Coube aos acadêmicos de literatura João Cezar de Castro Rocha e Eduardo Sterzi a ingrata missão de entreter o público da Flip no primeiro horário deste domingo, a partir das 10h, quando a maioria ainda dorme em suas pousadas ou se recupera da ressaca de sábado à noite. Para tornar a missão mais difícil, o tema de sua mesa, chamada “Pensamento canibal”, era uma questão teórica – o que o homenageado deste ano, Oswald de Andrade, queria dizer ao falar de antropofagia e o que ela deixou de herança para a cultura brasileira. Resultado: uma Tenda dos Autores com menos de metade dos assentos ocupados.
A verdade é que o viés oswaldiano, ainda que a homenagem seja merecida, não chegou a penetrar nas rodinhas de conversa flípicas e dar um arremedo de argamassa a uma festa marcada num extremo pela simpatia baiana de João Ubaldo Ribeiro e no outro pela antipatia francesa de Claude Lanzmann, com o fenômeno de popularidade instantânea do português Valter Hugo Mãe ocupando a maior parte do meio-de-campo.
Castro Rocha está lançando no Brasil a edição brasileira ampliada de “Antropofagia hoje? – Oswald de Andrade em cena”, coletânea de ensaios publicada em 2000 nos EUA. “A antropofagia é histórica e brasileira ou antropológica e mais geral? Eu não tenho uma resposta definitiva”, disse. Com um estilo vibrante de exposição, acabou por alterar a questão para tomar partido da segunda opção, sem excluir a primeira: “Nós não admitimos que um escritor ou pintor brasileiro possa ser universal sem se despir de sua brasilidade. É como se quem escreve em inglês, francês ou alemão fosse naturalmente universal, mas nós não. O problema é nosso. Nós ainda não superamos nosso complexo de inferioridade colonial e não sabemos reconhecer o universal em Oswald de Andrade”, afirmou, sob aplausos.
Sterzi é autor do livro “A prova dos nove”, reflexão que parte de seu objeto de estudo, Dante Alighieri, para chegar à poesia modernista brasileira e em especial a Oswald. Falou depois de Castro Rocha e tratou de dissipar qualquer traço do foco que este tivesse conseguido lançar sobre o tumulto do “Manifesto antropófago”, frisando que Oswald “fica a meio caminho entre a literatura e aquilo que, à falta de melhor termo, podemos chamar de filosofia.” Enumerou então tudo o que, em sua opinião, pode e deve ser extraído da famosa coleção oswaldiana de aforismos: uma teoria da história, uma teoria do direito, uma proposta de abolição de toda a propriedade privada, uma teoria da economia, uma teoria da religião, uma psicologia e uma teoria da modernidade.
Um comentário
Olá Sérgio. Estou acompanhando algumas mesas da Flip pela internet,por isso, o que vou falar sobre elas são apenas impressões. Sobre esta edição, acho que é melhor que a do ano anterior, principalmente, no que se refere a diversidade de autores e temas. Isso proporciona ao público leitor conhecer um pouco sobre a literatura contemporânea que parece confirmar várias tentendências: de um lado os autores que investem na mistura aspectos do romance histórico e ficção, como é o caso de James Elroy e do outro aqueles que aplicam a chamada escrita criativa e propõe um novo método de fazer literatura, que parece ter sido capaz de gerar um bom resultado no romance O viajante do século de Andrés Newman, ou pura pretensão intelectual, no polemico As teorias selvagens de Pola Olauxamac (é assim que se escreve?). Há ainda os escritores que optaram por um gênero que implica em riscos e sempre gera muita discussão entre aqueles que estudam literatura: o romance biográfico, representado pela Arte de Perder que ficcionaliza o relacionamento afetivo entre a poetisa Elizabeth Bishop e a brasileira Lota. Também existem escritores que insistem em produzir uma literatura de devido a temática atinge um público limitado que conhece obras literárias e autores de “peso” a partir de referencias literárias e do exercício da própria criação literária, que é recorrente na produçao do escritor catalão Vila Matas. Novamente, em torno dessas discussões percebi que o real (a História) e a literatura (ficcional) de algum modo parece estabelecer uma relação parasitária, e ao contrário do que muitos teóricos afirmam, o aspecto mais importante dos textos literários não está nas inovaçoes de linguagem, mas na habilidade do escritor de criar uma espécie de falsa realidade, embora crível, a partir de eventos históricos. Talvez, a melhor definição para essa estranha relação de proximidade entre História e literatura tenha sido dada por Newman que disse:”a História é um romance de fatos”. Por outro lado, há quem defenda com unhas e dentes que a boa literatura se faz a partir da inovações estéticas sejam elas no uso da linguagem ou recursos de narração que de tão “inovadores” podem afastar o leitor de uma obra literária. Portanto, pelo que vida flip deste ano, o bom autor é aquele que sabe dosar os elementos, pois ao mesmo tempo em que constroi uma linguagem compreensível também é capaz de criar um fundo histórico coerente, que embora remeta ao passado também dialoga com temas e questões contemporâneas. Dentre els, destaco Elroy e Newman,cujas opiniões sobre a literatura e o ofício do escritor me fizeram comprar seus romance, o que pretendo fazer em breve. É isso.