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‘Asco’: receita para adorar a pátria pelo avesso

07/09/2013

Um homem que se mudou há quase duas décadas para o Canadá, mas acaba de voltar ao país natal para o enterro de sua mãe, reencontra um velho amigo dos tempos de estudante no bar de uma grande cidade terceiro-mundista. Bebem uísque e batem papo. Ou melhor, até onde nos é dado ouvir a conversa, apenas o recém-chegado fala, fala sem parar. O outro ouve com atenção (a julgar por sua capacidade de reproduzir depois, com riqueza de detalhes, o discurso do amigo, limitando-se a pontuá-lo aqui e ali com “disse fulano”), mas não emite opinião alguma. Não que se saiba.

A questão de quem fala o quê – e quem reproduz o quê – é importante por mais de uma razão, como veremos. A primeira e mais evidente: o que aquele canadense adotivo despeja num bloco inteiriço do tamanho de uma novela curta é uma hiperbólica, obsessiva, ultrajante, engraçadíssima coleção de insultos ao país que deixou para trás. Como num catálogo turístico em negativo, nenhum aspecto da terra escapa de ser apresentado como asqueroso: povo, cultura, políticos de direita e esquerda, militares, grandes vultos históricos, clima, culinária, arquitetura, caráter, educação, inteligência, tudo ali representa, segundo ele, o ponto mais degradado a que pode chegar a humanidade.

O boquirroto se chama Edgardo Vega e o país que ele achincalha é El Salvador. No entanto, “Asco” (Rocco, tradução de Antônio Xerxenesky, 112 páginas, R$ 23,50), lançado em 1997 pelo salvadorenho (nascido em Honduras) Horacio Castellanos Moya, só espelha as dimensões modestas da república centro-americana no número de páginas. Um dos primeiros títulos da coleção Otra Língua, coordenada por Joca Reiners Terron, o livro ultrapassa fronteiras ao sugerir quase a cada página que o país tão voluptuosamente vilipendiado poderia ser, com leves retoques, muitos outros. O Brasil, por exemplo.

Ou não? Você decide.

Uma beleza de raça, Moya, se você pensar bem, o único que importa é o dinheiro que você tem, ninguém se preocupa com nenhuma outra coisa, a decência é medida pela quantidade de dinheiro que possui, não há nenhum outro critério, (…) simples assim, é o único valor que existe.

…não entendo como você pensou em vir a este país, voltar a este país, (…) ninguém que se interesse por literatura pode optar por morar em um país tão degenerado como esse, um país onde ninguém lê literatura, um país onde os poucos que podem ler jamais leriam um livro de literatura…

Nunca vi políticos tão ignorantes, tão selvagemente ignorantes, tão evidentemente analfabetos como os desse país, (…) você só precisa ligar a televisão para ver no focinho deles a ansiedade em saquear o que puderem, de quem puderem…

…esses que antes foram guerrilheiros, esses que antes eram chamados de comandantes, esses são os que mais me deixam enojado, nunca vi sujeitos tão farsantes, tão rasteiros, tão vis…

…as pessoas, com medo, transformaram suas casas em fortalezas, uma paisagem horrível, essa cidade com casas protegidas por muralhas, Moya, como se fossem quartéis, cada casa é um pequeno quartel…

San Salvador é uma versão grotesca, anã e estúpida de Los Angeles, povoada por gente idiota que só pensa em imitar os idiotas que moram em Los Angeles…

…uma cidade que, se você não tem carro, está frito, porque o transporte público é a coisa mais incrível que uma pessoa pode imaginar, os ônibus foram feitos para transportar gado, não seres humanos, (…) assim que você entra no ônibus se dá conta de que deixou sua vida nas mãos de um criminoso que dirige o mais rápido possível, que não respeita lombadas, nem semáforos vermelhos, nem nenhum sinal de trânsito, nas mãos de um energúmeno cujo único objetivo é acabar com o máximo possível de vidas no menor tempo possível…

No fim descobrimos que Vega, ao se naturalizar canadense, mudou seu nome para Thomas Bernhard. Isso mesmo, estamos diante de ninguém menos que um xará do escritor austríaco (nascido na Holanda), autor de “Extinção”, cujos narradores intratáveis, animados por uma intolerância vizinha da loucura à alegada mediocridade de tudo que os cerca em seu país, são a inspiração evidente daquele discurso. (Discurso que parece um jorro de vômito, é inevitável pensar, até vermos o lugar-comum se tornar literal no clímax de “Asco”, quando Vega acredita ter perdido num puteiro sórdido de San Salvador seu bem mais precioso, aquilo que o define: o passaporte canadense.)

A referência explícita a Bernhard não é a única pista deixada por Horacio Castellanos Moya de que sua novela é um divertissement, uma brincadeira literária, e portanto não deve ser levada a sério demais. O ouvinte do papo de bar, pseudonarrador do livro, distancia-se de diversas formas do homem a quem passa a palavra, da reiteração dos vocativos que frisam sua posição de espectador ao retrato patético que as entrelinhas vão traçando daquele Bernhard tropical, um cara que não se revela apenas esnobe, autocentrado e frio: é também paranoico, histérico, covarde, insuportável. Se alguém ainda tinha dúvida sobre a ironia que permeia “Asco”, a frase final do livro trata de dissipá-la:

Meu nome é Thomas Bernhard, me disse Vega, um nome que peguei emprestado de um escritor austríaco que admiro e que, com certeza, nem você nem os outros imitadores dessa infame província conhecem.

Nada disso diminui o poder catártico do livro ou desqualifica inteiramente os vitupérios de Vega, um inventário hilariante, ainda que sofrido, do déficit civilizatório que a Europa deixou de herança nas ex-colônias latino-americanas. Como também não bastou para poupar Horacio Castellanos Moya de pagar um preço alto pelas opiniões de seu “Thomas Bernhard”: ameaçado de morte, o escritor nunca mais se atreveu a morar no país. O Bernhard verdadeiro foi encarado com mais tolerância, mas, burrice literária por burrice literária, El Salvador fica a anos-luz da Áustria. Como já sabia Edgardo Vega.

10 Comentários

  • Ataliba 07/09/2013em11:22

    Cara tem certeza que ele não fala do Brasil?! Aqui os eis guerrilheiros também me enojam.
    Aí um livro que parece interessante, gostei mesmo, vou procurar.

    parabéns Sérgio.

  • Ataliba 07/09/2013em12:22

    me desculpa queria ex-guerrilheiros

  • lUCA 08/09/2013em08:52

    El Salvador fica a anos-luz da Áustria

    Desculpa mas não entendi essa Sérgio como assim? Anos lUZ ATRÁS ISSO??

  • Ismail 08/09/2013em13:27

    Certos textos, como esse, parecem celebrar o enlace matrimonial do devaneio com a realidade; o casamento do azedume com um estranho senso de humor, que nunca se sabe se ferino ou sutilmente debochado.
    Seja o que for e como for, não pude deixar de ler, não nas entrelinhas, mas na clareza da explicitude, o nome de uma região que ainda ensaia, titubeante e claudicantemente, os primeiros passos em direção ao longínquo patamar de país: Brasil.

  • Marcio 08/09/2013em13:32

    Adoraria um livro semelhante sobre o Brasil. Gostaria muito que um escritor brasileiro muito bom e com muito asco do Brasil escrevesse sobre seu asco. Já pensou um Ferreira Gullar, um Gabeira vomitando tudo o que pensa sobre o nosso país? Seria ótimo. Mas alguém sem papas na língua e que já evoluiu para além da idiotice esquerdista e que mostre também todas as m… da direita. Abraços.

  • Zulamar 08/09/2013em19:30

    Um pastiche menor.

    De repente seria interessante se ao menos uma vez ao mês tivesse um post anexo, com alguns links e sugestões.

    E resenhas sobre livros nacionais vemos cada vez mais escritores se aventurando a fazer. Acho isso, de não querer se envolver por estar no mesmo jogo, uma praga.

  • Zulamar 08/09/2013em19:31

    *cada vez menos escritores e não mais.

  • jumentinha 26/09/2013em20:41

    Que no início eu pensei que falavam do Brasil, eu tb pensei. E este desnaturado até o cabelo, bem que poderia inspirar os maléficos dos malfeitos brasileiros para irem para o Irã, mudando seus nomes para Fidel Castro.

  • jumentinha 26/09/2013em20:45

    Quanto aos escritores esses ou aqueles, que sirvam pelo menos para dar uns alertas aqui e ali. Numa dessas a boa Literatura será resgata. É que os tempos que vivemos, são tempos de poucas elocubraçoes, tudo imediato e na cara, com poucas palavras e só. Quem viverá para ler amanhã?

  • jumentinha 26/09/2013em20:48

    Márcio, este tipo de literatura que vc sonha, pode sim ser encontrado. É só a esquerda tomar o poder total, proibir a Literatura da verdade para que todos sejam emburrecidos e assim, nascerá aqui e acolá um desnaturado inspirado, pode crer. Se for proibido o livro, vai vender muito.