O romance tem barriga. Se perdê-la, vira novela. A palavra barriga está carregada de conotações negativas que, no entanto, não quero absolutamente expressar. Pois é a barriga que torna o romance superior à novela: a imperfeição faz dele o veículo perfeito para a imitação literária (não necessariamente realista, é claro) da vida. Diante da barriga morna e fértil do romance, a novela é, no máximo, uma top model: linda, mas meio anoréxica. Com ela temos um caso. Com o romance, casamos. Um tanto fria, mais propícia à expressão da literatura como puro jogo, a boa novela tem necessariamente a musculatura definida. Sabe o que está fazendo, planejou a vida inteira, jamais esbarra nos móveis, mas não consegue disfarçar um brilho cruel no fundo do olho. O romance, não: este pode ser sedentário, triste, doentio, de pele áspera e hálito azedo, mas também alegre, ativo, cheiroso, úmido, confortável. Pode ter quantas caras e jeitos tiverem as pessoas, mas nunca perde a mania de se perder um pouco nas encruzilhadas, marcar passo, tropeçar, pedir perdão. Um bom romance nos dá a ilusão de ser feito mais de vida que de literatura. É a barriga que o salva.
Publicado em 30/3/2007. Aproveito para comunicar aos leitores uma mudança de data: a edição de “Sobrescritos”, o livro, pela Arquipélago Editorial, sairá em março do ano que vem.
10 Comentários
É…A barriga é o que faz com que todos nós nos convençamos da nossa humanidade! Bom é ler alguém que sabe disso…….É como saber que o” homem aranha” troca fralda de bebes e conserta antena de T.V.!
Não estou ganhando nada com isso, mas informo a quem mora em Brasília, que os seguintes títulos estão custando quase nada na livraria leitura:
As benevolentes – Jonathan Littel
Bandeira negra amor – Fernando Molica
Banalogias – Francisco Bosco
e outros, por apenas R$ 9,90 cada um.
excelente!
Há alguns anos, li em algum papel perdido nas minhas gavetas uma “quotation” de uma escritora (de língua inglesa) onde ela comparava o conto com o romance. De acordo com essa escritora, a leitura do conto era como sentar-se em um sofá, ao passo que a leitura do romance era como espalhar-se em um divã. Ela concluía dizendo que quem já experimentou um divã jamais vai trocá-lo por uma poltrona…
A sua dobradinha novela/top model e romance/barriga é simplesmente fantástica! Muito melhor do que horas e horas de Bakhtin….
Pô, muda o título: a barriga é um ensaio muito mais “relevante” do que “gravíssimo”…
(Agora tenho que ensinar o Sérgio? Por essa não esperava…)
:¬)))
Escritores que criticam contos, não sabem escrevê-los.
Concordo com o Tibor
Retificando o comentário acima – a escritora que mencionei comparou um conto a uma poltrona (e não a um sofá) e o romance a um divã.
E já que estamos na seara complicada e polêmica dos gêneros literários, aproveito para dizer que o Sérgio escreveu sobre algumas diferenças entre romance e novela (e não conto). Romance, novela e conto são, até segunda ordem, coisas distintas. Sei que a questão é complicada, mas sem essa distinção não é possível entender o belo texto do Sérgio sobre romances e novelas.
Concordo contigo, mas acho que a barriga tem que ser charmosa, não pode incomodar. Acho que barrigas desproporcionais quebram o clima do romance e, numa referência ao seu próximo post, podem fazer com que o fio se rompa.
Acho que existe preconceito com relação ao conto, como se o autor não tivesse fôlego, como dizem, para escrever um romance. São coisas distintas. Por falar nisso, não parece, por vezes, que determinados romances são apenas contos torturantemente esticados, ou que certos contos possuem material suficiente para um romance?
Quanto à barriga, creio que tudo gira em torno dos personagens; usando termos da dramaturgia, a novela é feita com tipos, onde tudo é perfeito, até o topete do herói é perfeito e o vilão é perfeitamente mau, enquanto que os romances são elaborados sobre personagens com suas mazelas, seus defeitos e suas virtudes, sua vitórias e suas derrotas, suas barrigas, portanto. Tendem à profundidade, com certeza, o que não quer dizer obrigatoriamente melhores.