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Pingos de ‘Leite’
NoMínimo / 26/05/2009

Com o tempo aprendi que o ciúme é um sentimento para proclamar de peito aberto, no instante mesmo de sua origem. Porque ao nascer, ele é realmente um sentimento cortês, deve ser logo oferecido à mulher como uma rosa. Senão, no instante seguinte ele se fecha em repolho, e dentro dele todo o mal fermenta. São trechos lapidares como esse, prontos para ascenderem da página contingente que temos diante do nariz ao repositório atemporal da sabedoria do idioma, que sustentaram meu prazer de ler “Leite derramado” (Companhia das Letras, 196 páginas, R$ 36), a nova novela – sim, novela, novelíssima, não romance – de Chico Buarque. Na estrutura, no arco tensionado da narrativa, sou obrigado a discordar da maioria dos exegetas e considerar “Budapeste” um livro muito mais instigante e coeso. Mas, se o leite às vezes fica meio aguado, não me parece um prêmio de consolação banal dizer que certas páginas ou frações de página exibem uma prosa que ousa passar uma cantada na perfeição, coisa rara na literatura brasileira contemporânea. Imagine-se que, ao trecho anterior, segue-se a comicidade do seguinte, para ter uma idéia do pêndulo que move todo o livro: O ciúme é então a espécie mais…

Começos inesquecíveis: Cristovão Tezza

Tentei de novo falar com você esta madrugada, mas o quintal estava povoado de lobos ganindo contra minha sombra. As feras da tua família são estúpidas o tempo todo, numa insistência que me impressiona. Vou matar todos aqueles bichos, aquelas cadelas negras, apesar da admiração que nutro pelas bestas puras. É um cerco medieval, minha musa de castelo. E como de tudo faço literatura, graças à fidelidade com que desprezo a vida e conforme minha incapacidade aberrativa de viver, acabei achando bonito aquele espetáculo de urros e pulos, de dentes e unhas na escuridão da casa, tudo para preservar a imaculada jovialidade dos teus dezesseis anos. Reconheço: o teu pai, esse monstro de asas de morcego e orelhas de burro, é mesmo um homem sutil, joga com as minhas armas, e mal sabe. E como, para completar, havia lua cheia – das derramadas – sentei no meio-fio e puxei dois charutos de maconha, com os cães latindo atrás de mim num furor melancólico. Às vezes, os livros já soam seus primeiros acordes no volume máximo. Como “Trapo” (Record, 2007, 7.a edição), romance lançado em 1988 por Cristovão Tezza.

Trabalho
A palavra é... / 23/05/2009

O aumento da oferta de emprego no Brasil, embora muito modesto, é uma boa notícia – nada mais óbvio do que afirmar isso. Mas nem sempre a idéia de trabalho esteve associada a algo que se procura com afinco e que faz uma falta tremenda quando não se encontra. A origem desse termo surgido na infância de nossa língua, no século 13, com a grafia traball, é uma boa ilustração de como as palavras, seus sentidos e conotações são construídos historicamente. Para uma sensibilidade moderna, é chocante descobrir que aquele que “enobrece e dignifica o homem”, como diz o chavão, nasceu do nome em latim medieval para um instrumento de tortura, o tripalium, apresentado pelo filólogo Silveira Bueno como um artefato composto de “três paus aguçados, algumas vezes ainda munidos com pontas de ferro”. As estacas eram cravadas no solo, convergindo para um vértice no alto, e a esse esqueleto se atavam os infelizes para serem castigados ou mortos. A relação com a tortura começa a fazer sentido quando se leva em conta que, no momento histórico em que a palavra surgiu, o trabalho era uma atividade indigna reservada a subalternos, de preferência servos ou escravos. Mas a ligação pode…

Rubem Fonseca é da Agir
NoMínimo / 22/05/2009

Rubem Fonseca fechou contrato hoje de manhã com o selo Agir, do grupo Ediouro. Participaram do animado leilão pelo passe do escritor, conduzido ao longo desta semana, oito editoras: além da Agir concorreram Record, Objetiva, Rocco, Leya, Globo, Língua Geral e Cosac e Naify. Segundo informações não confirmadas, a proposta vencedora ultrapassa a barreira de 1 milhão de reais. O anúncio oficial será feito pela Agir na segunda-feira, dia 25. Num episódio que permanece mal explicado, Fonseca se desligou há três semanas da Companhia das Letras, que publicava seus livros há vinte anos. (Corrigido às 17h58: a editora Planeta não participou do leilão.)

O desprazer de ler (II)
NoMínimo / 21/05/2009

Eu odiei O grande Gatsby quando o li na escola, mas achei-o glorioso ao relê-lo para meu curso na universidade, alguns anos depois. Suspeito que, aos 17, eu simplesmente não tenha entendido nada. Baixar o nível do currículo não é a solução, mas talvez tenhamos uma visão estreita demais do que deveria constar numa lista de leituras escolares. A sugestão dada por um editor, misturar clássicos com literatura contemporânea, foi descartada por muitos como um golpe de marketing, mas talvez seja um conceito que poderia se mostrar fértil nos contextos educacionais em que os estudantes fazem um grande esforço para descobrir naquilo que lêem algum tipo de relevância para a vida moderna. Diretamente do arquivo do “Guardian”, Jean Hannah Edelstein entra com este bom post de 2007 na discussão que andou rolando dia desses no Todoprosa. A causa é nobre, embora provavelmente perdida: fazer nosso sistema educacional entender a verdade ululante de que o prazer não é tudo na leitura, mas sem ele a leitura não existe.

A pesquisadora
Sobrescritos / 20/05/2009

Ela deu um meio sorriso de olhos baixos, como se tentasse ler desígnios superiores nos volteios dos pedaços de limão esmagados no fundo do copo, e disse que a maior ofensa que se costuma fazer às de sua espécie é supor como móvel de sua busca sem fim uma ilusão vizinha da loucura ou da imbecilidade – a de que os homens que dedicam a vida a simular outras vidas por escrito são mais gostosos ou tesudos, mais misteriosos ou desafiadores do que os mortais comuns. O meio sorriso virou uma gargalhada seca, tão áspera e alta que metade do bar se voltou na nossa direção, inclusive todos os garçons. Ela aproveitou para erguer o copo vazio com a mão esquerda e bater nele com a unha comprida do indicador direito, esmalte carmim, três pancadinhas que tilintaram longamente dentro do segundo de silêncio instaurado por seu riso. O garçom mais próximo assentiu com a cabeça e fez meia-volta. Se houver alguma relação, ela prosseguiu, é bem o contrário, escritores tendem a ser piores de cama do que a média dos homens: mais broxas, mais ejaculadores precoces, além de mais inseguros, mais ciumentos, mentirosos, desleais, descuidados, caspentos, fedidos, barrigudos, egoístas, frios,…

Qual é o personagem mais famoso da literatura?
NoMínimo / 19/05/2009

Brincadeira divertida no blog de livros do “Guardian”: qual é o personagem literário mais famoso de todos os tempos? O ponto de partida é uma alegação assumidamente publicitária da editora Penguin de que Sherlock Holmes, o detetive de Arthur Conan Doyle (com um bocado do código genético de Poe, como já comentamos aqui), seria o detentor do título. O que leva a autora do post, cética, a lhe opor um adversário mais erudito como D. Quixote e em seguida coletar com conhecidos sugestões que incluem Hamlet, James Bond e Harry Potter. Quase todos transformados em figuras ainda mais populares graças a adaptações para outros meios, claro, em especial o cinema – o jogo é esse mesmo. Começou então uma discussão animada entre os leitores. Gostei especialmente de um palpite lacônico, mas com a maior pinta de campeão: “Deus”. E no Brasil, quem você acha que ganharia um concurso de celebridades entre os personagens da ficção? A boneca Emília? A escrava Isaura? Capitu? Mônica? E por que será que só tem mulher nesta lista? E aqui está mais uma: meu voto vai para Gabriela, aquela que um dia – meninos, eu vi – subiu no telhado para pegar uma pipa.

Começos inesquecíveis: Samuel Beckett

Logo estarei bem morto por fim, apesar de tudo. Talvez no mês que vem. Será então abril ou maio. Porque o ano ainda é jovem, mil pequenos sinais me dizem isso. Pode ser que eu esteja errado e sobreviva ao dia de São João Batista ou mesmo ao 14 de Julho, festa da liberdade. Eis o começo de “Malone morre” (Malone dies, Grove Press, tradução caseira a partir da tradução feita pelo próprio autor do francês para o inglês), romance lançado em 1956 por Samuel Beckett.

Lixar-se
A palavra é... / 16/05/2009

O deputado que está – ou estava, até quarta-feira – se lixando para a opinião pública se lixou mesmo. Para compreender a frase anterior é preciso levar em conta dois sentidos bem diferentes, ambos coloquiais, do verbo lixar. A acepção empregada pelo gaúcho Sérgio Moraes é a de não dar importância, não ligar, ser completamente indiferente. Mas lixar-se também pode significar se dar mal ou, como registra o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, “sofrer conseqüências muito desagradáveis”. Nos dois casos, o verbo é pronominal. Diferente, portanto, do lixar propriamente dito, que quer dizer desbastar, alisar, polir. Este existe em nosso idioma desde o século 15 e é derivado de lixa, que tem origem controversa. Há estudiosos que ligam lixa ao italiano liscio, “liso”, base do verbo lisciare, “tornar liso”. Outros apostam numa relação com lixo (lixar viria de remover os excessos, o que não presta), palavra registrada já no século 13 e portanto mais antiga que liscio. E por que não uma conexão com o adjetivo liso, do latim vulgar lisium, sem passar pelo italiano? Enfim, etimologia nunca foi ciência exata. Ainda bem que, desde que uma palavra seja expressiva e funcional, os falantes estão se lixando para…

Corra que o corroteirista vem aí!
NoMínimo / 14/05/2009

Li no jornal, naquelas letras grandes que se usam em títulos, esta palavra espantosa: corroteirista. Senti vertigem. Asco. Deslocamento. Desviei os olhos rapidamente, mas não me livrei da imagem mental hedionda, que me acompanhou o dia inteiro. Corroteirista – de fora a fora no pára-brisa. Corroteirista – na hora do almoço, dentro do prato. Corroteirista – de olhos fechados. Sempre defendi, por uma questão de princípio, a unificação ortográfica (que só não adotei ainda neste blog porque estamos em fase de transição, pressa pra quê?). Também sempre critiquei esse acordo pobrezinho que os doutos negociadores dos dois lados do Atlântico levaram tantos anos para alinhavar, principalmente por sua incapacidade de desbastar o ridículo emaranhado que são as regras do hífen. Nunca achei, porém, que essas ressalvas pudessem ser mais que ressalvas, invalidando o argumento central de que é melhor ter uma ortografia tosca, mas única, do que ter duas. Mas isso foi antes de encontrar para nunca mais esquecer, na vida de minhas retinas tão fatigadas, o inominável corroteirista. O corroteirista rompe todos os cojones, corrói minhas convicções. Não sei de mais nada. Me limito a torcer para que, em nome do bom gosto, da elegância, da harmonia entre as…

Ganhou, ganhou
NoMínimo / 13/05/2009

Os vencedores do sorteio de exemplares autografados de “Elza, a garota”, entre os mais de 140 que se inscreveram, foram os leitores Carlos Marques, de São Paulo; João Athayde, de Londrina; e Mariana Sanchez, de Curitiba. Obrigado a todos os que participaram da promoção de aniversário do Todoprosa. E vamos aos próximos três anos!

O desprazer de ler
NoMínimo / 12/05/2009

A Bravo! atualiza – a propósito do lançamento do livro “A escola e a letra”, coletânea organizada por Flávio Aguiar e Og Dória – a velha mas interminável discussão sobre o que fazer para estimular nas crianças o gosto pela leitura. Por coincidência, algo em que tenho pensado muito nos últimos dias. Acontece que meu filho de 12 anos anda se engalfinhando com dois livros recomendados pela escola: “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, e “The red badge of courage”, de Stephen Crane (isso mesmo, no original, para a aula de inglês). Bons e importantes livros, ninguém discute. Mas serão escolhas sábias para leitores dessa idade? Não vou fingir que entendo de pedagogia, mas literatura eu conheço um pouco. Uma peça teatral de Suassuna e um clássico americano do século 19 (que, mais do que ler, eu traduzi, e posso garantir que é datadíssimo) me parecem opções desastrosas – a segunda, então, beira a piada. Em sua aparente insensibilidade para os desafios que a palavra escrita enfrenta com a geração Playstation, chegam a ser desanimadoras. E estamos falando da “moderna” Escola Parque, no Rio. É claro que meu filho avança lentamente e de má vontade nas duas tarefas. E olha…

Começos inesquecíveis: Isaias Pessotti

Qualquer pesquisador sabe que, para obter financiamentos, é preciso que seu trabalho conduza a “avanços tecnológicos de vanguarda” ou “resultados relevantes para a realidade nacional na área em apreço”. Como se verá, o nosso trabalho, diante desses critérios, era de fulgurante inutilidade. Bem diferente, portanto, do trabalho que essas linhas abrem: o romance – de inegável utilidade para quem aprecia uma boa diversão inteligente – “Aqueles cães malditos de Arquelau” (editora 34, 1995, 3ª. edição), de Isaias Pessotti.

Craque
A palavra é... / 09/05/2009

O início de um Campeonato Brasileiro marcado pela volta de jogadores de alto nível que andavam fora do país, Ronaldo Fenômeno à frente, é uma boa oportunidade para falar da história da palavra craque. Tudo indica que o termo, um dos muitos anglicismos que povoam o vocabulário do futebol, tenha nos chegado no equipamento esportivo de um daqueles ingleses que, no início do século passado, ainda nos ensinavam a jogar bola – poucas décadas antes de se inverter dramaticamente a posição de quem tinha coisas a aprender nesse departamento. O desembarque oficial de craque em nosso idioma leva a data de 1913, quando apareceu no Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo. Era um tempo de aclimatação apressada de termos ligados ao futebol – casos semelhantes foram quíper (do inglês goalkeeper, goleiro), que praticamente caiu em desuso, e beque (de back, jogador de defesa), que ainda se usa hoje, embora zagueiro seja a forma preferencial. Sem mencionar o próprio termo futebol, versão aportuguesada de football, que se sobrepôs a todas as tentativas de criar um neologismo culto para nomear o esporte, como ludopédio e balípodo. A matriz inglesa de craque é crack – não o substantivo, que quer…

Todoprosa faz três anos e dá Elza
NoMínimo / 08/05/2009

Há exatos três anos, dois posts críticos sobre a velha questão da presença magra do futebol em nossa literatura inauguravam este blog. Naquele momento eu acharia graça se alguém me dissesse que o Todoprosa chegaria tão longe, sobrevivendo até ao site que eu editava na época, o saudoso NoMínimo, onde ele surgiu para preencher uma lacuna na área de literatura em meio à reforma editorial que criou uma série de colunas diárias no formato blog. A longevidade inesperada num meio tão volátil é motivo de festa. E como essa duração se deve antes de mais nada aos leitores, tentei bolar aqui uma forma de incluir todo mundo na celebração. Então aí vai a “promoção”, que é singela mas é sincera: vou sortear três exemplares autografados de “Elza, a garota”, um para cada ano de vida do blog, entre os leitores que se manifestarem na caixa de comentários desta nota até a noite de terça-feira (lembro que é preciso fornecer um email válido, que não será publicado – os vencedores serão informados através dele). Aos interessados, boa sorte!

Emma Bovary se despe na rede
NoMínimo / 07/05/2009

Dia desses, um estudante de Jornalismo de Belo Horizonte me mandou um pequeno questionário por email sobre as relações entre internet e literatura. Quase respondi que está na hora de arrumarmos uma pauta mais original, mas me contive – ainda bem. É verdade que já faz alguns anos que nossos papos andam um tanto obsessivos, mas talvez isso seja compreensível diante da vastidão do tema. Acabei respondendo o que sempre respondo, que a internet não me parece um ambiente muito propício para a criação literária em si, mas é sem dúvida o paraíso para todo o resto: divulgação, debate, circulação, descoberta, pesquisa, tietagem, compra, venda, o diabo. Um belíssimo exemplo disso é este site da Universidade de Rouen, na França, em que se pode ler o texto de “Madame Bovary” em francês e, clicando num trecho qualquer, abrir o fac-símile do original manuscrito – a maioria, como este aí ao lado, rabiscadíssimo por Gustave Flaubert em sua lendária caça à “palavra justa”. Escoltando a página com os garranchos há uma outra, limpa, com sua decifração/transcrição. À parte a utilidade óbvia para estudiosos de Flaubert, trata-se de um brinquedo genial. E um encontro emocionante entre literatura e internet.

O charme escandaloso de Edna O’Brien
NoMínimo / 06/05/2009

Essa moça aí ao lado é Edna O’Brien, escritora irlandesa que, salvo algum efeito Carlos Fuentes de última hora, estará na Flip. Mas não se trata do mais fiel retrato de divulgação que se pode encontrar: Edna está hoje com 78 anos e só veio parar aqui no blog, em foto de 1965, como porta de entrada para a divertida galeria de velhos anúncios publicitários de literatura disponível no site do “New York Times”, quase todos com a carinha do autor (uma Susan Sontag gatinha entre eles) e uma série de blurbs que, em sua previsibilidade e seus clichês, talvez sejam a única coisa que não tenha mudado absolutamente nada desde então. Edna é pouco conhecida no Brasil. Tornou-se um ícone do feminismo nos anos 60 depois que teve seu livro de estréia, The country girls, proibido na Irlanda por conter descrições supostamente livres demais da vida sexual das personagens femininas. Por aqui, além da biografia de James Joyce lançada nos anos 90 pela Objetiva – e programada para relançamento em breve pela mesma editora – saíram a coletânea de contos “Uma mulher escandalosa”, pela Francisco Alves, no distante 1982, e o o romance “Dezembros selvagens” pela Bertrand Brasil, em…