Esta coleção é a versão revista e aprimorada de uma lista que publiquei aqui no blog no carnaval de 2011. Naquele ano, lamentei que não pudese incluir no pacote, por não estarem disponíveis online, a espetacular crônica Batalha no Largo do Machado, de Rubem Braga, com sua prosa-batucada, e o conto Caprichosos da Tijuca, de Marques Rebelo.
Ocorre que a internet tem dessas maravilhas: a leitora Regina Braga leu aquilo, não se conformou com tais lacunas e, seguindo a minha dica, apressou-se a publicar os dois textos faltantes em seu blog.
Outro acréscimo bem-vindo é o sensível conto Folia, de Marcelo Moutinho, o escritor carioca contemporâneo mais ligado ao tema. Em compensação, o trecho de Fevereiro ou março, de Rubem Fonseca, que na época estava ao alcance de um clique, saiu do ar. O que, se é sem dúvida um desfalque importante, não deixa de tornar a antologia mais coesa: todos os contos abaixo podem ser lidos na íntegra.
Num universo festivo em que, não por acaso, predominam os tons escuros que estão no avesso da euforia – do trágico ao melancólico –, meu conto de carnaval preferido continua sendo o tétrico O bebê de tarlatana rosa, de João do Rio. Mas o páreo é duro.
É interessante observar como alguns textos, mesmo conservando sua força, mostram sinais de envelhecimento: certas escolhas vocabulares, sobretudo de Rubem Braga e Aníbal Machado, podem soar francamente racistas a ouvidos contemporâneos. Recomendo lê-los com atenção ao contexto cultural de sua época.
Por fim, repito o que escrevi há quatro anos, pedindo desculpas ao leitor pelo atrevimento de escalar uma história de minha autoria em tão ilustre comissão de frente: caramba, é carnaval. Não há quem se fantasie de Napoleão?
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1. João do Rio:
“Eu estava trepidante, com uma ânsia de acanalhar-me, quase mórbida. Nada de raparigas do galarim perfumadas e por demais conhecidas, nada do contato familiar, mas o deboche anônimo, o deboche ritual de chegar, pegar, acabar, continuar. Era ignóbil. Felizmente muita gente sofre do mesmo mal no Carnaval.”
O bebê de tarlatana rosa, incluído em “Os cem melhores contos brasileiros do século” (Objetiva).
2. Rubem Braga:
“A cuíca ronca, ronca, estomacal, horrível, é um ronco que é um soluço, e eu também soluço e canto, e vós também fortemente cantais bem desentoados com este mundo. A cuíca ronca no fundo da massa escura, dos agarramentos suados, do batuque pesadão, do bodum.”
Batalha no Largo do Machado, do livro “200 crônicas escolhidas” (Record).
3. Clarice Lispector:
“Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga (…) resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.”
Restos do carnaval, de “Felicidade clandestina” (Rocco).
4. Marques Rebelo:
“Ele, com rústica delicadeza, lamentou me incomodar e se apresentou como membro da comissão angariadora de auxílios para o carnaval dos Caprichosos da Tijuca.”
Caprichosos da Tijuca, do livro “Contos reunidos” (Nova Fronteira).
5. Aníbal Machado:
“Tudo acabado, tudo tristeza, caramba!… Cabrochas que fogem, leitos vazios, desgraças. Nunca viu tanta dor de corno. Não nasceu para isso, não tem vocação para sofrer. Os sambas o incomodam. Por que não está dançando como os outros?”
A morte da porta-estandarte, do livro de mesmo nome (José Olympio).
6. Lygia Fagundes Telles:
“A mulher enfiou o dedo no pote de cola e baixou-o de leve nas lantejoulas do pires. Em seguida, levou o dedo até o saiote e ali deixou as lantejoulas formando uma constelação desordanada. Colheu uma lantejoula que escapara e delicadamente tocou com ela na cola. Depositou-a no saiote, fixando-a com pequenos movimentos circulares.”
Antes do baile verde, do livro de mesmo nome (Companhia das Letras).
7. Marcelo Moutinho:
“No palco, a bandeira da escola se desloca nos meneios delicados das mãos da menina. A face pequenina, espremida entre o chapéu e a fantasia, aquele minúsculo ponto marrom tão familiar, movimenta-se de um lado a outro, no contrabalanço do corpo – como é possível agüentar tanto peso, Áurea?”
Folia, do livro “A palavra ausente” (Rocco).
8. Sérgio Rodrigues:
“Não lembro de ter entrado no Cadillac que o pierrô de porre parou do meu lado, me deu um branco mas eu sabia que, tendo entrado ou não, a verdade era que eu estava dentro dele agora, sentada no banco do carona com a cabeça girando e a mão do pierrô no meu joelho enquanto a estradinha cheia de curvas passava por nós, o mar rugindo lá embaixo, reconheci a Niemeyer.”
A máscara, inédito em livro.
10 Comentários
acho que Teoria do Consumo Conspícuo, do Rubem Fonseca, poderia entar nessa lista.
Segue http://travessia21.blogspot.com.br/2005/06/o-primeirssimo-conto-de-mestre-rubem.html
Ótima iniciativa, Sérgio. Também me lembro de um muito bom chamado “Bandeira Branca”, do Luis Fernando Verissimo, sobre um casal que se reencontra todos os anos, desde a infância, nos bailes de carnaval de um clube.
http://revistatrip.uol.com.br/revista/221/salada/conto-de-verao-nordm-2-bandeira-branca.html
Este (http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2014/02/1405653-o-homem-mulher.shtml), do Sérgio Sant’Anna,é muy bacana também.
Também o conto de João do Rio é o meu preferido.É delicioso “Caprichosos da Tijuca”, mas acho que ele está mais pra crônica do que pra conto.Digamos é uma mistura dos dois gêneros,assim também como o texto de Clarice. Um abraço.
Fechando o desfile: mais cinco histórias de carnaval | Todoprosa - VEJA.com
Sérgio, recomendo muito a leitura das crônicas ‘Carnaval’ e ‘Carnavalescos’, de Olavo Bilac: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00291300#page/123/mode/1up (págs. 123 a 134)