“Conhecimento do Inferno” (Alfaguara, 248 páginas, R$ 37,90), o terceiro romance lançado pelo escritor António Lobo Antunes, em 1980, fecha uma trilogia que começou a chegar ao Brasil com a publicação, pela Objetiva, de “Memória de elefante” e “Os cus de Judas”. Como a dos outros dois, a narrativa de “Conhecimento do Inferno” é conduzida por um psiquiatra, veterano da guerra colonial em Angola, aqui num longo monólogo interior enquanto viaja de carro por Portugal. O contraste entre o tempo exíguo em que se passa a “ação” e o tempo dilatado da memória do protagonista representa um desafio técnico que a prosa de Lobo Antunes vence com um pé nas costas. Prosa que é, em si, o próprio livro, a literatura inteira desse autor de 64 anos que, para muita gente, era mais merecedor do Nobel do que seu conterrâneo José Saramago. Não vou entrar nesse Fla x Flu, aliás besta. Mas não há dúvida de que a escrita de Lobo Antunes, exaltadamente poética, caudalosa e rigorosa ao mesmo tempo, tem uma beleza plástica que às vezes, em meio a certas páginas, dá uma vontade danada de sair por aí gritando que estamos diante do maior escritor vivo da língua. Um superlativo vão, é claro. Até porque, em outras páginas, talvez se comece a desconfiar que tanto talento verbal beira o preciosismo exibicionista, a esterilidade. Talvez, talvez. Mas o trecho abaixo não deixa ninguém negar: como escreve, o António.
Saiu da Quinta da Balaia, do verde domesticado e snob da Quinta da Balaia na qual a sombra das árvores imprime um leve tom vermelho, quase róseo, como o dos búzios, das conchas, e de tudo onde o eco do mar se enrola e canta, e dirigiu-se para a vila de Albufeira em que as paredes das casas se assemelham a lençóis lavados, muito brancos, brancos sobre o azul branco do céu. Operários de bicicleta pedalavam na estrada ao sol, reis magos transportando a mirra do almoço nas marmitas das lancheiras, e ele espiou pelo retrovisor as suas feições sérias de retábulo, lavradas a cinzel na pedra escura dos ossos, pensando que no rosto moreno dos homens morava algo de cal e do gesso dos muros, algo das nuvens de Van Gogh sobre os corvos e o trigo, formadas não pela ausência de cor mas pela tempestuosa acumulação de todas elas, amarelos violentos, roxos trágicos, castanhos do sangue coagulado numa ferida aberta, do sangue que nunca seca numa ferida aberta. O meu país, decidiu, são os painéis de Nuno Gonçalves sob a impiedade da luz, faces secas e humildes talhadas sem simetria na madeira dos músculos, baços olhos que não voam tal os dos presos e os dos cegos, tristes olhos cheios de orgulho como os dos cães à noite, fosforescentes de inquietação, de zanga, de suspeita, pedalando nas estradas do Algarve a caminho de casa entre tabuletas de restaurantes, de discotecas, de aldeamentos, de bares, ingleses pálidos, holandeses etéreos, suíças levitantes como anjos, pessoas sem um peso de terra pobre nas tripas como nós, de magras raízes, de furiosas ondas, de pedras à beira-mar onde o sumo dos sinos se prolonga, idêntico ao latir de uma veia na almofada.
E lembrou-se do Algarve no Inverno, a caminho de Albufeira, da ténue, monótona, quase infantil chuva do Algarve no Inverno, em Outubro, em Dezembro, em Fevereiro, no decurso de meses melancólicos como os lírios dos mortos, impregnados de um doce odor de cera e de alfazema. Lembrou-se do ar claro e frágil como vidro que as pétalas da chuva manchavam levemente à maneira do hálito de minúsculas bocas na janela, de Portimão afogada entre as nuvens e a ria no cinzento minucioso da tarde, em que os contornos de todas as fachadas surgem mais nítidos e precisos do que os ramos das árvores no crepúsculo, empilhados uns sobre os outros numa desarrumação febril, das luzes de Portimão iguais a jóias falsas numa montra, sentámo-nos no restaurante, procurei com o meu sorriso a tua boca, e desatámos a rir, por cima do bife, a alegria de nos descobrirmos mutuamente, de nos inventarmos, como as crianças, um morse apaixonado de sinais. Lembrou-se de Portimão e da areia da Praia da Rocha no Inverno, sem nenhuma marca de pés, dos enormes penedos inchados como coxas doentes de mulher abrigando pássaros e insectos transidos, lembrou-se da Isabel a explicar que nunca tivera orgasmo, que sou frígida, que as relações sexuais não eram importantes para ela, que durante o casamento se deitava o mais longe possível do marido a fim de não tocar um corpo cuja inércia ansiosa a repelia, e depois, nessa noite, das pernas derramadas sobre a cama e dos gritos de cadelinha assustada do seu prazer, dos guinchos da cadelinha assustada por um milagre inesperado. Gosto tanto do teu peito, pensou a ultrapassar um tractor com uma criatura empoleirada a estremecer no topo, a vibrar no topo à laia de um soldado de chumbo sem vida, gosto tanto do teu peito, do bico duro das tuas mamas e do espaço cavado e tenro que as separa, dos arames de fusíveis; do púbis que encontro, enrolados, na banheira, e dos dedos dos pés bons de morder, de chupar, de lamber enquanto a tua cara se torce de cócegas ao longe, a dizer que não, de olhos fechados, na planície em desordem dos lençóis. Havia a Isabel e houvera outras mulheres, antes e depois, nos invernos de salitre e vento do Algarve, cor de pedra-pomes, de amêndoa e de oliveira, em que partia de Lisboa possuído de uma angústia misteriosa, da aflição patética das crianças que não conseguem dormir e choram no escuro do quarto de solidão e de pavor, para se instalar em silêncio, frente à lareira, na casa da Quinta da Balaia dos seus pais, como se procurasse nas pinhas e nos troncos a arder o apaziguamento de uma serenidade impossível, porque sempre encontrara nas mulheres, na sua ternura, no seu olhar mudo e na acidez da sua pele, qualquer coisa que não achava sozinho e que constituía como que um indecifrável complemento de si próprio, a fracção de luz, de claridade de fruto, de jubiloso gosto de laranja de que ansiosamente carecia.
11 Comentários
Em minha modestíssima opinião, Lobo Antunes é o GRANDE, o MAIOR escritor vivo em língua portuguesa. Mais que o Saramago (aliás, acho que era ele quem devia ter ganhado o Nobel). Sei o quanto de arbitrário há nesse tipo de opinião, que jamais é isenta. É uma questão de amor, de paixão. Sou apaixonado pelo Lobo Antunes.
Engraçado é que os portugueses não costumam lê-lo tão frequentemente quanto ao Saramago. A explicação que uma amiga lusa me deu: “Não dá pra ler mais de um livro do Lobo Antunes por ano. Sinto-me mal”, porque o escritor português não livra a cara de ninguém, e expõe todos os nossos podres sem piedade. Adoro!
Ih! Fiquei com vontade de ler agora.
Só para tirar dúvida. Eu ganhei o “Equador” do Miguel Souza Tavares. Comecei a ler e fui arrastanto até a página 155. Não consegui continuar até o final (p. 518). Devo insistir ou não vale a pena?
Saint-Clair,
você está fazendo qual curso na UERJ? (fiquei curiosa porque vc disse em outro post)
Clarice, faço mestrado em literatura brasileira lá.
Atualmente é o melhor no Rio.
Clarice, vale muito a pena vc continuar com Equador!
rita,
Obrigada. Então vou continuar.
Sérgio,
a grafia do nome do livro me chamou atencao. Nao seria “cús” assim acentudado? e judas não seria também com o J maiúsculo?
Esse livro é um pavor de tão tedioso, aliás, como são todos os livros escritos por portugueses. Só jogando esse escremento literário no lixo pra reciclagem mesmo.
João, “cus” com acento, não. Mas o Judas é sim com maiúscula. Um abraço.
Caro Rodrigo Trivoli
Como pode vc, seu idiota, comentar uma qualquer obra se, sequer, sabe pontuar aquilo que vc mesmo escreve?!