A boa escrita é a atualização, que parece se dar no ato mesmo da leitura, de um certo potencial literário da linguagem, coisa obviamente intangível: um jogo desesperado, uma dança sedutora, tapeçaria vaporosa de ritmos, vírgulas, climas e sabedoria vocabular lançada sobre um relevo concreto de topoi, de pressupostos culturais e sensoriais que compõem o território compartilhado por escritor e leitor. Um relevo de lugares-comuns que a escrita ora aceita, acariciando, ora confronta, batendo de frente nas pedras – mas esta é outra conversa. O que importa destacar aqui é que toda essa algazarra se dá, como se acontecesse pela primeira vez, no ato mesmo da leitura, aparecendo antes de mais nada sob a forma de um comboio de palavras. E já que estamos no terreno do intangível: quanto mais charmoso esse comboio, quanto melhor a escrita, maior o fio, o gume com que fere a página naquele momento.
É o fio, para não deixar de explorar a polissemia da palavra, que nos leva a passar de uma palavra à próxima, de uma frase às frases seguintes, e virar as páginas fascinados num mundo em que a cada dia há mais páginas, páginas excessivas, implorando nossa atenção como crianças malabaristas nos sinais. E é a consciência da ausência de fio que nos leva a ler cinco páginas e meia do romance cult recém-lançado como quem encara um suflê de alfafa, garfada a garfada, penosamente, antes de tomarmos coragem para seguir o conselho de Dorothy Parker: “Este não é um livro que se possa deixar de lado de forma leviana. Deve-se atirá-lo longe com toda a força”. Teríamos cometido uma injustiça? Brilharia milagrosamente a partir da página dezoito o gume até então cego? Nós e Dorothy jamais saberemos.
Mas como se dá, afinal, a avaliação da escrita por um critério tão impressionista? Quem diz onde está o fio, ou pior, quem diz o que é o fio? Quem leu o suficiente para dizer, é claro. Mas diz em primeiro lugar – e isso é importante – a si mesmo. Assim como a realidade do texto para o leitor se dá sempre agora, não importa quanto tempo o autor tenha investido nele nem quantos séculos tenham se passado entre escrita e leitura, da mesma forma esse leitor-juiz, se tiver dois gramas de sabedoria, saberá que é irremediavelmente idiossincrático ao julgar o fio. Isso não significa decretar um vale-tudo estético baseado apenas no “gosto pessoal”. Nenhum gosto é exclusivamente pessoal, mas sempre enraizado num patrimônio de cultura que pertence à sociedade. Ocorre apenas que, de tanto ler, o leitor, submisso leitor, acaba dando um jeito de instaurar sua própria tirania sobre os escritores: se puder, não permitirá de modo algum que aquelas palavras lhe arranhem a retina, a mente ou a alma. Eis por que uma boa pedra de amolar é mais importante na mesa de trabalho do escritor do que papel e caneta – ou um computador.
15 Comentários
Você teve algum livro recusado recentemente, Sérgio?
Não, Tibor. O que lhe deu essa idéia?
hmmm… sei lá… devo estar viajando…rs
Afiado!
Quem mais entendia de fios, Penélope ou Ariadne?
Alguém que você conhece teve algum livro recusado? Ou quem sabe, você leu uma coisa pensando que era outra e aí… Já sei, devo estar viajando, também…
A propósito, o que você escreveu acima, Sérgio, é mais afiado do que o próprio tema!
Pior que Dorothy Parker, só Oswald de Andrade: “Não li. Não gostei.”
E tem também uns livros que vão ficando cegos com o passar do tempo. E outros que continuam afiados como no dia da publicação.
Abraço.
Dorothy Parker é uma senhora nem um pouco engraçada ou interessante.
Quem gosta mais de fios, não é Penelope ou Ariadne, mas sim as Moiras ou Parcas.
Tem certos livros que são como um enorme facão roto. Aqui e acolá, ao longo do fio, há uns trechos cegos, uns dentes, mas algumas partes cortam com tanta facilidade que dão o impulso necessario para a lâmina passar pelos obstáculo seguintes: mais dentes, ferrugem, mais partes cegas. É assim com alguns. Outros não. São navalha de dar inveja. É cerol feito com pó de lâmpada fluorescente, que como todo bom cerol, requer certo cuidado na hora do manuseio.
E o Fio da Navalha, tinha fio, Sérgio? Foi tão moda em certa época… Talvez porque ainda não existia Paulo Coelho. Tinha gente que preferia Lobsang Rampa, é claro. Mais palatável que Somersert.
Sindico, nao entendi absolutamente nada do que voce disse! Que fio eh esse? De faca, de linha de pipa ou de cabelo?
Mas se eh pra enrolar mais ainda, o tal de Edmund Burke, que ja tinha tuas inquietacoes ha uns 250 anos atras, separou o Belo do Sublime. O tal de Kant, uns 30 anos depois, que separou razao estetica da razao pratica, pegou as ideias do Burke e jogou malandramente – hoje eh facil falar isso – a ideia do Belo para o reino Sublime. O tal de Simon Schama explica isso bem no Poder da Arte. Vale a pena.
Quanto ao fio certo que os amoladores buscam, nao sei. Sem trocadilho, so os amoladores que sabem amolar bem, amolam com elegancia. Portanto, assim que voce termine um texto, use tua pedra para amolar uma tesoura e ponha-a em cima dos escritos. Tenho uma tia macumbeira que diz que faz um bem danado pra espantar mau olhado.
Ara, mas o trocadilho é irresistível… que há textos que amolam, isso há… Esse fio está levando longe, não?
Também não entendi, cá com meus ignorantes botões.
E como alguém citou Lopsang Rampa, antes do Paulo Coelho, e o Fio da Navalha do Somerset, lembrei-me também dos ocultistas de antanho que falavam de andar “sobre o fio da navalha”.
Bem que a lembrança poderia ser trazida também para o Jorge Benjor com o Fio Maravilha nós gostamos de você (param pam pam!)
Belo texto. Adorei o “páginas excessivas, implorando nossa atenção como crianças malabaristas nos sinais”.
abs.
tudu ums porcatia