa das pessoas, visita a cozinha e até os quartos. Às vezes, para conhecer outro povo, é melhor ler um livro do que comprar uma passagem.
Em março deste ano, o senhor mandou uma tradução árabe de seu livro de memórias, “De amor e trevas”, para Marwhan Barghouti. O fato teve enorme repercussão, gerou até ameaças de morte, e seus compatriotas à direita hoje o odeiam um pouco mais por isso. O gesto é belo, mas não pressupõe uma crença excessivamente romântica no poder da literatura?
– Fiz isso porque é bom que Barghouti leia aquela história, quem sabe ela lhe abre os olhos para o outro lado do problema. Não sei como recebeu o livro, porque é mantido incomunicável. Também não sei se o livro pode mudar algo, mas vale a pena tentar. Quanto às ameaças, sempre achei que, se alguém lhe manda uma carta para dizer que vai matá-lo, vai se dar por satisfeito mandando a carta. Quem quiser me matar de verdade não vai se incomodar de escrever antes. De todo modo, a sociedade israelense é argumentativa, diversa, tolerante com a divergência. Somos um filme de Fellini e não de Ingmar Bergman: falamos muito, discutimos, discordamos. Somos uma população de oito milhões de primeiros-ministros, profetas e messias. Todo mundo tem uma fórmula pessoal para a redenção imediata. Todo mundo grita, ninguém ouve. Exceto por mim, que ouço às vezes, é como ganho a vida.
Os gritos de Israel contra os palestinos não soam exatamente fellinianos…
– Também temos nossa cota de fanatismo, que é um fenômeno mundial, não exclusivo do Oriente Médio. Mas estamos mais perto hoje do que estávamos há alguns anos da única solução possível, a dos dois Estados. Tanto israelenses quanto palestinos sabem agora que o outro não vai sumir. Por milênios, os palestinos e os outros árabes trataram Israel como uma infecção que, se eles coçassem forte o bastante, desapareceria. Ou como uma exposição itinerante que poderia ser transplantada para outro continente. Não mais. Agora eles sabem que Israel não vai sair do lugar. Do mesmo modo, por décadas, a maioria dos israelenses sustentou que a questão palestina era artificial, uma invenção da máquina de propaganda panarábica destinada a constranger Israel. Agora os israelenses também sabem que o outro não vai embora, que os palestinos estão na Palestina para ficar. Isso é um começo. Ainda não é a solução, mas um começo: o reconhecimento de que o outro é real e não vai desaparecer.
O senhor está no Brasil para falar de Guerra e Literatura. A primeira coisa que me vem à cabeça é a guerra como eu a vi em Leon Tolstoi, Stephen Crane ou Isaac Babel, o campo de batalha. Mas o senhor, que já esteve lá, nunca escreve sobre o campo de batalha.
– Estive duas vezes em minha vida no campo de batalha, mas sinto que não posso escrever sobre ele porque não se pode compará-lo a nenhuma outra experiência humana. É impossível dizer como realmente é um campo de batalha a quem nunca esteve num. De modo geral, há bem pouco sobre batalhas na literatura israelense. Há, sim, muito sobre uma vida de incerteza, uma vida de tensão e violência.
A guerra é uma atmosfera…
– Uma atmosfera. Mas há um senso de normalidade na vida cotidiana de Israel. As pessoas levam vidas normais, mesmo estando sitiadas: sonegam impostos, cobiçam a mulher do vizinho, disputam eleições municipais. Fazem o que se faz em qualquer lugar. O que talvez ocorra é que essa tensão histórica confere um certo toque humorístico à vida cotidiana.
Em Paraty, há quatro anos, o senhor disse que um dia achou que tragédia e comédia fossem planetas distintos, mas agora os via como duas janelas dando para a mesma paisagem.
– Precisamente, é como eu vejo tragédia e comédia. No que eu escrevo, não há partes de cortar o coração e partes engraçadas. Com muita frequência, o mesmo episódio é ao mesmo tempo engraçado e de cortar o coração.
Há uma sensação mais ou menos geral de que a literatura tem perdido peso na cultura contemporânea. Como vozes que se pronunciam em questões morais, políticas ou sociais, os escritores certamente não são mais a sombra do que foram no passado. O senhor, que não parece estar perdendo peso algum em seu país, concorda que haja esse declínio?
– Não ligo para isso. A questão não é o peso da literatura, a questão é a relação entre o livro e o leitor. E o mundo ainda está cheio de leitores ávidos, jovens e velhos, pessoas que leem livros porque não conseguem viver sem eles. É isso que importa. O peso político dos escritores é uma questão secundária. O que importa é o que a literatura significa para os leitores, não o que significa para a política.
Mas o senhor tem sido há décadas uma voz política muito ouvida, através de artigos e entrevistas.
– Nunca houve o caso de alguém que viesse me dizer que tinha mudado de opinião depois de ler um artigo meu. Tampouco atribuo qualquer mudança da opinião pública israelense à atividade política que eu e meus colegas desempenhamos. Essas mudanças são resultado de uma bofetada desferida pela realidade, de muitas bofetadas da realidade na cara dos israelenses. Influência política é algo muito difícil de medir. É comum em Israel que primeiros-ministros convidem um escritor ou um poeta para encontros noturnos em casa, não no escritório. Perguntam-lhe então: “Onde foi que nós erramos? Para onde o país deve ir agora?” Depois admiram suas respostas e as ignoram completamente.
O senhor já se pegou tentado a usar a literatura para demonstrar um argumento político?
– Nunca na minha vida. Tenho duas canetas em minha mesa. Uma é para mandar o governo para o inferno, a outra é para contar histórias. São esferas diferentes para mim, a de contar e a de afirmar. Quando eu concordo cem por cento comigo mesmo, escrevo um artigo. Quando ouço mais de uma voz dentro de mim, quando vejo mais de um ponto de vista válido, é aí que estou grávido de uma história. Claro que meus personagens têm pontos de vista políticos: são israelenses, todos os israelenses são politizados. Mas minhas histórias são metapolíticas, não políticas.
13 Comentários
Li alguns livros muito bons de Amós Oz: Conhecer uma Mulher, Uma certa paz, De repente nas profundezas do Bosque, Contra o Fanatismo. Acho que ainda é pouco para entender o intrincado mecanismo que movimenta as forças árabes e israelenses no tabuleiro do Oriente Mèdio.
A única certeza que nos dá essas leituras é a grande mobilização pela paz que empreende o autor, o que é de se admirar num mundo cada vez mais tomado pelo radicalismo de um lado e pelo fanatismo do outro – o que vem a dar no mesmo: um derramamento de sangue que parece não ter mais fim.
Se levarmos em conta tudo o que o povo judeu já sofreu, isso não os isenta de se manterem tão intransigentes em relação aos palestinos, pelo contrário. Isso deveria ser mais uma prerrogativa que os israelenses teriam para incentivá-los a ver o lado contrário com olhos mais benevolentes,ou pelo menos com olhos não tão viciados pela própria violência que já atingiu os dois povos. Mas os últimos governos de direita de Israel parecem tão surdos e tão cegos a qualquer vitória internacional do povo palestino, que passa a todos que acompanham com algum interesse a problemática árabe-israelense que esse conflito jamais terá um final pelo menos razoável. Pois as tribos não são milenares?
Paz aonde, quando, de que modo? Será mesmo somente na intenção de desse grande escritor que é Amós Oz?
Louvável por um lado e lamentável por outro, profundamente lamentável.
Li “A Caixa-Preta e De Amor e Trevas” Há algo muito forte nas personagens de Amós e em seus diálogos. Não há um ponto final nas histórias. Amós nos convida a entrarmos nessas casas, assistir aos diálogos e a conhecermos o peso que cada um carrega de sua cultura. Os livros são muito bons! A reflexão persiste e o conflito é grande porque, infelizmente, as pessoas falam sobre a paz, pedem a paz e não se dão a paz.
A tradição oral judaica, que remonta aos tempos tempos bíblicos, daí as histórias que compõe o grande livro da humanidade, parece ser o motor de todo escritor judeu. Desde Isaac Bashevis Singer, Saul Bellow, Philipp Roth, Bernard Malamud, Moaçyr Scliar, Amós Oz e tantos outros.
A diferença, a favor de Oz, evidentemente, é que ele inova. “Conhecer uma Mulher” é um livro fenomenal, moderno, e que não tem trama. A história se sustenta no cotidiano de um ex agente secreto às voltas com a viuvez e os problemas domésticos da filha, da sogra e da própria mãe. A história é cristalina, simples, envolvente e verdadeira, por isso cativa tanto. Eu mesmo já li duas vezes. “Cenas da Vida na Aldeia” já remete um pouco a um tipo de literatura que já conhecemos por aqui, ou seja, ao fantástico. Um fantástico mágico, sem grandes pretensões, que invariavelmente não cai no lugar comum. Amós sempre foge dele. Assim como “De repente, nas profundezas do Bosque”, um livrinho infantil, cheio de poesia e mistério – também a linguagem utilizada pelo autor esbarra no fantástico.
Amós Oz sempre nos ensina.
Amós Oz é um romântico. Um grande escritor com um grande interesse pela paz no oriente médio. O que não é grande é a sua aceitação de que os valores morais dos dois povos não se equivalem.
O extremismo religioso islâmico é muito maior do que alguns radicais judeus. Um dado que parece simplista, mas que faz pender a balança desiquilibradamenete para o que se espera de um mútuo entendimento.
Concordo com a critica da Vera, mas nao acho que a parcialidade e a cegueira ideologica do Amos Oz sao gracas a algum romantismo.
OZ eh um relativista dos mais rasteiros e o livro com a dedicatoria “espero te ver em breve em paz e em liberdade” ao terrorista palestino Marwan Barghouti – responsavel direto pelo assassinato de 5 CIVIS e de mais outras dezenas de atentados – mostra como esse senhor nao tem nada de romantico. Eh apenas um cinico.
Marcelo ac,
Peco que voce cite um exemplo – apenas UM! – do que a esquerda israelense fez pelo processo de paz.
Tudo o que Israel cedeu em negociacoes ate hoje foi pelas maos de governos ditos de direita, como o de Begin e Sharon. E qual foi a resposta dos palestinos? Mais ataques.
E nao sao ambos “tribos milenares”. Os palestinos sao um povo relativamente recente, uma mistura de egipcios, sirios e libaneses que so criaram uma identidade distinta nos anos 60, como reacao ao estado judaico. Antes da criacao de Israel os judeus se consideravam palestinos – nome repudiado pelos arabes do local, que se consideravam sirios.
Yitzhak Rabin (que infelizmente por pessoas que tem o mesmo ímpeto seu foi assassinado por um radical israelense que não queria o processo de paz)- e, sinceramente, eu encerro por aqui. Boa Sorte!
Sobre línguas e catedrais: uma conversa com Amós Oz | Sobre Palavras - VEJA.com
Caro Sérgio,
você sabe de um link com alguma das apresentações (como você tinha disponibilizado no caso da apresentação do Ricardo Piglia) ?
Abraço,
André.
Infelizmente não, André. Aviso se souber. Um abraço.
Lendo o post com atraso, lembro mais uma vez que não há palavras inocentes e como é difícil, ainda para um repórter sensível, livrar-se dos estereótipos. Difícil entender que Israel é um país como outro qualquer (dos que importam para o xadrez mundial, não estou comparando com a Malásia, digamos) e não precisa de “intransigente defensor”. O que se defende ou se condena são políticas, ideologia. Não se costuma dizer, de autor de qualquer nacionalidade, que “apesar de crítico da política francesa, ou americana, ou cubana”, é um “intransigente defensor da França, dos EUA, de Cuba”. Pois isso seria óbvio: mesmo o “nativo” que critica a política do seu GOVERNO “defende” seu país. O Estado, a existência em si, não está em questão, a questão é a política governamental. Lembrei-me de frases como a célebre “Brasil, ame-o ou deixe-o” com que os milicos queriam nos dizer quem era digno da pátria. Centenas de milhares emigraram para Israel – caso dos pais do Oz – sem ser “sionistas”, eles “apenas” fugiam dos pogroms e das cotas/leis raciais/étnicas que os estrangulavam social e economicamente em países que os tratavam como estrangeiros ainda que vivendo ali há gerações (algo, aliás, de que se queixam comunidades árabes na Europa atual).
Heliete: é claro que a linguagem nunca é inocente, mas deve-se ter cuidado para não exigir dela que seja a mulher de César. É legítimo falar em defensor de qualquer coisa que sofra ataques, como é o caso do Estado de Israel. E os pais de Oz, que chegaram a Jerusalém nos anos 1930, eram mesmo intelectuais sionistas. Um abraço.
“Sionista” é uma daquelas palavras com sentido que muda conforme o contexto. Os judeus já sofreram tanto com as palavras (vide LTI, do Victor Klemperer)que é difícil não perceber as contradições A tematização interna, quando vista fora de Israel, ganha significados que cada um usa como quiser, claro. Colo aqui resumo de artigo sobre Oz by Saul kirschbaum (doutor em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica pela USP), publicado em WebMosaica revista do instituto cultural judaico marc chagall v.1 n.1 (jan-jun) 2009
A obra de Amós Oz tematiza a dificuldade de estar “do outro lado”, do povo acostumado a ser minoria que agora se vê como hegemônico e tem que aprender a lidar com minorias. Em A caixa preta, por exemplo,
Oz utiliza, com essa intenção, uma estrutura polifônica, em contraste com a voz única das populações hegemônicas com que os judeus
viveram na diáspora, sociedades em que a voz dos judeus não era ouvida. Nesta e em outras obras, o autor insiste em discutir as relações entre o Estado judeu e suas minorias, especialmente os árabes, mas também entre a elite ashkenazi e as “minorias” sefaradi e mizrahi. Em Meu Michel e no conto “O nômade e a víbora”, o foco recai
sobre a plena aceitação das minorias nãojudaicas: podem elas ter relações pessoais com a população judaica?
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