Ele vai com seu pai a Newlands porque o esporte – rúgbi no inverno, críquete no verão – é o mais forte laço sobrevivente entre eles, e porque atravessou seu coração como uma faca, no primeiro sábado após seu retorno ao país, ver seu pai vestir o casaco e, sem uma palavra, sair na direção de Newlands como uma criança solitária. Seu pai não tem amigos. Ele também não, embora por razões diferentes. Tinha amigos quando era mais jovem; mas esses velhos amigos estão agora dispersos pelo mundo e ele parece ter perdido o jeito, ou talvez a vontade, de fazer novos. Assim, viu-se arremessado de volta a seu pai, e seu pai arremessado de volta a ele. Como vivem juntos, aos sábados se divertem juntos. É a lei da família. Atenção, coetzeemaníacos: o New York Review of Books – que resenha muito mais ficção do que a publica, mas nos últimos anos tem andado mais soltinho – antecipa um trecho (de onde traduzi os dois parágrafos acima) do próximo romance do homem, chamado Summertime, que sai em breve por lá.
A Flip 2009 – que para mim e muita gente foi uma das melhores da série, logo atrás da edição de 2004 – vai começando a desbotar em contato com a realidade, que aliás não existe, como proclamou por lá um autor que agora não recordo. E se a memória, como sabemos, tem uma vontade própria e meio insondável na hora de decidir o que será guardado e o que será posto fora, não custa fazer um exercício de futurologia para tentar antecipar algumas cenas e ditos públicos que têm tudo para ficar arquivados anos a fio, em meio aos muitos prazeres de que o fim de semana prolongado foi cheio. Por exemplo: alguém chamando o debate-lavanderia entre a artista francesa Sophie Calle e seu ex, Grégoire Bouillier, de “Márcia Goldsmith na Casa do Saber” – perfeito. Ou o historiador inglês Simon Schama, sessentão alucinado, se escangalhando de dançar, com direito a longas sessões de air guitar, na festa promovida pelo portal Saraiva na Casa de Cultura, sábado à noite. A mesma festa em que Alex Ross, crítico de música clássica da “New Yorker”, arriscou um rebolado ao som de Sidney Magal. Mas talvez o melhor de tudo seja a…
Depois do discurso com certo ranço de ensaiado de Gay Talese, o português António Lobo Antunes pôs a Flip 2009 no bolso ontem à noite. Com o humor dos grandes mal-humorados e aquela marra que é só dele mesmo, lançou ao auditório abarrotado da Tenda dos Autores uma quantidade acachapante de boas tiradas, anedotas e epigramas. Foi impossível colher tudo, mas aí vão alguns: “Um bom livro se faz sozinho. Só o que você tem que fazer é tornar sua mão feliz. Se a mão está feliz, o livro sai fácil.” “Quem quer ser escritor deve ver dez minutos de Garrincha a jogar bola. Didi é a cabeça e Garrincha é a mão. Para escrever, você precisa ter Didi na cabeça e Garrincha na mão.” “Escrever é sobretudo corrigir e reescrever. Você tem que ter uma atitude muito humilde em relação ao material. A prosa tem problemas oficinais e técnicos muito grandes. É óbvio que isto é um ofício, como o de pedreiro ou cirurgião.” “Há livros que gosto de ler mas não gostaria de ter escrito: Gabriel García Márquez, Graham Greene, Simenon…” “Só tenho um lema ao escrever: impor a mim mesmo desafios impossíveis. A divisa de um escritor…
Observações avulsas num fim de tarde de sábado, enquanto Gay Talese não sobe ao palco: Cristovão Tezza e o mexicano Mario Bellatin fizeram uma mesa estranhamente desequilibrada ontem à tarde. O brasileiro, que veio à Flip a bordo de um veículo raro – um best-seller aclamado pela crítica – chamado “O filho eterno”, se viu escalado no papel de coadjuvante do convidado estrangeiro, uma figura certamente curiosa, com sua prótese em forma de falo no braço direito, para quem o mediador, Joca Reiners Terron, levantou cerca de 70% das bolas. Senti algum desequilíbrio também na mesa que Milton Hatoum e Chico Buarque dividiram ontem à noite. Neste caso, não por falta de balanço entre os dois, que mostraram entrosamento ao se acusarem mutuamente de plágio (brincadeirinha), mas por uma concentração excessiva das perguntas do mediador Samuel Titan Jr. em detalhes de concepção e feitura de seus livros. Sobriedade e gentileza demais podem atrapalhar. Nada se perguntou a Milton, por exemplo, sobre sua polêmica condenação dos blogs literários. Nem se procurou saber de Chico como encara as críticas de machadianismo pesado feitas à sua novela “Leite derramado”. Conclusão provisória, para a qual contribuem ainda as ótimas entrevistas feitas por Silio Boccanera…
A química da mesa de Atiq Rahimi e Bernardo Carvalho, no fim da manhã de hoje, não foi das mais potentes. Mas houve um momento em que, discordando, o afegão-francês e o brasileiro, dois bons escritores, iluminaram uma questão interessante sobre a circulação de livros e idéias pelo mundo: “Não existe uma literatura universal”, disse Bernardo, autor de romances em que o elemento estrangeiro é crucial, como “Mongólia” e “O filho da mãe”. E explicou: “Existe uma guerra geopolítica de imposição de literaturas. Na China, onde estive antes de escrever ‘Mongólia’, não existe o menor interesse pela literatura brasileira. Acho que ela nem seria compreendida lá, caso fosse lida. Posso estar sendo pessimista, mas vejo cada vez mais uma política de fechamento, cada bloco cultural defendendo seus interesses.” Respondeu Rahimi, cujos relatos baseados em seu passado afegão encontraram excelente acolhida na França (Goncourt incluído) e em outras partes do mundo: “Não digo que todos os escritores do mundo escrevam da mesma forma, mas que todos somos seres humanos. Temos em comum nossos limites em relação à morte, à família, ao amor. Li ‘Os Miseráveis’ quando tinha 14 anos, quando não sabia nada da França, e foi uma revelação.” Dirigindo-se ao…
Richard Dawkins, entrevistado com muita competência por Silio Boccanera, foi – como estava programado – a grande atração de quinta-feira. Articulado e com aquela fala claríssima dos ingleses educados, Dawkins me surpreendeu pela serenidade com que expõe seus pontos de vista, bem diferente do estilo inflamado de Christopher Hitchens, por exemplo, com quem vem dividindo o palco de uma certa cruzada ateísta. Foi engraçado quando ele disse que o fato de os cérebros humanos terem crescido enormemente nos últimos três milhões de anos não significa que essa tendência evolutiva se manterá nos próximos três milhões de anos. “Para isso, seria necessário que as pessoas cabeçudas continuassem a ter mais facilidade de se acasalar do que as pessoas não cabeçudas, o que já não parece ser o caso”, disse. Não fora de Parati, pelo menos. Ah, eu tinha prometido mais notícias sobre a mesa “Verdades inventadas”? Tinha. Mas descubro agora que é impossível resenhar um evento do qual participei, a não ser para dizer que correu tudo bem, muito bem, e que o alívio que sobreveio foi comemorado com um Cohiba.
Primeiro dia de Flip, e a melhor notícia – além de que as coisas estão funcionando conforme o previsto, tudo calmo no front – é a temperatura agradavelmente tropical que resistiu ao cair da noite, coisa inédita por aqui em minha experiência: normalmente, mal o sol se esconde, o inverno de Parati exige casacos e pulôveres imediatamente, por maior que tenha sido o calor durante o dia. Não foi o caso desta quarta-feira. O show de Adriana Calcanhotto, daqui a pouco, promete ser o primeiro da história da Flip a ser degustado em mangas de camisa. Um bom prenúncio – apesar das previsões de chegada de chuva pesada, que variam entre amanhã e sábado, agourarem ruas enlameadas e um certo mau humor generalizado. Mas no momento, sentindo a brisa morna que assovia na boca da baleia branca alegórica que domina a Praça da Matriz – e que a princípio eu achei que fosse Moby Dick, mas é a do Pinóquio, que branca não era – meu ceticismo em relação aos meteorologistas é invencível. Amanhã é dia de encarar o público, o que é sempre uma provação, mas a esta altura parece um preço justo a pagar. Acho promissora a mesa…
Amanhã de manhã estou indo para a Flip, minha quinta em sete anos. Esta é diferente para mim. Em 2004 trabalhei como mediador em duas mesas – a de Jeffrey Eugenides com Jonathan Coe e a de Luiz Vilela com Sérgio Sant’Anna – mas é a primeira vez que, como autor convidado, viro uma vidraça propriamente dita. Vou abrir mão da piadinha previsível sobre telhado de vidro e escassez capilar, mas não posso fugir da constatação de que isso mudará um pouco o jeitão da cobertura que os leitores do Todoprosa – como todo ano – encontrarão aqui. Para começo de conversa, a agenda de um convidado tem lá suas incompatibilidades com a de um blogueiro integralmente dedicado a produzir posts em série. O que importa é dar aqui a notícia de que o blog vai continuar aberto e funcionando, com pelo menos um post por dia, diretamente das ruas de Parati. Talvez se pareça mais com o diário de um autor na Flip do que com uma cobertura convencional, o que pode ser uma variação interessante no cardápio todoprosaico. Seja como for – e quem quiser suspirar de alívio, pode – não me vejo gastando muitas linhas para resenhar…
Foi no verão de 1994, já faz agora mais de seis anos, que ouvi falar pela primeira vez do fuzilamento de Rafael Sánchez Mazas. Três importantes acontecimentos tinham então acabado de se produzir em minha vida: meu pai havia morrido, minha mulher me abandonara e eu abandonara minha carreira de escritor. Minto. Dessas três ocorrências, as duas primeiras eram exatas, exatíssimas; a terceira não era tanto assim. Na verdade, minha carreira de escritor nunca decolou; portanto, dificilmente poderia tê-la abandonado. Grande parte do apelo do romance “Soldados de Salamina”, sucesso internacional do espanhol Javier Cercas (Francis, 2002, tradução de Wagner Carelli), está no seu jeito – despretensioso só na aparência – de alternar constantemente o foco entre a História (mundial) e uma história (pessoal). O efeito ganha profundidade ao longo de 240 páginas, com outro par de opostos – realidade e ficção – para complicar. As primeiras linhas do livro expõem todo o projeto como miniatura. Publicado em 10/12/2007.
Com o fim da “Revista da Semana”, da editora Abril, a coluna que eu escrevia lá e republicava aos sábados no Todoprosa está momentaneamente suspensa. Mas a etimologia não vai sair do ar aqui. Começo hoje uma série retrospectiva sobre “lendas etimológicas”, aquelas historinhas engraçadas ou curiosas – embora provavelmente falsas – que muita gente ajuda a espalhar, inclusive autores de livrinhos populares sobre a origem das palavras. Garimpado no arquivo que “A palavra é…” acumulou em sua primeira encarnação, entre 2004 e 2007, quando era uma coluna diária no site NoMínimo, o texto abaixo foi publicado em 29/8/2005: A origem da palavra “larápio” é um dos maiores motivos de quebra-pau entre os estudiosos da etimologia. Vale a pena perder algum tempo com o assunto: ainda que a palavra – que, como se sabe, quer dizer ladrão, gatuno – não tivesse triste atualidade, a controvérsia que provocou e ainda provoca seria o bastante para lhe garantir um interesse didático. Especialmente num momento em que certa “etimologia de almanaque”, que privilegia sempre as teses engraçadinhas sem consideração por sua consistência histórica, faz tanto sucesso editorial. O respeitado etimologista brasileiro Antenor Nascentes foi buscar num livro popular chamado “Frases e curiosidades latinas”,…
Tenho 140 caracteres para lhes provar que minha mulher me traiu sordidamente com meu melhor amigo, depois passo à “História dos Subúrbios”. Dois calouros da Universidade de Chicago venderam para a Penguin a idéia de um livro chamado “Twitterature”, que vai recontar alguns dos maiores clássicos da literatura mundial “em vinte tweets ou menos”. Rapazes prolixos: por que não em um? Virei chefe de homens, Deus esteja. Sou pactário? Mas Diadorim depois que morreu era mulher, mire e veja, viver é muito perigoso. Travessia.
Parabéns, gafanhoto. Você passou por todas as fases básicas do curso com louvor, sem dúvida um dos melhores aspirantes que já tive o prazer de treinar. Obrigado, mestre. Principalmente na questão da voz narrativa, no domínio do discurso indireto livre, nos exercícios de stream of consciousness, embora, como eu já disse outras vezes, ainda precise melhorar nos diálogos e na caracterização dos personagens. Eu sei, mestre. Estou trabalhando nisso dia e noite. Vai com calma, o aperfeiçoamento vem com o tempo. Na boa, não tenho mais nada a ensinar a você no Módulo Básico. O que significa dizer que está na hora de entrarmos no Módulo Avançado. Jura, o misterioso Módulo Avançado? Já? Podemos começar hoje. Caramba, que sinistro! Desculpe se pareço nervoso, mestre. É que desde o início do curso o Módulo Avançado é uma tremenda caixa-preta, sempre me intrigou por que no currículo ele só aparece assim, M.A. Nem as matérias eu sei quais são. Porque só quem já tem alguma estrada pode acessar essa informação, rapaz. Por acaso deixam um médico residente fazer cirurgia cerebral? O risco de usar mal as ferramentas do Módulo Avançado é enorme. Entendo. E que ferramentas são essas? Um pacote gigantesco de…
O site canadense Revenge Lit está organizando um concurso de minicontos (em torno de 250 palavras) com um tema que muita gente vai considerar irresistível: escritores que matam críticos literários. Confesso que não é um desejo que um dia eu tenha entretido – nunca fui além do impulso devidamente refreado de uns cachações – mas pode ser uma iniciativa saudável. Não disse o tio Nelson que “o personagem é vil para que não o sejamos”?
Me chamem de Ismael. Alguns anos atrás – não importa precisamente quantos – tendo pouco ou nenhum dinheiro na bolsa, e nada que me interessasse particularmente em terra firme, decidi navegar um pouco por aí e ver a parte aquosa do mundo. É um jeito que tenho de espantar a melancolia e regular a circulação do sangue. Sempre que me pego ficando amargo, mandíbula tensa; sempre que em minha alma se faz um novembro chuvoso e cinzento; sempre que me vejo detendo involuntariamente o passo diante de agências funerárias e seguindo a cauda de todo cortejo fúnebre que encontro; e especialmente sempre que minha hipocondria leva a melhor sobre mim de tal forma que só um forte princípio moral me impede de sair à rua e, deliberadamente e com método, aplicar murros na cara dos passantes – nesses momentos, sei que está na hora de me fazer ao mar o mais depressa possível. Há uma única e melancólica razão para que o início de “Moby Dick”, de Herman Melville, o começo mais “inesquecível”, citado e parodiado da literatura americana, tenha demorado quase dois anos para vir parar nesta seção: a insistência com que os tradutores brasileiros que conheço vertem a…
Êxito, todos sabem, é sinônimo de sucesso, triunfo. Não foi sempre assim. É ilustrativo – não só da vivacidade mutante das palavras, mas também do quanto há de relativo nos sucessos e fracassos – pensar que o seu sentido hoje dominante nasceu como forma reduzida de “bom êxito”. A princípio, êxito queria dizer apenas resultado, conseqüência, termo, sem qualificação. Designava o lugar ou estado a que se chega ao fim de determinado processo. O êxito podia – e ainda pode, pois não se trata de modo algum de uma acepção arcaica – ser bom ou mau, péssimo ou excelente, dependendo da situação. A própria palavra sucesso, que de início designava apenas um fato, uma ocorrência, passou por processo semelhante. Que está longe de ser incomum: a qualidade está aí para provar. Em sua primeira acepção o termo é neutro, mas diz-se informalmente, o tempo todo, que algo é “de qualidade” – e ninguém tem a menor dúvida sobre o caráter elogioso da expressão. No latim exitus, o sentido original é ainda mais estrito: a palavra significa saída ou ação de sair. A medicina antiga usava o termo preferencialmente para funções fisiológicas, para tratar das “fluxões que fazem êxito para fora…
Que conselho o senhor daria a alguém que deseja dedicar-se à literatura no papel de escritor? Meu conselho-padrão, que muita gente acha que é piada mas é sério, costuma ser o seguinte: desista se for capaz. O mundo da literatura parece charmoso e tal, mas a verdade é que o jogo é muito duro e nem sempre leal, as recompensas são fugidias e as chances de fracasso – não só comercial, mas estético mesmo – estão todas contra você. Agora, se depois de considerar tudo isso o sujeito ainda for incapaz de desistir do seu plano maluco, então é escritor mesmo, e nesse caso todos os conselhos se tornam fúteis. Cada um tem que encontrar seu próprio caminho. Ler muito, ler tudo, e não ter pressa demais de publicar talvez sejam recomendações úteis. Arranjar um jeito de sustentar seu “vício” também me parece um bom toque. A menos que seja rico de berço ou de baú, um escritor deve ter outra profissão, sob pena de ser levado pela ânsia do profissionalismo a vender seus escritos cedo demais, tornar-se um marqueteiro juramentado ou sair à caça de bocadas estatais – e nada disso é muito saudável para aquilo que realmente importa,…
O Brasil não está a fazer o que Portugal está a fazer, por exemplo. Portugal tem o Instituto Camões cujo objetivo é exatamente o de promover a língua portuguesa no mundo e o Brasil não tem nada equivalente. O Brasil, por exemplo, não dá apoio às traduções de seus autores no estrangeiro. Portugal tem uma política eficiente de apoiar tradução, apoiando inclusive autores africanos também e o Brasil não tem esta política. De vez em quando, a Biblioteca Nacional apoia uma ou outra tradução, mas não há uma política definida. O Brasil tem que fazer isso. O Brasil tem que entender que a cultura traz muito dinheiro ao país. (…) Tem que compreender que sua afirmação no mundo passa também pela afirmação da língua portuguesa e tem que criar estruturas de promoção da língua e tem que começar a apoiar seus escritores, seus cantores e seus músicos. Sei que ninguém gosta de ver um estrangeiro apontando mazelas aqui dentro, mas está certíssimo o escritor angolano José Eduardo Agualusa, em entrevista à Rádio ONU. É imperdoável a miopia oficial para ações de afirmação cultural num momento em que o Brasil, embalado pela onda BRIC, quer ser reconhecido como potência mundial. Faltam…