Vou resumir aqui, mais em espírito que literalmente, o que foi a aula dada pelo dramaturgo inglês Tom Stoppard na mesa mais nobre da Flip, a das 19h de sábado. Aula? Sim, foi nisso que consistiu a primeira metade do programa, quando, depois de apresentado por Luis Fernando Verissimo, Stoppard pediu licença para ficar em pé no palco e passou a se dirigir diretamente ao auditório lotado, expondo uma espécie de cartilha de princípios artísticos. O segundo ato da peça, se assim podemos chamá-lo, em que o autor de The Coast of Utopia respondeu perguntas do mediador e da platéia, foi irregular, como costumam ser essas coisas. Mas a aula foi ótima.
Stoppard dividiu o que entendemos por texto “bem escrito” em duas categorias: o que revela um poder magistral de manipulação da língua, no modo como as palavras se organizam, por assim dizer, arquitetonicamente, para expressar do modo mais eloqüente possível uma idéia forte; e aquele que, embora repleto de lugares-comuns e fórmulas convencionais, usa-os com tamanha precisão e em contextos tão perfeitos que tira deles o máximo de expressão artística.
A primeira categoria é, naturalmente, aquela que costuma ser compreendida pela maior parte das pessoas como a mais nobre e verdadeira, a linguagem da alta literatura; mas é à segunda que Stoppard declarou dedicar sua maior admiração.
O exemplo que deu de linha de diálogo que o faz morrer de inveja foi extraído – coisa surpreendente para um autor tão familiarizado com Shakespeare – do filme “O fugitivo”. Quando o personagem de Harrison Ford, injustamente acusado de matar sua mulher, é finalmente encurralado pelo policial incansável interpretado por Tommy Lee Jones e lhe diz, desesperado, que não cometeu o crime que lhe atribuem, ouve uma resposta desconcertante: I don’t care. Ou seja: “Não estou nem aí, não ligo, tanto faz”. E o que imaginávamos ser um filme sobre justiça e injustiça, uma das situações dramáticas imemoriais, se revela algo bem diferente, e terrível: a história de uma perseguição que se encerra em si.
Tudo por causa de um clichê: I don’t care. A linha de diálogo que Tom Stoppard mais inveja em toda a dramaturgia mundial. O que foi dito com espírito de humor, é claro. Mas com evidente sinceridade também.
O público em geral eu não sei, mas gostei muito da aula de Stoppard. Além de “O fugitivo”, ele a baseou em outros filmes americanos, como “Indiana Jones” e “O terceiro homem”, o que para mim foi um susto: esperava mais teatro, mais referências eruditas. Em vez disso, talvez estimulado pelo fato de ser um dramaturgo exótico para o público brasileiro, que o conhece como o roteirista de “Shakespeare apaixonado” e “A casa da Rússia”, declarou com todas as letras coisas como: “Prefiro assistir a um grande faroeste do que a um filme de arte medíocre”.
De alguma forma, é algo que a Flip precisava ouvir. Com sotaque britânico, talvez o pessoal preste atenção.
8 Comentários
SR, isso conflui ao mesmo ponto que um comentario do Nelson Motta citado ha poucos dias por voce, nao? Alias, hoje aa tarde, com o post anterior na cabeca, me peguei lendo o prologo de um livro que normalmente eu consideraria quase-lixo (na verdade, ainda que esteja fazendo e apesar desta participacao, eu o considero), lembrando da sua opiniao sobre o que disse o Nelson, e dando a mao aa palmatoria, principalmente, claro, porque no tal prologo vi arte. Agora leio mais esse “ingrediente” e me convenco ainda mais da tolice reinante sobre o que eh considerado simples entretenimento (dificil algo mais comum e convencional que “tolice reinante”, hem?). Um abraco.
Conto perdido de Machado de Assis é recuperado
Pesquisador também resgata crônicas inéditas, algumas de política outras de economia
Não fosse Machado de Assis, por definição e ‘tradição’, o mestre do mistério, do enigma – tantas são as manifestações dessas ‘artes’, assim como do subterfúgio, da dissimulação, em sua obra ficcional e não-ficcional. Por isso, nada de excessivamente surpreendente, em se tratando de Machado, a existência durante os últimos 129 anos de um conto que, publicado originalmente em seis folhetins – isto é capítulos – a 30 de julho, 15 e 30 de agosto, 15 e 30 de setembro e 15 de outubro de 1879 na revista A Estação, tinha-se conhecimento de apenas três deles, os demais completamente desaparecidos e dados como “perdidos”, daí o conto jamais ser incluído em qualquer antologia,coletânea,seleta ou edição em volume, ignorado em todas as edições,volumes,ensaios,textos,teses,documentos em torno de Machado de Assis , e apenas referenciado por José Galante de Sousa, em sua monumental Bibliografia de Machado de Assis,de 1955 , e pelo pesquisador francês Jean-Michel Massa ,que publica seus únicos três capítulos até então conhecidos na obra Dispersos de Machado de Assis, de 1965 .
Não surpreendente em excesso, mas digno das maiores significância e relevância o fato – histórico – de resgate dessa peça faltante na formidável galeria contística de Machado. O conto em apreço intitula-se “Um para o outro” e sua recuperação se deu graças a um incansável trabalho de investigação – com todas as tintas, matizes e nuances “sherloqueanas”, diz o pesquisador –pesquisa,coleta e recolha levada a cabo ao longo de seis anos por parte de Mauro Rosso, professor e pesquisador de literatura brasileira , ensaísta e escritor, e organizador da edição Contos de Machado de Assis:relicários e raisonnés .(editora PUC-Rio e Edições Loyola)
mais detalhes em
http://pandorawiki.blogspot.com
Mauro Rosso com todas as probabilidades é um dos autores mais profícuos,individualmente, de produção textual referente a Machado de Assis : conclui a preparação , para o Senado Federal (Conselho Editorial da Casa), da antologia Machado de Assis e a política : crônicas, com 381 textos machadianos , e da coletânea A ficção política de Machado de Assis [com 26 contos,8 poemas e 3 peças teatrais] – s. ed. — ambas as obras a desmistificarem a equivocadissima pecha de ‘alheio a questões de seu tempo’ atribuída a Machado , que escreveu muito sobre política da época, inclusive com comentários e ilações absolutamente atuais, ou aplicáveis à atualidade brasileira – o mesmo se dando na seara da economia, em que Machado também ‘transitou’, cujas crônicas foram levantadas e recolhidas em extensa pesquisa e organizadas, juntamente com Gustavo Franco, na edição, lançada em dezembro 2007, de Machado de Assis e a economia:o olhar oblíquo do acionista; prepara a edição especial de Gazeta de Holanda: os ‘versiprosa’ de Machado de Assis [48 crônicas em forma de verso, nunca editadas em volume isolado,e emblemáticas da fase menipéica-lucânica de Machado, característica de seu processo de evolução e inflexão consubstanciado na década de 1880] ; tem pronta a edição de Queda que as mulheres têm para os tolos : Machado de Assis,o subterfúgio, o feminino, a transcendência literária [o primeiro livro de Machado publicado,1861, pleno de elementos significativos e anunciadores,prenunciadores e antecipadores do ficcionista que viria depois]
Além disso, é – desde 2007 e neste 2008 – palestrante ‘intensivo’ sobre Machado de Assis, abordando temas como “Machado de Assis,o subterfúgio, o feminino, a transcendência literária”, “O conto machadiano”; “Machado de Assis cronista, o grande relator da vida brasileira”;“Interseções da ficção e da não-ficção em Machado de Assis”, “A evolução literária machadiana e o processo de inflexão”, “Narradores e narratários machadianos e os novos leitor-modelo e leitor-empírico criados” ”; “MA cronista, o grande relator da vida brasileira” ;“Interseções da ficção e da não-ficção em Machado de Assis”, “Machado de Assis e seu tempo: a História, a política, a economia, as questões sociais”, “A atualidade de Machado de Assis”, “Machado de Assis em chaves temáticas”;
e colaborador para revistas acadêmicas e sites de literatura, com ensaios, artigos e textos –como “Apontamentos para um estudo de Casa velha” , “Em tempo de eleições, é bom ler Machado”, “Quem tem medo do ‘feminismo’ de Machado de Assis ?”, “Machado, eterno enigma” , “As mulheres preferem os tolos ?”,“Machado de Assis cronista : o grande relator da vida brasileira”, “Machado de Assis e a política : nada oblíquo, nada dissimulado”, “ Os narradores,os narratórios e os novos leitores criados por Machado”, “O conto em Machado de Assis”.
Uau! Então foi a apoteose dos filisteus! Orgástico, para quem é do time! Mas é bom que ninguém se engane: uma coisa é Tom Stoppard se fazendo passar por filisteu, outra bem diferente seria um filisteu querendo se passar por Tom Stoppard. Resumindo: é fácil “um autor tão familiarizado com Shakespeare” recorrer a “O fugitivo” e “Indiana Jones”. Quero ver é alguém acostumado a uma dieta rala de filmes de entretenimento discorrer sobre Cymbeline ou Titus Andronicus. Aí é que a porca torce o rabo.
Nickname Reymont: algumas pessoas não entendem mesmo – nem com sotaque britânico – mas não dá para deixar passar em branco a injustiça que você comete com Tom Stoppard. Atribuir o tema de sua aula a um mero dumbing down destinado a adular a platéia é duvidar da integridade intelectual do sujeito, e foi justamente ela a maior atração da Flip. Mesmo porque um cara daquela estatura está cansado de saber que é mais fácil adular platéias de festival literário com exibições de erudição, ainda que de almanaque. Ousar falar da técnica real subjacente a todos os gêneros, daquilo que faz um drama reverberar para além de sua pretensão, é garantia de desagradar ao pessoal da alta cultura cosmética – uma turma na qual, apesar das aparências, reconheço me faltarem informações para incluir você.
Acredite: Stoppard deu uma aula para valer. Ele não diria que considera “Chinatown” a maior obra de arte americana do século 20 se não acreditasse nisso. A chave de tudo, caso você esteja realmente interessado em entender o que se passou na Tenda dos Autores aquela noite, está numa outra frase dele: “Nós (tradução: artistas de verdade) não damos prêmios para intenção, mas para realização”. Mais uma tradução: não importa muito de onde o cara parte, com que referências trabalha, Sófocles ou Ronald Golias. Importa o que ele faz com isso, aonde consegue chegar.
É assim que deve ser entendida a oposição que ele estabelece entre o grande faroeste e o filme de arte medíocre. Obviamente, a ênfase não deve ser posta em faroeste x filme de arte, mas em grande x medíocre. Deu para entender? É claro que se pode optar por esperar 200 anos pelo momento em que, como ocorreu com o teatro popular de Shakespeare, o tal faroeste for endossado pela altíssima cultura. Mas Stoppard sugere que é melhor reconhecer essas coisas logo, a partir de uma análise desapaixonada da obra em seus mecanismos internos. “Tem que ser bem feito”, ele diz. “Não damos prêmios para intenção.”
Eis porque eu disse que a Flip precisava ouvir a aula de Stoppard: no Brasil, ainda damos muitos, muitos prêmios para intenção. Herança de nossos séculos de pernosticismo, muito bem ilustrados por seu comentário, que agradeço. Mas um dia aprenderemos.
Um abraço.
Mas, Sérgio, se fóssemos premiar as grandes realizações da literatura brasileira, em vez das grandes intenções dos nossos literatos, haveria algo a ser premiado a cada ano?
Numa coisa tenho de concordar: o sujeito que consegue produzir algo decente com base em Ronald Golias, ele sem sombra de dúvida merecerá o Nobel.
Rafael, eu diria que o espírito é o seguinte: se não houver “grandes realizações” (como “O filho eterno”, de Cristovão Tezza, ano passado), premiem-se as “pequenas realizações”. Essas sempre existem, pode ter certeza. O fundamental é não deixar o virtual se sobrepor ao real, a pose ao trabalho.