Quem já tentou doar ótimos livros a escolas e até bibliotecas públicas e se estarreceu com o mal-humorado desinteresse do lado de lá, como se o candidato a doador estivesse pedindo um imenso favor, não vai se surpreender muito com a queima de livros promovida anteontem pela Escola Estadual Ernesto Monte, de Bauru, que um fotógrafo flagrou por acaso. O caso pode ter virado notícia, mas não foge tanto assim a um padrão nacional. O triste padrão do filistinismo. Em compensação, somos os maiores candidatos a potência mundial da vez, oba!
Este site (em inglês), que acabo de descobrir, é indicado para quem anda com saudade dos “Começos inesquecíveis”, seção deste blog que está passando por uma espécie de período sabático. Algumas das aberturas de livro que já apareceram por aqui ao longo de três anos e meio estão lá. Mas muitas das que estão lá nunca apareceram por aqui. A seleção é boa, embora excessivamente focada na língua inglesa. Na página de abertura, à esquerda, clique em “All-time favourites” para ter acesso à lista completa e, se quiser levar a brincadeira mais longe, votar no seu começo preferido. Boa diversão.
Acaba de sair, com patrocínio da Kleenex, o aguardado “Manual do cafungador de livros: teoria e prática da resistência bibliósmica” (Nova Cosac Naify, 556 páginas, R$ 2.899,00), suma teológica do movimento surgido espontaneamente nas primeiras décadas do século 21, quando multidões em todo o mundo elegeram seus aparelhos olfativos o último bastião de resistência ao então nascente livro digital. Lançado, claro, apenas em edição de papel, o livro traz um apêndice que ensina os cafungadores calouros a reconhecer os 102 aromas básicos entre os milhares catalogados pela Bibliosmia (almíscar, tanino, funghi, repolho, rolha seca, poeira do sótão, poeira do porão, urina de traça, sêmen de baleia etc.) e relacioná-los aos gêneros literários dos quais emanam. Requinte supremo: o capítulo dedicado a cada eflúvio pode ser, além de lido, cheirado. O que é talvez obrigatório, se procederem as informações de que os cafungadores lêem cada vez menos, chegando a apresentar alta incidência de analfabetismo e cegueira total ou parcial – em compensação, sua exuberância olfatométrica humilha até a dos enólogos. Cheiro de sucesso editorial no ar.
Se não há como fugir do apelo jornalístico das listas de fim de ano, ainda mais inescapável é a necessidade de fundar juízos no distanciamento histórico – um século, por exemplo. Fiel a ditames tão contraditórios, segue uma lista dos cinco mais relevantes lançamentos literários de 1909, um ano desditoso para as letras auriverdes: o primeiro sem Machado de Assis e aquele em que Euclides da Cunha foi assassinado por Dilermando de Assis (nenhum parentesco). Note-se a ausência do prolífico Rui Barbosa, que andou ocupado demais com sua campanha à Presidência da República para publicar qualquer coisa: 1. “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, de Lima Barreto. Mal saiu de cena Machado de Assis, um mulato que não se via como tal, sobe ao palco um que se vê. Publicado em Portugal, este romance, que marca a estréia literária do autor carioca, pinta o retrato de uma sociedade brasileira corrupta e racista. A primeira frase, que algum compilador do futuro poderá incluir entre seus “começos inesquecíveis”, é de uma beleza sombria: “A tristeza, a compreensão e a desigualdade de nível mental do meu meio familiar agiram sobre mim de um modo curioso: deram-me anseios de inteligência”. 2. “Zeverissimações ineptas da crítica”,…
O artigo de Tim Adams no “Observer” de ontem (em inglês, acesso gratuito) versa sobre o tema-clichê do momento, para o qual confesso que minha paciência anda curta: o futuro dos livros na era do Kindle e tal. Mas faz isso de forma brilhante – e meio perturbadora. Segue seu naco inicial em tradução caseira: Duas observações isoladas sobre literatura atraíram minha atenção nos últimos dias e se recusam a me abandonar. A primeira é de uma entrevista de Don DeLillo, autor do grande épico moderno “Submundo”. DeLillo contava como continua escrevendo numa máquina de escrever, e disse o seguinte: “Eu preciso do som das teclas, as teclas de uma máquina de escrever manual. Os braços martelando a página. Gosto de ver as palavras, as frases, à medida que se formam. É uma questão estética: ao trabalhar, tenho um senso de escultor sobre a forma que as palavras vão adquirindo.” A segunda era um anúncio local em minhas páginas amarelas sobre um “game” para Nintendo DS que contém cem livros clássicos. O cartucho vende-se assim: “A Coleção 100 Livros Clássicos transforma seu Nintendo DS numa biblioteca portátil que contém romances de leitura obrigatória de autores icônicos como Charles Dickens, Jane…
Antes de designar a venda ilegal de favores por representantes do poder público, corrupção é deterioração, decomposição física, apodrecimento. “Corrupto” vem do latim corruptus, particípio de “corromper”: é o corrompido, o podre, o que se deixou estragar. Como se vê, nossa linguagem condena a corrupção com uma veemência muito maior do que seria de esperar numa sociedade inclinada a pagar a cerveja do guarda sem pensar duas vezes. Pior: a palavra pode nos induzir ao erro quando dá a entender que a prática é uma espécie de acidente ou queda, desvio lamentável num caminho feito para ser reto e solar. E se ela estiver mais próxima de ser um sistema? Publicado no “NoMínimo” em 27/5/2005.
Quando ele fez o velho sinal de pedir a conta rabiscando o ar, o garçom – um sujeito alto e branquelo, cabelos vermelhos cortados à máquina – se aproximou com um sorriso amplo e disse: – Como tu adivinhou que eu escrevo? E em vez da conta pôs em suas mãos um manuscrito pesado, com encadernação em espiral, chamado “Carnificina”. Antes de se retirar, acrescentou: – Sou um escritor gaúcho. Claro, ele pensou, nada mais apropriado. Você vai jantar numa churrascaria em São Paulo e o garçom é um escritor gaúcho. Estava decidido a não tomar o ansiolítico – não ainda. Atraiu outro garçom, desta vez tendo o cuidado de se expressar verbalmente: – A conta! Foi então que viu entrar na churrascaria aquele famoso escritor gaúcho de meia-idade, feio como poucos, acompanhado de uma mulher jovem e bonita. Ouviu quando o casal da mesa ao seu lado comentou: – Viu quem chegou? E discerniu no sussuro dos dois os nomes estrangeirados do escritor de meia-idade e de uma jovem escritora gaúcha emergente cuja cara ele não conhecia, embora, por dever de ofício, já a tivesse lido – não era má. Sem se dar conta, acompanhou os recém-chegados com os…
Manuscritos de Stendhal, como já ocorrera este ano com os de seu conterrâneo Flaubert, caem na rede.
A informação (em inglês) é só uma curiosidade: a combalida Olivetti Lettera 32 em que o escritor americano Cormac McCarthy escreveu ao longo de quase 50 anos e cinco milhões de palavras será leiloada pela Christie’s com propósitos beneficentes nesta sexta-feira, com expectativa de sair por algo entre 15 mil e 20 mil dólares. Para mim, porém, a notícia tem sabor de madeleine. Tenho em casa um modesto museu da máquina de escrever. Além da portátil Hermes 2000 que já comprei velhinha nos anos 1980, num antiquário, mas ainda cheguei a usar, conservo a pesada Remington que herdei de meu pai, na qual batuquei meus primeiros contos adolescentes, e desde o início deste ano a estrela da companhia: uma restauradíssima Olivetti Lexikon 80 (foto ao lado), maravilha dos anos 1950 que, naquele clima de balanço universal da virada do milênio, foi eleita por um júri internacional de design a melhor máquina de escrever de todos os tempos. Mas não é essa glória mundana, ou não só ela, que a conduziu ao lugar de maior destaque no centro da sala: ao mesmo tempo sólida e macia, a Lexikon 80 era a máquina de linha na redação do velho “Jornal do Brasil”…
Luis Fernando Verissimo costuma ser esnobado como romancista por nossa crítica literária (vai sem aspas mesmo, mas falta claramente uma expressão melhor), embora tenha produzido algumas pérolas numa área em que a cultura brasileira sempre foi carente: a dos livros “leves” que as pessoas realmente lêem e que dissimulam sua sofisticação por trás da linguagem cristalina. Talvez porque essa operação seja oposta àquela que conta mais pontos em nosso meio intelectual – a dos livros “pesados” que ninguém lê e que dissimulam a falta do que dizer por trás de uma linguagem turva – Verissimo ainda aguarda uma vindicação que conceda um lugar menos marginal a, por exemplo, seu romance de estréia, o aliciante “O jardim do diabo”. Esse nariz-de-cera vem a propósito do novo livro do homem, “Os espiões”, que acaba de sair pelo selo Alfaguara. É o primeiro romance de Verissimo que não lhe foi encomendado por um editor – o que é sem dúvida auspicioso. Ontem, sem tempo para ler, abri o magro volume e dei uma espiada na primeira frase: “Formei-me em Letras e na bebida busco esquecer”. Seria uma barbada de começo inesquecível, se esta seção ainda existisse aqui. Depois conto mais. * Nota de…
O leitor José Luiz Fonseca escreve para falar de sua curiosidade sobre a palavra “escroque”, que, como ele diz, “no meio dessa crise, vejo toda hora aparecer nos textos”. De fato, escroque – “indivíduo que se apodera de bens alheios por manobras fraudulentas”, segundo o Aurélio – não é artigo que ande em falta. O Houaiss informa que a palavra, vinda do francês, chegou por aqui oficialmente em 1914. Foi naquele ano que a revista “Fon-Fon” empregou o termo pela primeira vez – ainda com a grafia “escroc”, que só seria adaptada para a atual duas décadas mais tarde. O francês, por sua vez, tinha ido buscar a palavra no italiano scrocco, “golpe, calote”. Como se percebe, “escroque” nada tem a ver, etimologicamente, com “escroto”, que numa acepção bem brasileira serve para qualificar aquele ou aquilo que é ruim, feio, mau-caráter, de mau gosto etc. Acontece que a etimologia não explica tudo. É provável que as semelhanças sonoras e semânticas entre as duas palavras tenham contribuído para que prosperasse entre nós o velho galicismo da “Fon-Fon”. Publicado no “NoMínimo” em 26/8/2005.
Atenção, editor ou autor: procurando idéias para fazer um videoclipe promocional do seu livro, esse gênero que o YouTube pariu e que vai amadurecendo velozmente? (Bom, eu meio que estou…) É sensacional essa animação aí, produzida sem uso de computador por um estúdio britânico para o New Zealand Book Council, em cima – literalmente – de um livro chamado Going west, do neozelandês Maurice Gee. Bela dica do blog que o jornalista Almir de Freitas, editor da “Bravo!”, mantém no site da revista.
O escritor italiano Antonio Tabucchi está sendo processado pelo presidente do Senado de seu país, o berlusconista Renato Schifani, que pleiteia uma indenização de 1,3 milhão de euros. O crime do escritor: ter afirmado num artigo publicado ano passado pelo jornal “L’Unità” que Schifani precisa explicar suas relações com personagens já condenados como mafiosos. Tratado com descaso pela imprensa italiana, o caso está sendo transformado na França naquilo que realmente é: uma batalha pela liberdade de expressão. O jornal francês “Le Monde” publicou na semana passada uma espécie de manifesto chamado “Nós apoiamos Antonio Tabucchi”, com a assinatura de intelectuais do mundo inteiro – entre eles Philip Roth, Orhan Pamuk, António Lobo Antunes, Mário Soares e Antonio Munoz Molina.
– Você vai passar o resto dos seus dias numa ilha deserta e pode levar um livro – ela diz. – Um só? – Um só. Qual você escolhe? Ele pensa um pouco. – Nenhum. – Como, nenhum? – Nenhum. Não vou ler, morto não lê. – Não – ela ri – quê isso, na ilha tem comida à vontade, você não morre. Só fica lá de bobeira, vivendo superbem e… lendo um livro. – Pode ser que você fique lá, lendo esse livro. Eu não fico porque me mato antes. – Se mata… – Mato, mato. Um livro só? Mil vezes a morte. Ela fica meio desconcertada porque é a primeira vez que um homem bagunça assim o seu teste, mas acaba decidindo que gostou, gostou muito, mais até do que se ele dissesse Estrela da vida inteira, Em busca do tempo perdido ou outra das respostas que ela costumava classificar como “certas”. Olhando para o homem do outro lado da mesa do restaurante, vê alguém que nunca viu antes. Pela primeira vez tem vontade de beijá-lo e pensa, sentindo uma moleza nos joelhos, que a noite promete. Enquanto isso, ele fica matutando que a idéia de um único…
Quer ser um bom escritor? O primeiro passo é não ser feliz demais, sugere uma pesquisa recente (em inglês). (Via blog de livros da “New Yorker”.)
Quem se divertiu com a embrulhada do forró, que teria vindo mas não veio de for all, como muita gente – inclusive gente professora – acredita e repete por aí, vai gostar dessa: chulé viria de shoeless (descalço). Um achado digno de rivalizar com o for all but dogs (para todos, menos cachorros) que um leitor pôs na roda para dar conta de forrobodó – palavra bem anterior à Segunda Guerra, do repertório de Chiquinha Gonzaga, o que liquida a tese da influência americana de for all: pode-se afirmar com segurança que forró é a forma reduzida de forrobodó, baile, furdunço. A teoria shoeless já foi desmentida em três golpes firmes pelo bom professor Cláudio Moreno em sua coluna (vai nas minhas palavras): o termo “chulé” nomeia um fato universal e ancestral; existe em português desde quando a influência do inglês sobre nosso idioma era muito pequena; não tem a menor correspondência de sentido com shoeless, que em sua língua significa apenas descalço – nada a ver com o olfato. O trabalho de demolição foi bem feito por Moreno, mas talvez tenha faltado dizer que, diante de for all, shoeless leva pelo menos uma vantagem: não há etimologia sólida a…
A propósito do Bad Sex Award, nosso tema de ontem, Sarah Duncan escreve (em inglês) no blog de livros do “Guardian” sobre o que faz uma cena ficcional de sexo funcionar. O assunto é interminável e, embora a moça defenda seu ponto de vista com bravura, não concordo inteiramente com ela. Como tudo mais num romance, o que dá certo ou não dá certo nada tem a ver com alguma idéia preconcebida que se possa adotar universalmente, e tudo com a moldura da obra em questão. Quem acha que descrições gráficas de sexo não podem ser excitantes nunca leu “História de O”. Mesmo assim, a ênfase de Duncan no clima, na sugestão e nas lacunas não me parece um mau conselho a quem se vê diante da tarefa insana de conjurar essa febre num monitor de cristal líquido: No meio do ato sexual eu não penso: oh, ele acaba de enfiar seu órgão pulsante em minha genitália, então por que o personagem deveria pensar tal coisa? Em vez de escrever sobre ações, eu me concentro nas reações, nas sensações mentais e físicas. Entre na cabeça do personagem e você conseguirá criar a ilusão de que, sim, aquilo é real, está…