Dias de luto por John Updike, trezentas mil reportagens e artigos pipocando na internet, eu – que nunca fui fã do ficcionista, que li de forma incipiente e há muito tempo – me lembrei das ótimas (e pouco observadas) cinco regras para uma boa crítica jornalística que ele, resenhista prolífico, escreveu há décadas. Faz uns dois anos que esbarrei com elas e nunca esqueci. Resumindo (a íntegra, em inglês, pode ser lida aqui), trata-se do seguinte:
1. Tente entender o que o autor quis fazer, e não o culpe por não conseguir fazer aquilo que não tentou.
2. Transcreva trechos da prosa do livro em extensão suficiente – pelo menos uma passagem mais longa – para que o leitor da resenha possa formar sua própria impressão.
3. Confirme sua descrição do livro com uma citação do próprio, mesmo que só uma frase, em vez de fazer apenas um resumo vago.
4. Vá devagar com o resumo da trama, e não entregue o fim.
5. Se o livro for considerado deficiente, cite um exemplo bem-sucedido de outro que vá na mesma linha, seja ele tirado da obra do mesmo autor ou de outro. Tente compreender o fracasso. Tem certeza de que o fracasso é do autor e não seu?
Mas a melhor regra, que não é bem uma regra mas uma verdadeira profissão de fé, fairplay, respeito e amor pela literatura, vem no fim:
A essas cinco regras concretas eu poderia acrescentar uma sexta, mais vaga, que tem a ver com manter a pureza química da reação entre produto e avaliador. Não aceite para resenhar um livro do qual esteja predisposto a não gostar, ou comprometido por amizade a gostar. Não se imagine como o guardião de alguma tradição, um capataz dos padrões de conduta de um partido, o guerreiro de uma batalha ideológica, um agente penitenciário de qualquer tipo. Nunca, nunca (…) tente pôr o autor “no seu devido lugar”, transformando-o em peão de uma disputa com outros resenhistas. Critique o livro, não a reputação. Submeta-se a qualquer feitiço, fraco ou forte, que esteja sendo lançado. Melhor elogiar e compartilhar do que acusar e banir. A comunhão entre o resenhista e seu público se baseia na presunção de certos prazeres possíveis da leitura, e todos os nossos juízos devem se curvar a esse fim.
Um cara como esse vai fazer falta.
17 Comentários
Updike era um grande crítico. Não perdia a elegância nem para avaliar criticamente uma obra menor de um grande autor. Lembro sempre do texto dele sobre Cosmopolis, do DeLillo: http://www.newyorker.com/archive/2003/03/31/030331crbo_books1
Li dele “Casais trocados” e gostei. Não foi para mim o que Dostoievsky foi (ainda lembro o nome do protagonista Rascolnicov), nem mesmo o que outros tidos como menores foram. Mas produziu um trecho que me vem à mente quatro a cinco vezes ao ano, pelo menos. Bom, o escritor que consegue isso é um vitorioso, convenhamos. É um trecho em que ele coloca um homem e uma mulher do suburbio conversando ao longo de todo um final de tarde. Aquelas conversinhas de pequeno -burguês que nem cheiram nem fedem. Ele consegue transmitir ao leitor a sensação de que aquela conversa mole entre os dois… de repente, ele te afasta da árvore e você entrevê o bosque. “Que diabo é que essa mulher…”. Aí Updike martela taxativo: “Não existe conversa desinteressada entre um homem e uma mulher que dure mais do que duas horas…”. É o cúmulo da canalhice é o máximo da verdade em uma única frase. Sempre que me pego conversando com uma dona qualquer mais do que duas horas me dou conta de que já estou enfiando o olho no decote ou alisando as pernas da dita cuja com os olhos. Na superficie, um papo inocente – nas entrefalas a labareda sobe dolente. Não consigo me controlar e sempre dou uma risada cafageste nessa hora. Se a moça é gostosa então… Updike tinha isso, essa aptidão para burilar as tardes lentas da periferia da vida. O homem em sí, sem rodeios.
Sérgio, o melhor é esse texto do Updike ser postado logo depois do massacre do Millôr.
Abraços,
Lucas
eu prefiro o millôr.
Certamente o Millor ignorou um tanto dessas regras. Ignorou maravilhosamente bem em sua crítica ao livro do Sir Ney.
Belo (inoquo e retorico), mas vindo do Updike merece atencao pois guarda uma ironia velada, ja que ele nao eh a Madre Teresa de Calcuta. Afinal, nao foi ele – e o Roth – quem desconstruiu de maneira cruel essa banalidade suburbana do americano?
off topic. O sindico e muitos condominos derramaram-se de amores pelo Littell ha semanas atras, inclusive em discussoes hermeneuticas e proctologicas aprofundadissimas sobre qual seria a melhor traducao para ‘benevolo’.
Pode ser cabotinismo da minha parte – ateh por que ainda nao li a Littell – reproduzir isso, mas encontrei uma resenha muito honesta no Literary Saloon:
Littell’s is a big, ‘serious’ book that tackles very serious issues and history — but there’s little here that hasn’t been covered before, and the parts that are original — Littell’s fictional padding — are simply terrible.
Por enquanto, lendo o The Reader de Bernhard Schlink, sinto que ele fica e Littell cai. Mas isso eh so aposta.
Para imprimir e colocar na carteira as regrinhas.
Sabe, Mr. Writer, você tem razão. E talvez eu seja um desses amadores até. Mas tenho estimulado o pessoal mais novo com quem tenho contato a escrever resenhas, exercitar não só a visão crítica mas também a capacidade de organizar o raciocínio no papel/blog. Se é verdade que um dia teremos tantos escritores quanto leitores (ou mais escritores, já que alguns não lêem), que venha também um olhar renovado capaz de resenhar sem ranços. Pode não dar em nada, confesso que é uma visão inocente da minha parte, os sites sobre cinema que o digam, mas não custa tentar.
Abss!
O problema com resenhas hoje em dia está sendo o mesmo da literatura. Excesso de amadores em ambas…
Que reverência linda, Sérgio! E ainda tem servido como referência, não é? [aplaudindo] rs
A propósito, sobre Millôr: Foi muito pertinente trazer a crítica do Millôr… muito boa sacada, muito oportuno! E, O duelo Millôr X Sir Ney, com certeza, está fora do alcance das regras de Updicke: não é Crítica Literária, nem mero Embate Político, carece de outro conceito.
Como a gente se engana, e eu achando que o problema da literatura e das resenhas era o excesso de “experts de caixa de comentários”, via de regra sob pseudônimos.
Sérgio acho que preciso ler Updike, mas vou ser sincero já vou com ressalvas. Porém não sei explicar isso… Tem alguma cura? Talvez sejam os comentários de algum crítico literário ali ou acolá. Qual você recomenda?
Machado diz algo parecido em “O ideal do crítico”. O problema é chegar nesse “ideal”. Além do que, uns “pega-pra-capar” de vez em quando são divertidos hehehehe
Anderson: como deixo claro no post, li Updike pouco e mal. Mas parece ser meio consenso de crítica que a série Coelho é das melhores coisas dele.
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