E a relação dos finalistas do Portugal Telecom, hein? Nos seis anos de existência do galardão (os quatro primeiros, é verdade, em âmbito apenas nacional), só um português – o luso-angolano Gonçalo M. Tavares, em 2007 – ganhou o primeiro prêmio. Tem muita gente apostando que chegou a hora de equilibrar um pouco mais o jogo.
O gigantesco parque temático de Harry Potter que abrirá ano que vem em Orlando, na Flórida, leva o blogueiro Alison Flood a especular (em inglês, acesso gratuito) quais as outras obras literárias que mereceriam essa glória mundana – ele fala de C.S. Lewis e de Stephenie Meyer, tudo meio óbvio. Gostei mais quando aquele estranho parque temático de Dickens inaugurado na Inglaterra há dois anos – comentado na época aqui – inspirou em colegas blogueiros fantasias irônicas como a de um aterrorizante Castelo de Kafka. É engraçado imaginar por dois minutos o tipo de empreendimento paraliterário do gênero que poderíamos ter no Brasil se houvesse por aqui mais dinheiro para gastar/apreço pela literatura/paixão por parques idiotas – sei lá qual é a melhor alternativa. Exercício para mentes desocupadas? Provavelmente sim. Mas que parece um desperdício nunca termos podido visitar o Sítio do Picapau Amarelo, comprar um potinho de purpurina com a marca Pirlimpimpim e almoçar uma galinha ensopada no Tia Nastácia, isso parece. (Sim, dizem que aquele que existe em Taubaté é simpático, mas parece estar mais para Museu Lobato, filho ilustre da terra, do que para parque temático.)
…numa única impressora a jato de tinta, o trabalho levaria 3.805 anos e produziria uma pilha de papel de 544 mil toneladas; e outros números igualmente inúteis – aqui.
Tolstoi promoveu um massacre na última rodada: o famoso início de “Ana Karenina” teve 28 votos e deixou a emoção restrita à disputa do segundo lugar, esta sim dura. E Guimarães Rosa acabou eliminando Charles Dickens por apenas um voto. (Campos de Carvalho também teve participação honrosa. Meu preferido era Juan Rulfo, mas o que se há de fazer.) Assim, já estão classificados para a rodada decisiva, domingo que vem, os começos inesquecíveis de “Lolita”, “O estrangeiro”, “Ana Karenina” e “Grande sertão: veredas”. Da lista abaixo sairão os dois últimos finalistas. Agora é com vocês… Chamem-me Ismael. Alguns anos atrás – não importa precisamente quantos – tendo pouco ou nenhum dinheiro na bolsa, e nada que me interessasse particularmente em terra firme, decidi navegar um pouco por aí e ver a parte aquosa do mundo. É um jeito que tenho de espantar a melancolia e regular a circulação do sangue. (Herman Melville, “Moby Dick”.) Desocupado leitor: sem juramento meu embora, poderás acreditar que eu gostaria que este livro, como filho da razão, fosse o mais formoso, o mais primoroso e o mais judicioso e agudo que se pudesse imaginar. Mas não pude eu contravir a ordem da natureza, que nela…
O leitor Aian Cotrim tem uma dúvida de grafia que qualquer dicionário poderia ter sanado. Mas vale a pena falar um pouco sobre a história da palavra “luau”. Caro Sérgio, nessa semana travei uma discussão com colegas da faculdade sobre a grafia correta de uma palavra: é ‘luau’ ou ‘lual’? Defendi com todas as minhas forças a opção ‘luau’ por achar as vogais mais características da nossa lingua, porém não tenho qualquer fundamento mais organizado para embasar minha resposta. Espero que você possa responder a minha pergunta. Aian acertou, mas pelas razões erradas: “nossa língua” não tem nada a ver com isso. Provavelmente devido ao fato de “luau” ser uma festa praiana de estilo havaiano que ocorre à noite, muita gente acha que a palavra tem alguma relação com “lua”, “luar”. A pista não poderia ser mais falsa. “Luau” vem do havaiano lu’au, que, antes de nomear por extensão também a festa, era apenas o nome de um prato típico servido nessas celebrações – folhas de taro, um tipo de inhame, cozidas com leite de coco. Publicado no “NoMínimo” em 16/4/2007.
“Seu cachorro é gay?”, “Guerra nuclear: o que você pode ganhar com ela”, “Torne sua casa à prova de bombas”, “A vagina mal-assombrada” (“É difícil amar uma mulher cuja vagina é um portal para o mundo dos mortos”, diz a apresentação), “Caixões: faça você mesmo”, “Origami de toalha”, “A termodinâmica da pizza” e o sensacional “Como sobreviver a uma revolta dos robôs” (foto ao lado) são alguns dos títulos disponíveis na recém-criada seção de livros esquisitos do sebo online AbeBooks.com. Vale fazer uma visita com calma. (Via blog de livros do Guardian.)
Enquanto o livro não vem, e para não fugir do assunto de ontem, reedito um Sobrescrito publicado em fevereiro do ano passado: Conheceram-se na oficina de ficção coordenada por um escritor de barba espessa e fama rala. O que primeiro chamou a atenção dela foi a qualidade do diálogo que ele conseguia escrever, vozes se cruzando com uma espontaneidade e um fio inacessíveis a ela, aos outros alunos e talvez até, quem sabe, ao professor. Já a atenção dele foi despertada primeiro por aquele olhar, o olhar morno e lento que ela ficava revezando entre ele e seus próprios pés, como se seu pudor viesse em ondas, enquanto o ouvia ler em voz alta o diálogo habilmente plagiado do Sabino. Foi depois desse dia, a princípio num espírito de retribuição mas logo com curiosidade genuína, que ele expandiu sua atenção dos olhos para o texto, e não demorou a se impressionar com a força dos adjetivos luxuriantes que ela espalhava aqui e ali numa narrativa de resto seca, feito plantas carnívoras de estufa em vasos perdidos no deserto. Não é incomum, especialmente em ambientes artificiais como o de uma oficina de ficção, que metáforas ganhem vida: ele logo descobriu que…
Para quem nunca estudou letras nem gostou de ler crítica, é a chance de ter contato, mesmo que resumido, com as principais técnicas, discussões e correntes da história da literatura. Parece burocrático, mas evita a tentação de reinventar a roda. (…) Para quem está ansioso por mostrar seu trabalho, é a chance de evitar jogá-lo sem filtro num blog ou livro pago do próprio bolso, o que no futuro será fonte de culpa e horror. (…) oficina não dá talento a ninguém, e sim melhora a técnica, que é o instrumento para levar o talento à página em branco. Não imagino como possa acontecer o contrário, isto é, as aulas castrarem o potencial de alguém. O escritor gaúcho Michel Laub, que lançou este ano o romance “O gato diz adeus”, é freqüentemente citado como argumento vivo em defesa das oficinas literárias por ter passado, como Cintia Moscovich e Daniel Galera, pelas aulas de Assis Brasil. Agora ele verbaliza o argumento e o desdobra em dez partes, nesta lista sensata publicada pelo jornal “Zero Hora” e republicada em seu blog. Nunca passei por oficina nenhuma, mas tendo a concordar com tudo ou quase tudo. Bom motivo para soprar as brasas da…
Os começos de “Lolita”, de Vladimir Nabokov, e “O estrangeiro”, de Albert Camus, empatados, foram os mais votados pelos leitores do Todoprosa na chave de domingo passado e estão classificados para a rodada final. Da segunda chave, hoje, sairão mais dois começos inesquecíveis – e quem, voluntariosamente, tiver escolhido por antecipação algum dos candidatos da lista abaixo deve fazê-lo de novo, pois só agora esses votos serão computados. Domingo que vem rola a última rodada classificatória. Bons sufrágios! Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira. (Leon Tolstoi, “Ana Karenina”.) Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. (Guimarães Rosa, “Grande sertão: veredas”.) Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris. (Campos de Carvalho, “A lua vem da Ásia”.) Você vai começar a ler o novo romance de…
Subornar vem de sub + ornar. Ornar deriva do latim ornare – “fornecer, equipar, armar, aparelhar, preparar, embelezar, ornar, distinguir, honrar”, segundo o Houaiss. Trata-se de um verbo um tanto culto, mas ainda vivo como sinônimo menos freqüente de enfeitar, adornar, ornamentar, ataviar, emperiquitar, empetecar. Subornar é, na origem, pôr uma pulseira de ouro no subornado, um brinco de brilhante em sua orelha, uma gravata italiana em seu pescoço. Até aí faz sentido, mas… por que o “sub”? Justamente pelo caráter sorrateiro, dissimulado da operação. O prefixo “sub”, aqui, tem o mesmo sentido que exibe no adjetivo “sub-reptício”: denuncia ação furtiva, aquela que só é praticada quando se imagina que ninguém – ou, em termos mais modernos, nenhuma microcâmera – está de olho. Publicado no “NoMínimo” em 1/7/2005.
Na primeira missa do dia, ouviu o coro entoando o mais estranho dos latinórios: Membrum virile, mulier super virum, vas naturaaaalis… Vas prepooosterum! A voz de Alfombra ficou martelando em seus ouvidos as obscenidades extraídas de autos brutais pelo resto da manhã. Ocorreu-lhe a certa altura que o gordo ancião trocaria de bom grado uma galeota repleta de tonéis de vinho verde pelas confissões encadernadas em letra de fôrma. Vas prepooosterum! Lembrou-se que na noite anterior sonhara com Santo Agostinho, um Santo Agostinho invertido que começava a vida impoluto e a terminava se esbodegando em todas as orgias. No fim, Frei Alfombra o passava no espeto. Havia um outro condenado, Glauceste. Antes de marchar para a fogueira, o grande árcade soprara em seu ouvido: – É esta a nobre causa, Simão! Presta atenção: é esta a verdadeira Inconfidência! A edição F – isto é, a sexta – da bela revista de contos trimestral “Arte e Letra: Estórias” (96 páginas, R$ 18,50) traz um conto inédito meu, “Vas preposterum”, uma fantasia cívico-pornográfica ambientada em Vila Rica no tempo da Inconfidência Mineira. Lá estou na excelente companhia de, entre outros, William Faulkner, Antonio Tabucchi, Arthur Conan Doyle, Ryûnosuke Akutagawa, Luiz Vilela e…
O que os livros “A condição humana”, de André Malraux, “Killer in the rain”, de Raymond Chandler, “Christine”, de Stephen King, e “The complete shorter fiction”, de Virginia Woolf, têm em comum? Foram todos lançados no ano de 1899, segundo o Google Book Search. Onze anos depois de “A fogueira das vaidades”, de Tom Wolfe. E o pior é que esse tipo de disparate está muito longe de ser raro na Biblioteca Universal do Google, que chega a extremos bibliográficos hilariantes como o de classificar uma edição de “Moby Dick” na rubrica Computação – informa Geoffrey Nunberg em artigo (em inglês) publicado pelo “Chronicle of Higher Education”. Sim, em breve todo o conhecimento produzido pela humanidade estará online. Resta saber a que preço. (Via Arts & Letters Daily.)
Vejam Cormac McCarthy, que por anos parecia ser o mais velho modernista vivo em cativeiro, mas que inaugurou sua fase madura com um romance sobre um serial killer e o seguiu com uma obra de ficção científica apocalíptica. Vejam Thomas Pynchon – em “Inherent vice”, ele trocou suas pesadas acrobacias verbais de sempre pela estrutura mais manejável de um romance de detetive hard boiled. Esse é o futuro da ficção. O romance está finalmente despertando de um cochilo de pedra de cem anos. As velhas hierarquias de gosto estão desmoronando. Os gêneros se hibridizam. A balança do poder está deixando de pender para o escritor e voltando para o leitor, e pactos com o gosto do público vão sendo feitos por toda parte. O lirismo está em declínio, enquanto o suspense, o humor e o ritmo se livram de seus estigmas e assumem o lugar de tecnologias literárias centrais do século 21. De objeto de arte solene e hermético, o romance vai desabrochando em algo mais aberto e casual: uma literatura do prazer. Os críticos terão que acompanhar a mudança. Essa nova linhagem de romances é resistente à interpretação, mas não da forma como a escola modernista era. São livros…
Em quase três anos e meio de Todoprosa, foram tantos os Começos Inesquecíveis que já me esqueci de uma parte deles. Talvez tenha chegado a hora de, como dizem em sala de aula, recapitular a matéria. Domingo que vem a seleção continua. E quem sabe, os leitores se animando, a gente possa eleger aqui, no fórum da caixa de comentários, o mais inesquecível entre os inesquecíveis? Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta. (Vladimir Nabokov, “Lolita”.) Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. (Gabriel García Márquez, “Cem anos de solidão”.) Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames”. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem. (Albert Camus, “O estrangeiro”.) Era uma vez e uma vez muito boa mesmo uma vaquinha-mu que vinha andando pela estrada e a vaquinha-mu que vinha andando pela estrada encontrou…
Se passarmos a fita da história ao contrário vamos presenciar, numa daquelas eras que antigamente se chamavam de priscas, o encontro da palavra “gravata”, acessório polido do vestuário masculino, com a palavra “croata”. Veremos então que os dois vocábulos, um tanto surpresos, se apalpam, se cheiram – e se fundem. A cena se passa bem longe dos salões urbanos em que a gravata brilharia: o que vemos ao fundo, contra o céu roxo, são colunas de fumaça numa paisagem sangrenta de trincheiras. Pois é. A “gravata”, que, já perfumada, nos chegou do francês cravate na virada entre os séculos 17 e 18, antes disso (passando a palavra ao filólogo Silveira Bueno) “veio para o centro da Europa trazida pelos cavaleiros croatas, durante as guerras com a Alemanha desde 1636, depois pelos mercenários croatas dos reinados de Luis XIII e XIV, que compunham o regimento Royal Cravate. A forma primitiva foi o eslavo hrvat passada a um dialeto alemão Krawat”. Simplificando a prosopopéia: os soldados croatas tinham o costume de amarrar no pescoço uma tira de tecido que, vejam só, caiu no gosto dos europeus urbanos. Entre os alemães, o acessório se tornou conhecido também como “croata”, em versão dialetal. Que…
Caso raro de filantropo cultural na história do país, Lírio Stuckert, o hoje sessentão herdeiro do império de mineração Stuckert, sobe ao palco com passos lentos, caminha até o microfone instalado sobre um púlpito de madeira de lei e, varrendo o auditório lotado com um olhar vago, pigarreia meia dúzia de vezes. Após trinta anos de expectativa, o famoso Desafio Stuckert está prestes a chegar ao fim. Como sabe qualquer um que não viva em Marte, Lírio Stuckert deixou para trás em 1979, ao completar 33 anos, uma juventude boêmia rascunhada no submundo internacional das artes moderninhas – entre São Paulo, Paris, Nova York e Tóquio – para dedicar os anos mais produtivos de sua vida e uma gorda fração de sua fortuna à procura do mais valioso e mitológico dos diamantes: o Escritor Genial Inédito, criminosamente ignorado pelas editoras e perdido nos confins deste Brasilzão. Ao longo de três décadas, a Fundação Stuckert recebeu 1.528.777 originais que, garante seu patrono, foram todos lidos com lupa, linha a linha, por uma equipe eclética de especialistas e não-especialistas, de pós-doutores a diletantes renomados. E agora, diante de representantes de toda a imprensa nacional, Lírio Stuckert está finalmente anunciando o resultado da…
“Édipo Rei” – Cotação média dos leitores: Quatro estrelas. Sófocles é um autor satisfatório que escreve numa prosa clara e ágil. Os jovens em especial podem aprender bastante imitando o Sr. Rei, até o momento em que ele sai um pouco dos trilhos perto do fim. Nada que vá fazer o chão tremer, mas a coisa tem tutano. Devo admitir que ainda estou meio confuso com a subtrama bizarra envolvendo a mãe do Sr. Rei. O satirista americano Joe Queenan consegue alguns momentos divertidos ao imaginar, no Wall Street Journal (em inglês, acesso gratuito), como seriam as resenhas de certos clássicos se em sua época já existissem os leitores da Amazon. Nada que vá fazer o chão tremer, mas… (Via Arts & Letters Daily.)