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Apontamentos levianos para um ensaio gravíssimo: o fio

21/10/2009

A boa escrita é a atualização, que parece se dar no ato mesmo da leitura, de um certo potencial literário da linguagem, coisa obviamente intangível: um jogo desesperado, uma dança sedutora, tapeçaria vaporosa de ritmos, vírgulas, climas e sabedoria vocabular lançada sobre um relevo concreto de topoi, de pressupostos culturais e sensoriais que compõem o território compartilhado por escritor e leitor. Um relevo de lugares-comuns que a escrita ora aceita, acariciando, ora confronta, batendo de frente nas pedras – mas esta é outra conversa. O que importa destacar aqui é que toda essa algazarra se dá, como se acontecesse pela primeira vez, no ato mesmo da leitura, aparecendo antes de mais nada sob a forma de um comboio de palavras. E já que estamos no terreno do intangível: quanto mais charmoso esse comboio, quanto melhor a escrita, maior o fio, o gume com que fere a página naquele momento.

É o fio, para não deixar de explorar a polissemia da palavra, que nos leva a passar de uma palavra à próxima, de uma frase às frases seguintes, e virar as páginas fascinados num mundo em que a cada dia há mais páginas, páginas excessivas, implorando nossa atenção como crianças malabaristas nos sinais. E é a consciência da ausência de fio que nos leva a ler cinco páginas e meia do romance cult recém-lançado como quem encara um suflê de alfafa, garfada a garfada, penosamente, antes de tomarmos coragem para seguir o conselho de Dorothy Parker: “Este não é um livro que se possa deixar de lado de forma leviana. Deve-se atirá-lo longe com toda a força”. Teríamos cometido uma injustiça? Brilharia milagrosamente a partir da página dezoito o gume até então cego? Nós e Dorothy jamais saberemos.

Mas como se dá, afinal, a avaliação da escrita por um critério tão impressionista? Quem diz onde está o fio, ou pior, quem diz o que é o fio? Quem leu o suficiente para dizer, é claro. Mas diz em primeiro lugar – e isso é importante – a si mesmo. Assim como a realidade do texto para o leitor se dá sempre agora, não importa quanto tempo o autor tenha investido nele nem quantos séculos tenham se passado entre escrita e leitura, da mesma forma esse leitor-juiz, se tiver dois gramas de sabedoria, saberá que é irremediavelmente idiossincrático ao julgar o fio. Isso não significa decretar um vale-tudo estético baseado apenas no “gosto pessoal”. Nenhum gosto é exclusivamente pessoal, mas sempre enraizado num patrimônio de cultura que pertence à sociedade. Ocorre apenas que, de tanto ler, o leitor, submisso leitor, acaba dando um jeito de instaurar sua própria tirania sobre os escritores: se puder, não permitirá de modo algum que aquelas palavras lhe arranhem a retina, a mente ou a alma. Eis por que uma boa pedra de amolar é mais importante na mesa de trabalho do escritor do que papel e caneta – ou um computador.

Publicado em 7/10/2008.

12 Comentários

  • cely 21/10/2009em14:59

    É…Quem sabe o tal do “fio” acaba cortando a garganta do leitor?Não concordo,se voce comprou o livro ou abriu o livro que seja,alguma coisa chamou sua atenção! Vai conseguir parar sem saber o que foi? Afinal, se existem começos inesquecíveis,voce não pode estar perdendo meios e fins inesquecíveis? E se a barriga é mais embaixo?

  • Cláudia Marcanth 21/10/2009em15:53

    Nossa! Isso é tão verdadeiro – depois de muitas leituras, muitos anos pegando os mais diversos comboios, começamos a perceber que os “truques” se repetem, até já adivinhamos como vão se desenrolar. E quando chegamos nesse estágio é difícil sermos atingidos por qualquer coisa. Mas quando um trabalho afiado nos pega de surpresa, ah! como é bom! Renasce em nós a esperança de que a criatividade humana ainda tem um monte de outros truques para nos manter cativos no reino da literatura ou qualquer outro tipo de arte.

    “Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada…”

  • olney figueiredo 21/10/2009em17:10

    Muito bem, Cláudia, vc foi “na mosca”; uma análise perfeita!

  • maria josé silveira 21/10/2009em17:34

    Muito bom esse seu texto, Sergio.

  • Hefestus 21/10/2009em18:09

    Me fartei de rir (eu ia usar um verbo mais comum aqui no Rio Grande do Sul, mais escatológico e menos elegante, mas tive medo que alguma ferramenta bloqueasse o palavrão e não me deixasse expressar o quanto eu achei o texto engraçado, então vai com “fartei” mesmo).

    Muito bom, Sérgio.

  • Pérola 21/10/2009em18:48

    Lindo o seu texto. Tirei várias lições.

    Inclusive a “da pedra de amolar”.
    E olha… sempre somos cortados primeiros… bem antes de levar nossos texto sob as retinas endurecidas…

    Amei seu texto. Muito!

  • Mariana 21/10/2009em21:20

    Samuel Johnson e as notas de rodapé!

    Seu texto é sempre afiado.
    Faca para cortar pão, faca para cortar carnes… lâminas para
    papel, canivete… navalha… Cada qual na sua devida função; caso contrário, disposição de ocasião.

  • Corintiano 21/10/2009em21:51

    Peidei……

  • Walter YC 21/10/2009em23:21

    Sem dúvida esse artigo é obra de um mestre, provavelmente um escritor profissional que ama seu ofício.

  • Renato 22/10/2009em10:16

    Eu sou daqueles que reluta muito em largar um livro. A dúvida é sempre a mesma – mas, e se decolar mais pra frente?
    É um pouco parecida relação que tenho com certas músicas – às vezes, há uns 30 segundos que, de tão magistrais, fazem valer a pena os longos minutos anteriores.E, aqueles 30 segundos, sem os longos minutos que os antecedem, também não teriam sentido.

    Acho que pra tudo na vida é preciso paciência. Mas, também tem que ter claro quando abusam da nossa… e, se for o caso, seguir o conselho da Dorothy Parker.

  • Ana Cristina Melo 23/10/2009em08:15

    Também preciso desse fio quando leio e, principalmente, busco esse fio quando escrevo. E se um livro não me cativar, não vou até o final, mas insisto o máximo possível. Já aconteceu com um livro de ele não me pegar no primeiro capítulo, mas do segundo em diante, foi verdadeira paixão. Por isso, aprendi a insistir um pouco mais.

  • Osório 24/10/2009em16:51

    Sérgio.
    Não comento muito por me sentir um turista (se é que alguém que visita regularmente um lugar pode ser chamado ainda de turistas). Quase sempre tenho mais dúvidas do que certezas, o que acho até bom. Com relação ao fio, tenho a dúvida de que o que se fala é o fio condutor da história. É o que me pareceu e torna o texto pertinente, pois muitas vezes lemos romances cuja estrutura, quando há, se diferente, daria ao todo outro sabor. Adiar/antecipar informações, inverter a ordem dos fatos, etc… Creio que o escritor, a bem do leitor, deve trabalhar de forma maquiavélica. Vejo também a conotação de o fio ferir o leitor no sentido de sensibilizá-lo, cooptá-lo.