Um post no blog de livros do “Guardian”, a propósito da recém-lançada edição temática da revista “Granta” sobre sexo, sustenta – meio a sério, meio brincando – que a masturbação é a última fronteira. Em outras palavras: que hoje, quando os leitores já não se chocam com quase nada, as imaginosas artes do amor-próprio sobrevivem como o último tabu literário. Segundo o autor do post, Chris Cox, muito pouca boa literatura foi feita sobre o assunto. (Cecilio Giovenazzi ficou indignado, mas deixa pra lá.) Claro que Cox cita o óbvio “Complexo de Portnoy”, de Philip Roth, como uma das exceções que confirmam sua suposta regra. Pensei em escrever para acrescentar um conto de Martin Amis, “Let me count the times”, mas imaginei que, diante do número incontável de exceções nomeáveis, isso seria perda de tempo. Por sorte, nem todo mundo pensou assim. Foi na caixa de comentários – um dos pontos altos do blog do “Guardian”, que, além de pré-cadastrar os comentaristas, faz uma boa triagem – que eu encontrei o tesouro do dia: um conto de Chuck Palahniuk chamado “Guts”, publicado na revista “Playboy” em 2004 e disponível na íntegra, em inglês, aqui. Uma pequena e crudelíssima obra-prima de…
1. Minha contribuição ao (bem-vindo) tsunami de informação provocado pela estréia iminente da “Alice” de Tim Burton, hoje na home de Cultura do iG: Inspiradas nas histórias orais que Dodgson improvisava para uma amiguinha real, Alice Liddell, de 10 anos, as aventuras de Alice são uma das obras capitais da literatura infantil, com tradução para 125 línguas. Mas são mais do que isso: a fúria com que seu autor, matemático de prestígio, empacotou ali paradoxos, charadas, jogos de palavras e neologismos garantiu-lhes um cartaz talvez até maior com os leitores adultos. James Joyce e Jorge Luis Borges estão entre os grandes escritores influenciados por Carroll, que, sob muitos aspectos, foi o maior precursor do modernismo a escrever no século 19. 2. Meu Kindle está acabando de ler “Solar”, de Ian McEwan, e gostando muito. Assim que ele me contar suas impressões finais, prometo dividi-las com os leitores. 3. Claro e informativo este artigo de Claudio Soares, intitulado “Os leitores brasileiros e o livro digital”. 4. Um dos grandes mistérios do terceiro milênio: por que será que a internet predispõe tantos leitores, que na vida real talvez sejam flores de cidadãos, ao ataque histérico e ao insulto grotesco? 5. E o…
A Penguin australiana está recolhendo e destruindo 7 mil exemplares de um livro de culinária especializado em massas, “Pasta Bible”, por causa de um erro de revisão. Um erro gravíssimo: uma receita manda adicionar ao tagliatelle salt and freshly ground black people (“sal e pessoas negras recém-moídas”) em vez de black pepper (pimenta-do-reino).
“Aloprado” é uma palavra exclusiva do português brasileiro que quer dizer “amalucado, desatinado” ou “agitado, inquieto”. Vem de “lorpa”, termo que, como “pascácio”, é hoje pouco usado mas designa com eloqüência cômica um idiota, imbecil, palerma. De “alorpado”, apalermado, se fez “aloprado” por meio de uma operação lingüística conhecida como metátese, que consiste no deslocamento de fonemas ou letras dentro de uma palavra. Esse deslocamento pode ser produzido deliberadamente por um autor em busca de efeito poético – como Camões ao escrever, nos Lusíadas, sobre “ventos contrairos” – ou ser um trabalho anônimo de gerações de falantes, como o que transformou “desvariar” em “desvairar”. “Aloprado” está no último caso. Publicado no “NoMínimo” em 26/9/2006.
O “avô dos e-books” (o honroso título lhe foi dado pelo “New York Times” neste artigo) chamava-se Bob Brown e viveu entre os anos 1930 e 1940 no Rio de Janeiro, onde fundou uma revista de negócios chamada “Brazilian American”. Seu nome completo era Robert Carlton Brown, nascido em Chicago em 1886. Trata-se de uma figuraça: autor de literatura popular, poeta, roteirista de cinema, jornalista, editor e artista de vanguarda com um círculo de amizades que incluía Marcel Duchamp e Gertrude Stein, Brown publicou em 1930 um manifesto chamado “The Readies”, em que declarava guerra ao livro de papel: A palavra escrita não acompanhou o tempo. (…) Para continuar lendo na velocidade dos dias de hoje, eu preciso de uma máquina. Uma máquina simples de leitura que eu possa carregar comigo, ligar em qualquer tomada velha e ler romances de centenas de milhares de palavras em dez minutos se eu quiser, e eu quero. A tal máquina, que chegou a ter um protótipo construído por um amigo, tinha uma fita de texto correndo por trás de uma lente de aumento a uma velocidade controlada pelo leitor. Está mais para um microfilme, mas Brown não queria parar por aí. Antevia o…
Por falar em trailer de livro, taí uma coisa bela.
Um amigo me dá a notícia que, confirmada, seria um dos mais eloquentes sinais do fim do mundo como o conhecemos: “O Google Translate virou uma ferramenta perfeita!” Como assim? Até outro dia mesmo, eu me lembrava bem, a burrice cômica dos tradutores automáticos e os textos pedregosos e repletos de armadilhas que eles produziam eram parte da paisagem virtual. Pareciam indicar um limite claro – e provavelmente eterno – para a automação, preservando uma área enorme para a ação humana: traduzir, como de resto escrever, é uma operação sofisticada demais para prescindir de um cérebro biológico, certo? E agora vinha o meu amigo, também ele escritor, dizer que o Google Translate tinha gastado rios de dinheiro em pesquisa e virado uma ferramenta perfeita! Cético, fui conferir. Logo descobri com alívio que não, o Google Translate está longe de ser uma ferramenta perfeita. Duvido que seja um dia. Mas, caramba, como melhorou! Sua relativa acurácia pode ser conferida neste quadro (em inglês) publicado mês passado pelo “New York Times”, que pega trechos em diversas línguas – inclusive de “O pequeno príncipe”, “Cem anos de solidão” e “A metamorfose” – e compara quatro traduções de cada um deles para o inglês:…
Este trecho de um atualíssimo ensaio do historiador americano Robert Darnton, intitulado O Google e o futuro dos livros e publicado no número de estréia da revista “Serrote”, dá uma boa idéia de por que o diretor da Biblioteca de Harvard é até o momento, das atrações já confirmadas pela Flip para depois da Copa do Mundo, a mais atraente: O que acontecerá se o Google privilegiar a lucratividade ao livre acesso? Nada, se eu li os termos do acordo corretamente. Somente o representante legal, agindo pelos detentores de copyright, tem o poder de forçar uma mudança nos preços de subscrição cobrados pelo Google, e não há nenhuma razão para se esperar que ele se oponha, caso os preços fiquem muito elevados. O Google pode optar por ser generoso nos preços, mas poderia também empregar uma estratégia comparável à que se mostrou tão eficaz nas publicações acadêmicas especializadas: primeiro, atrair assinantes com preços iniciais baixos, e depois, quando eles estiverem fisgados, aumentar os valores até o ponto em que o comércio suportar. (…) Ninguém pode prever o que acontecerá. Podemos somente ler os termos do acordo e imaginar o futuro. Se o Google tornar acessível, a um preço razoável, os…
A consulta vem do leitor Olney Figueiredo: Dá pra explicar o motivo do uso de “cachê” (do francês, “oculto”) como forma de pagamento de artistas? Na verdade, nosso cachê foi importado do francês cachet, que não guarda relação com o verbo cacher, “disfarçar, dissimular, esconder”. Embora possa sugerir a imagem de um pagamento envergonhado, feito na moita, o cachê não tem nada a ver com isso. A palavra cachet, cujas acepções mais antigas são “sinete, carimbo, selo”, acabou adquirindo em francês o sentido, entre outros, de remuneração dada a um artista por cada uma de suas apresentações. O caminho que percorreu para chegar a esse ponto incluiu carnês – carimbados, claro – que iam sendo destacados a cada pagamento. Publicado no “NoMínimo” em 11/9/2006.
É divertido este artigo (em inglês) de Jeanette Demain na “Salon” sobre os resenhistas amadores da Amazon que detonam clássicos da literatura. O que poderia ser até saudável – a candura de um olhar leigo servindo para balançar certos consensos enferrujados da crítica acadêmica – acaba se tornando um espetáculo deprimente em que o analfabetismo funcional (ou, nos casos menos graves, literário) se cruza com aquela disposição enfezadinha que a internet, por alguma razão, parece estimular em tanta gente. Alguns trechos selecionados por Demain: “Graças a Deus a Srta. Lee só escreveu este livro; o seguinte com certeza degradaria ainda mais a sociedade.” (Sobre “O sol é para todos”, de Harper Lee.) “Intermináveis descrições sem sentido. DESCRIÇÃO, DESCRIÇÃO, DESCRIÇÃO!!! O livro inteiro é escrito em metáforas estúpidas.” (Sobre “Jane Eyre”, de Charlotte Brontë.) “No começo eu gostei do livro. Aí ele começou a ficar um saco na altura em que Winston estava se envolvendo sexualmente com sua amiga. Eu odiei tanto o livro que esqueci o nome dela. Gostei das primeiras cento e poucas páginas, aí ficou muito chato.” (Sobre “1984”, de George Orwell.) “Rapaz, este livro é chato. Acontece um monte de coisas estranhas e é mais difícil de…
Correndo para pegar daqui a pouco o vôo para São Paulo, onde lanço hoje à noite o “Sobrescritos” na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, publico alguns links que, mesmo mal passados, espero serem capazes de preencher a cota diária de todoprosismo dos mais inveterados todoprosistas: 1. Em sua coluna (em inglês) sobre questões éticas da vida moderna no “New York Times”, Randy Cohen considera perfeitamente legítimo baixar de graça a versão digital de um livro se você já pagou por um exemplar de papel: “É como comprar um CD e depois copiá-lo para o seu iPod”. Pirateadores contumazes vão achar ridículo. Vindo de onde vem, significa muito. 2. “Quis o acaso, por exemplo, que Martin Amis, Paul Auster, Bret Easton Ellis e J. G. Ballard tivessem personagens de seus livros interpretados pelo canastrão James Spader.” Falando do livro “Da literatura para o cinema”, de Julio Alfradique e Carla Lima, Almir de Freitas cata pepitas de informação na fronteira entre duas artes que nunca deixaram de namorar – embora vivam adiando o casamento. 3. E, para completar, uma pitada de autopromoção: falando do “Sobrescritos” no Digestivo Cultural, Julio Daio Borges considera-o “um dos melhores livros de contos dos últimos tempos e…
Usar a beleza feminina para vender produtos é a mais velha das idéias publicitárias. Curioso que seja tão pouco empregada para promover livros ou o próprio hábito da leitura. Não é evidentemente irresistível o apelo de uma imagem que junta dois dos maiores prazeres da vida? (Sim, queridas leitoras: este é um post de gênero. Fiquem à vontade para adaptar o argumento com, sei lá, Paulo Zulu lendo “Out of Africa”.) O “Global Times”, de Pequim, informa (em inglês) que esta é justamente a onda do momento entre editores chineses: contratar belas modelos para, em situações de rua, aparentemente espontâneas, exibir seus dotes intelectuais de nariz enfiado num livro. Está certo que não são pequenas as dificuldades práticas por aqui. Em primeiro lugar, as editoras brasileiras quase não investem em publicidade. E convenhamos que nem toda modelo convenceria num papel desses. De todo modo, fica a sugestão para os formuladores de campanhas de incentivo à leitura. Vale ressaltar que a estratégia nada teria de gratuita: como se sabe, pelo menos quando se trata de ficção, as mulheres lêem mais que os homens. Quer ver mais mulheres e livros? O blog “Babes with Books”, de onde saiu a bela foto à…
Espero vocês lá. Até quarta!
A palavra smoking, nome daquele traje masculino formal, tem uma história curiosa. Nos EUA, onde a coisa foi inventada há 124 anos ao se suprimir a cauda do fraque, o nome da roupa é tuxedo – porque era esse o nome do clube em que foi lançada. Na Inglaterra, é dinner jacket. De onde terá saído o smoking? Veio da expressão smoking jacket, algo como “traje de fumar”. O processo de importar do inglês um adjetivo e tratá-lo como se substantivo fosse é manjado, o mesmo que deu em shopping e outdoor. Mas smoking tem algumas peculiaridades. Em primeiro lugar, smoking jacket, um estranho traje que fez sucesso na Inglaterra vitoriana, não tem nada a ver com o que hoje chamamos de smoking. Lembra mais um robe de chambre curto, com gola e punhos acolchoados. Era usado por fumantes de charuto e cachimbo para proteger a roupa do cheiro de tabaco. Por que se tomou o nome smoking jacket para nomear uma roupa muito diferente é matéria de especulação, mas tudo indica que o mal-entendido – ou coisa que o valha – aconteceu primeiro na França. O primeiro registro desse uso data de 19 de julho de 1890, na revista…
Um repórter italiano chamado Tommaso Debenedetti tem o hábito de fazer entrevistas fictícias com ficcionistas americanos – e, claro, vendê-las como verdadeiras aos jornais com os quais colabora. Philip Roth, que apareceu numa delas descendo a lenha no presidente Barack Obama (que na verdade apóia), foi o primeiro a descobrir a fraude. John Grisham e Gore Vidal vieram em seguida. Por enquanto, só Grisham declarou pensar numa ação judicial. Roth contenta-se em imaginar que a carreira do falsário acabou. Outras vítimas estão sendo procuradas e, com o “email-denúncia” que a revista “New Yorker” lançou em seu site, imagina-se que a lista ainda vá crescer muito. Não se sabe se Debenedetti, que deu um jeito de desaparecer, vai invocar algum argumento pós-moderno em sua defesa.
Certo, todos nós amamos nossos lobisomens e vampiros, mas onde estão os novos monstros do nosso tempo? Onde estão os personagens que refletem a diversidade de nossas ruas e nossas vizinhanças? Quais são as histórias que acessam os terrores da vida moderna? A Campanha pelo Medo Verdadeiro, recém-lançada na blogosfera literária britânica, seria só uma bobagem – reação ao modismo tolinho de enfiar zumbis em todos os clássicos do mundo, provavelmente – se não servisse para nos lembrar, em sua candura, que esse “onde está?” é um dos cacoetes mais idiotas da crítica cultural. Quem pergunta onde está algo que sabe não existir – mas que gostaria tanto, ah tanto, que existisse – parece sensível, inconformista e obviamente superior à mediocridade da cultura contemporânea. Na verdade, é um reacionário sem imaginação. Aquilo que busca é uma restauração, ainda que disfarçada de modernidade: no caso, a restauração do “medo verdadeiro” que as histórias de terror provocaram um dia e, em nossos tempos decadentes, que saco, não provocam mais. Uma mudança real, que crie novas formas para novos conteúdos, está fora do seu horizonte. O adepto do “onde está?” é um saudosista delirante que quer se passar por visionário. Seu epítome é…
Abaixo, a tradução caseira de um trecho publicado pelo “Guardian” de The good man Jesus and the scoundrel Christ (O bom homem Jesus e o canalha Cristo), o novo livro de Philip Pullman, que está sendo lançado depois de amanhã na Inglaterra. Na história, o autor de “A bússola de ouro” – primeiro romance de uma série best-seller cuja suntuosa adaptação cinematográfica foi interrompida após campanha da direita cristã – imagina Jesus e Cristo como irmãos gêmeos antípodas. Se Pullman estivesse falando de Alá, seria fatwa garantida. Mesmo sem sentença de morte, porém, a vida do autor tem tudo para ser difícil nos próximos tempos, como comprova o humor seco deste encontro entre Maria e o “anjo”: Naquele tempo, Maria tinha cerca de dezesseis anos, e José nunca a havia tocado. Uma noite, em seu quarto, ela ouviu um sussurro vindo da janela. – Maria, você sabe como é bonita? Você é a mais adorável de todas as mulheres. O Senhor deve tê-la favorecido especialmente para que fosse tão doce e tão graciosa, e tivesse esses olhos e esses lábios… Ela ficou confusa e disse: – Quem é você? – Sou um anjo – disse a voz. – Deixe-me entrar…