Antes de ler “Flores azuis” e “Galiléia”, eu me perguntava por que as livrarias reservam uma parte toda especial, geralmente escondidinha e acanhada, para a literatura nacional. Confesso, envergonhado, que eu via isso com alguma revolta. Um resquício de patriotismo que não saiu no banho, talvez. “Flores azuis” e “Galiléia” me deram uma explicação para este fenômeno que não é só comercial. Na verdade, tudo é muito simples: literatura brasileira, em geral, não é livro que se queira ler. É livro que se pretende estudar, analisar, discutir. Aquilo que parece um romance é, na verdade, um objeto de estudo — um livro praticamente didático. Logo, convém mesmo deixar a literatura brasileira bem separadinha daqueles livros que a gente compra porque quer lê-los à noite, antes de dormir, ou na praia. Minha sugestão é que o mercado editorial comece a lançar promoções do tipo “Compre este livro e ganhe uma tese”. Pode dar certo. Paulo Polzonoff chuta o pau do ombrellone na partida final da Copa de Literatura 2009, em que “Flores azuis”, de Carola Saavedra, derrotou “Galiléia”, de Ronaldo Correia de Brito. Disputada por livros lançados em 2008, a competição termina em 2010, mas não creio que essa morosidade crítica…
Parece gíria de malandro da Lapa carioca, talvez dos anos 20 do século passado, não parece? Alguma coisa com “gringo” no meio. Não é nada disso. O verbo – que quer dizer, como se sabe, “decair, desandar, deteriorar rapidamente” – é importado em linha direta do francês dégringoler, que por sua vez, ensina o Houaiss, saiu do holandês kringeln, “cair em círculo”. Tudo muito tradicional e, sim, globalizado: o inglês foi buscar na mesma fonte o substantivo – pouco usado, mas por isso mesmo expressivo – degringolade, “declínio rápido, colapso”. Tradução óbvia, e nesse caso também a mais correta: degringolada. Pronto, o mundo já pode degringolar em uníssono. Publicado no “NoMínimo” em 12/12/2005.
A coisa explodiu. São tantos os e-readers e tabletes sendo apresentados por estes dias no Consumer Electronics Show, em Las Vegas, que este blog, depois de acompanhar o tema do livro digital com algum interesse por tanto tempo, entrega oficialmente os pontos. Está tudo muito bom, mas vocês realmente esperam que eu me informe sobre tudo aquilo? Exerço o meu direito de Bartleby: prefiro não. Que, não por coincidência, pode ser justamente o direito fundamental que a avalanche internética tem nos feito esquecer: prefiro não. Tentarei explicar. Mas para tanto peço desculpas e cito, depois de dizer que não o faria, uma das tais engenhocas recém-lançadas, que leva o insuportável nome de “enTourage eDGe” e pode ser conferida neste vídeo. Trata-se da primeira máquina que combina e-reader com netbook – tela de tinta eletrônica de um lado, tela de cristal líquido do outro. Para que você possa, até que enfim!, ler tranquilamente seu “Guerra e paz” com o olho esquerdo enquanto, com o direito, confere emails, comenta um status ou outro no Facebook e se diverte com aquele último vídeo imperdível no YouTube. Ah, você prefere não fazer isso? Bem-vindo ao clube. Ando apaixonado pelo Kindle, e de repente fica…
A grande revista eletrônica “Words Without Borders”, a melhor fonte para literatura estrangeira em inglês, começa o ano de cara nova. Bonita e altamente navegável. Vale conferir.
Naquele primeiro post da história deste blog, para o qual criei um atalho ontem, havia um link quebrado – irremediavelmente quebrado a esta altura, soterrado nos escombros do “NoMínimo”. Trata-se de uma resenha que publiquei no já distante ano de 2004 sobre “O negro no futebol brasileiro”, de Mario Filho. Em nome da sempre interessante discussão sobre literatura & futebol, decidi republicar o texto na íntegra: Algumas mentiras, de tão repetidas, passam por verdades. Uma delas aponta o que seria uma contradição a mais da vida brasileira, entre as muitas de que o país é feito: nosso futebol, com seu incomparável apelo de massa e sua qualidade aclamada em todo o mundo, nunca produziu na literatura uma única obra à altura dessa exuberância. Trata-se de uma quase-verdade. Só é mentira, e mentira clamorosa, porque o jornalista Mario Filho lançou em 1947 – e relançou, com o acréscimo de dois capítulos, em 64 – um livro chamado “O negro no futebol brasileiro”. Não se trata apenas do “maior clássico sobre o futebol brasileiro”, como costuma ser apresentado. É o único clássico digno desse nome, a mais acabada tradução da mitologia construída por um povo – fundada ou não, sonho ou realidade,…
Quem, como eu, já estava vivo quando Pelé marcou seu milésimo gol deve entender minha sensação de que esse número redondíssimo estará para sempre associado ao futebol. Daí eu me lembrar agora, quando o Todoprosa completa mil posts – o que não é nenhum feito de craque, claro, mas ainda assim merece comemoração – de como tudo começou, em maio de 2006: com uma discussão sobre o velho tema futebol & literatura, um dos mais recorrentes em nossa imprensa literária. A coisa toda parte de uma pergunta simples, embora talvez enganosa: por que nunca produzimos um romance sobre o esporte nacional que lhe faça justiça? Aquele era um ano de Copa do Mundo, como este também é. Alguém quer apostar que a pauta vai ser ressuscitada nos próximos meses?
Todo fim de ano é assim: não sei se é essa contagem regressiva surda que pulsa em cada esquina, ou quem sabe será apenas o calor. O fato é que os pensamentos vão ficando cada vez mais soltos à medida que avança dezembro, esgarçando-se como nuvens ao vento até que, ali em torno do Natal, o estrago está feito: como o fim, de tão aguardado, parece chegar antes da hora, sem contudo trazer ainda o recomeço, instaura-se um limbo em que o non sequitur vira lei universal e já nada leva a coisa alguma – fica tudo espalhado por aí feito milhões de tweets. Deve ser por isso que o pessoal gosta de bolar listas – de melhores, de piores, de presentes, de resoluções, listas de listas de listas. Como se sabe, listas são a maneira mais primitiva – no bom sentido – de organizar o caos. Mas aí você vai atrás do bálsamo das listas e descobre que o aguado “Leite derramado” – que tem algumas páginas brilhantes de entremeio, mas é um tanto contrafeito e bem inferior a “Budapeste”, do mesmo autor – vem sendo eleito o livro do ano no Brasil. Fica confuso. Nesse limbo, até que…
O ensaio político “Anatomia de um instante”, de Javier Cercas, sobre o fracassado golpe de Estado de 1981 na Espanha, foi eleito por um time de críticos reunido pelo caderno “Babelia” o livro do ano no país – ou mais até do que isso, “uma das obras capitais da literatura de língua castelhana de nossa época”, segundo Alberto Manguel. Cercas, conhecido do leitor brasileiro por dois excelentes romances baseados em histórias políticas reais, “Soldados de Salamina” e “A velocidade da luz” (já citados neste blog, aqui e aqui), inverte desta vez – pelo que pude entender, sem ter lido o livro – o peso da balança para o lado da não-ficção. Estaríamos diante de mais um sintoma da tão alardeada crise do romance? Ou, ao contrário, de mais um sinal de que sua renovação se dá hoje no mundo inteiro – com o Brasil meio atrasado, como costuma ocorrer – no incontrolável contrabando que rola na fronteira entre os gêneros?
O livro já estava na fila faz tempo, mas o empurrãozinho decisivo veio daquele ótimo artigo de Tim Adams no “Observer”, que escala Don DeLillo como uma espécie de antípoda dos e-books. Feliz proprietário de um Kindle natalino, decidi inaugurar o aparelho com “Underworld”. Queria ver sangue. Mas não é que eles se amam?
Joe Gores é um autor americano de literatura policial que teve um livro muito interessante lançado no Brasil, pela Graal, em 1986: “Hammett”, um romance do gênero hard boiled, tão rigoroso quanto divertido, em que o detetive é ninguém menos que Dashiell – que foi mesmo detetive (medíocre) antes de virar escritor (brilhante) e mudar para sempre o jeito de escrever sobre crimes. E não é que o cara continua preso em sua obsessão? Acabo de descobrir numa retrospectiva do ano da “New Yorker” que Gores lançou em 2009, com alguma discrição, um romance chamado “Spade & Archer”, que vem a ser uma prequel – a história anterior – de “O falcão maltês”. Sim, eu sei: os mais descolados entre vocês vão dizer que ninguém agüenta mais esse papo de intertextualidade – será que depois do pós-modernismo não vem nada, não? Compreendo o enfado, mas lembro um detalhe, ou melhor, dois: Gores é um escritor de verdade; o livro não tem zumbis.
http://twitter.com/sergiotodoprosa Pois é: ano novo, vida nova.
Do latim testa, vaso de barro cozido, a testa é uma urna de argila. A testa é uma talha para vinho – apropriada, esta. A testa é também tijolo, ladrilho, telha, ou seja, a casca, o casco, a crosta. A escama. A carapaça, eis a testa. A concha. Lá dentro da concha-testa, o bicho dorme. Acorda, bicho-da-testa. Segunda-feira é fogo. Publicado no “NoMínimo” em 9/4/2007, que também caiu numa segunda-feira.
Etimologia pitoresca e sóbria ao mesmo tempo: despautério provém de “Despautère, nome afrancesado de J. van Pauteren, ou talvez latinizado Despauterius (gramático flamengo, 1480?-1520), cuja obra Comentarii gramatici (1537), confusa e rica de dislates, foi muito difundida na Europa entre os sXVI-XVII”. Tá no Uais. Despautério era um gramático cretino, gostei de saber disso. Depois, consultando Silveira Bueno, descubro que Despautério talvez não tenha sido o bobo da corte dos gramáticos que imaginei a princípio. SB cita a Larousse: “Embora difuso, obscuro e cheio de declamação, (Despautère) gozou de não pequena voga até que foi destronado pela Gramática, muito mais simples, de Lhomond”. Despautério não falava despautérios, afinal? Era apenas verboso, talvez meio obtuso, mas chegou a fazer sucesso em seu tempo? Nesse caso, quando terá surgido no caminho da palavra seu sentido tão agudo de disparate, de absurdo, do que não tem cabimento? Publicado no “NoMínimo” em 10/11/2005.
A notícia saiu hoje no blog do “Prosa & Verso” e tem algo de enigma: como é possível que o e-reader nacional Mix Leitor D, produzido em Recife, já conte (segundo Murilo Marinho, diretor da empresa que o fabrica) com 150 mil encomendas antes mesmo de ser lançado, se o mercado do livro digital, sobretudo no Brasil, ainda é um pântano de incertezas? Catálogo, por enquanto uma grande interrogação, não é. Preço muito menos. Por R$ 1.100 na versão com 3G, o aparelho não leva vantagem competitiva sobre um rival poderoso como o Kindle – cujo design, aliás, copia. É preciso ler até o fim as linhas – e sobretudo as entrelinhas – de Miguel Conde para começar a decifrar o mistério: Bom, talvez os responsáveis por essas encomendas todas pudessem explicar melhor por que se entusiasmaram tanto com o aparelho. Marinho diz no entanto que não pode revelar quem fez as encomendas, mas afirma que “a parte governamental é uma área forte”. Não só escolas, mas também “órgãos do governo” se interessaram, diz. Uma única editora está no projeto desde o início. O Mix Leitor D é desenvolvido por meio de uma sociedade entre a Mix Tecnologia e a…
Livros, instruções de uso: declarar em público que não se leu o “Ulisses” e muito menos “Em busca do tempo perdido” (isso, que antes era inconfessável, agora se faz muito porque fala às claras de alguém que, de tanto que leu, pode declarar tal ignorância sem ser tachado de burro). Jamais dizer nada de mal sobre “Uma confederação de estúpidos”, de John Kennedy Toole (a mesma regra é válida para qualquer título de Hunter Thompson, quando se está na companhia de jovens jornalistas). Evitar as seguintes discussões, por perigosas, com companheiros queridos ou amigos próximos: a favor ou contra “Psicopata americano”, de Bret Easton Ellis; a favor ou contra “As partículas elementares”, de Michel Houellebecq; a favor ou contra “As correções”, de Jonathan Franzen; a favor ou contra “As benevolentes”, de Jonathan Littell. Mencionar em qualquer encontro, pelo menos uma vez, Berger, Sebald, Pessoa. Dizer, sempre que surgir a ocasião, que Sándor Márai é chato. Dizer, com o olhar perdido no fundo de um copo, que Truman Capote era manipulador. Dizer, com um suspiro, que os romances de Cortázar envelheceram mal, mas em compensação, ah, seus contos. É uma delícia de fino humor – e sob o mais banal dos…
Já virou um clichê destacar a falta de interesse da indústria editorial americana por literatura traduzida, que responde por menos de 3% dos lançamentos literários daquele país culturalmente – quase – autista. (Um trabalho de mapeamento mundial como o da boa revista eletrônica “Words Without Borders”, que tem link permanente aqui no blog, é exceção.) A novidade imaginada pela “Quarterly Conversation” é ir além da mera lamentação e perguntar a tradutores americanos e autores estrangeiros quais livros, entre os que nunca foram vertidos para o inglês, eles consideram de tradução prioritária. O resultado completo pode ser conferido aqui e traz algumas curiosidades. Uma delas é que a maioria dos livros citados também não saiu no Brasil, um país que traduz proporcionalmente muito mais (mesmo porque, embora também autista em muitos aspectos, não anda lá muito interessado em ficção nacional). Outra é que não aparece nenhum autor brasileiro contemporâneo na relação dos entrevistados pela “Quarterly Conversation”. Em compensação, o tradutor Matt Rowe teve a idéia – que não deixa de ser excelente por ser óbvia – de incluir na lista os contos de Machado de Assis, sem dúvida um dos expoentes mundiais do gênero, que até hoje foram lançados em inglês…
A palavra “furacão” descende do espanhol huracán, que por sua vez veio do taino, língua indígena antilhana. De huracán saíram também o inglês hurricane, o francês ouragan e o italiano uragano. No entanto, como traçar a origem de uma palavra nunca dá conta de toda a sua riqueza, o Houaiss anota sabiamente que “a forma portuguesa acusa desde o início um alto grau de motivação expressiva”. Motivação expressiva? Isso. Furacão. Fúria do Cão. Publicado no “NoMínimo” em 31/8/2005.